Gauguin está salvo

Segundo o dicionário, “anacrônico” é o que está em desacordo com os usos e costumes de uma época. Censura anacrônica, portanto, não tem nenhuma razão de existir.  Assim, Paul Gauguin – com uma exposição no Masp, em São Paulo (até o dia 6 de agosto) – tanto quanto Balthus (Balthasar Klossowski), Egon Schiele, Pablo Picasso e tantos outros que hoje sofrem acusações que nada têm a ver com o tempo deles, estão salvos. E que os nossos representantes no Congresso façam alguma coisa para frear os abusos fundamentalistas na Cultura. Ninguém aguenta por muito tempo cachorros raivosos latindo o tempo todo, embaixo da janela.

Captura de tela do site do Masp: vista da exposição “Paul Gauguin: O outro e eu”. Crédito da foto: Eduardo Ortega

Entre a defesa justa e a ideologia intransigente, fundamentalista, do woke, existe um abismo. Quando os pequenos papagaios acusam a literatura e a arte, sistemática e gratuitamente, de “colonialismo, racismo, misoginia, capacitismo” e outros tipos de discriminação totalmente infundados em sua época, caem em cegamento abusivo. Ou damos risada, sem levá-los a sério, ou será realmente necessário “enquadrá-los” por meio de alguma lei republicana.

Depois de Polanski, é preciso punir Gauguin?

“Paul Gauguin (1848-1903), pintor genial, mas artista pedófilo…”. Eis o resumo do que os museus no futuro serão talvez obrigados a escrever nas etiquetas das telas para alertar os visitantes e evitar qualquer crítica. Certas publicações já seguem o mesmo princípio, provavelmente também por sensacionalismo.

Uma novata que se diz “crítica de arte”, contatou-me porque estava escrevendo sobre “o” Gauguin para uma revista e queria saber se eu me sentiria “confortável” em falar sobre a “produção” dele. Como se “o” Gauguin” ou “o” Paul  fosse amigo dela ou seu bicho de estimação. Ou como se o artista não criasse, apenas “produzisse” Gauguins, igual a uma fábrica de automóveis. Assim mesmo agradeci e respondi gentilmente. Disse que jamais poderia sentir mal-estar em analisar a obra de um gênio e enviei os links para este artigo e mais este. A foca woke sumiu…

O pintor francês, falecido há 120 anos, vira e mexe fica no centro de alguma uma nova polêmica. Tanto, que o lado woke do New York Times chegou a se perguntar “se Gauguin ainda deveria ser exposto”.

Fofocas nada têm a ver com arte, porém, em Londres, a National Gallery dedicou-lhe uma exposição de retratos acompanhados deste aviso anedótico ao público, digno de tabloide inglês: “O artista manteve repetidamente relações sexuais com mocinhas, casando-se com duas delas e tendo filhos. Gauguin, sem dúvida, aproveitou sua posição de ocidental privilegiado para se permitir uma grande liberdade sexual.”

O aviso em “estilo mexerico”, refere-se aos últimos doze anos da vida do pintor, no final do século 19, quando este partiu para o Taiti e depois às Ilhas Marquesas com o objetivo de escapar da civilização ocidental e encontrar uma nova inspiração. Paul Gauguin estabeleceu-se, então, no meio da população local e foi morar com vahinés¹, uma de 13 anos e outra de 14, sendo que ele tinha mais de 40. Ali, pintou as suas telas mais famosas, vivendo de expedientes na comunidade, corroído pela miséria, pelo alcoolismo e pela sífilis que acabaria por matá-lo em 1903.

¹Vahiné, é a mulher do Taiti, do taitiano “vahine” (mulher, esposa, concubina, amante), cuja etimologia é o proto-polinésio “fafine”. Usado na Europa desde o final do século 18, o termo foi um ícone do imaginário europeu em relação a este mito da Polinésia, durante mais de dois séculos. Uma das canções da minha juventude, interpretada por France Gall em 1981 (com letra de Michel Berger), chama-se Vahiné

Tudo deve ser repensado

“Para museus internacionais, Gauguin sempre garante sucesso de bilheteria”, escreveu o New York Times. E acrescentou: “entretanto, numa época em que o público está cada vez mais sensível em relação às questões de gênero, raça e colonialismo, os museus deveriam reavaliar seu legado.” Se eu fosse crítica de arte naquele periódico, teria escrito: “numa época em que o público está cada vez mais histérico e paranoico em relação às questões de gênero, raça e colonialismo, os museus deveriam fazer campanhas de esclarecimento e reeducação para matizar as neuroses de cada um e defender seu legado histórico.” Escreveria exatamente isso, mesmo que fosse “cancelada” para todo o sempre.

Em nossos dias, devemos queimar Gauguin por causa de uma vida “dissoluta e condenável”? É a eterna questão sobre obra e a vida privada do autor: podemos ou não dissociar uma da outra? Uma controvérsia que a França viveu há pouco com o cineasta Roman Polanski, cujo extraordinário filme J’accuse, foi alvo de pedidos de boicote porque seu diretor, há décadas, foi acusado de abuso sexual.

Quanto a Gauguin que o Masp expõe agora, pelo que li a mostra está igualmente “cheia de dedos” e explicações. Por que não fica claro para o público que a obra continua sendo a obra? Que quando um artista cria algo, isso não pertence mais ao artista, e sim ao mundo?

“Duas Vahinés”, Paul Gauguin, 1891.

Erotismo colonial

Há vários anos, Gauguin criava polêmica. Seu nome já despertava mal-estar… Por ocasião do lançamento de um filme sobre sua vida, Gauguin – Voyage de Tahiti, onde o artista foi interpretado por Vincent Cassel, muitos tiveram chiliques. Alguns lamentaram que aspectos da vida privada do pintor fossem ocultados, em particular a idade de suas vahinés companheiras ou parceiras de uma noite. Outros denunciaram o silêncio do cineasta sobre “os abusos do homem branco sobre as populações locais”. Como se o papel de um cineasta tivesse que ser necessariamente o mesmo de um militante woke. Ou, como se Gauguin não tivesse trazido benefícios às esposas e às populações. O pai de uma dessas garotas implorou ao artista para que se casasse com ela, “salvando-a, assim, dos missionários”.

Os fatos merecem ser colocados em perspectiva. Em 1900, apesar da vinda dos missionários, a Polinésia mantinha uma relação diferente com o sexo e o sentimentalismo, o pecado e a culpa. Gauguin chegou tarde demais, invadido por esse “sonho” que, então, encontrava-se agonizante.

A formidável historiadora Anne-Claude Ambroise-Rendu, autora de A História da pedofilia do século 19 ao 21 (Histoire de la pédophilie du XIX au XXIe siècle – Ed. Fayard), explica que precisamos desconfiar do nosso olhar atual sobre fatos que datam de mais de 100 anos. “Se começarmos a reler todo o comportamento dos indivíduos de ontem com os valores que são os nossos hoje, teremos uma leitura anacrônica do passado”, explica.

Na França, no final do século 19, por exemplo, a lei punia todo “atentado ao pudor sem violência até os 13 anos”, limite de idade que seria aumentado para 15, em 1945. Isto significa que, naquele tempo, uma garota de 13 anos já não era considerada “criança”, e Gauguin não tinha de nada de condenável mesmo que ainda se possa acusá-lo moralmente por ele ter participado do “erotismo colonial” e “aproveitado de sua condição de branco”. Nenhum grande mecenas deixaria de ajudar um gênio da arte, que nunca fez mal a ninguém.

Porém, tratá-lo como pedófilo, uma noção que nem existia na época e define um perfil psiquiátrico “tipo”, é completamente absurdo. “Cabe aos diretores de museus fazer o seu trabalho até ao fim…”, declarou a historiadora. Ou seja, cabe a eles, como escrevi acima, fazer um esforço conjunto de elucidação para nuançar essa histeria e defender a herança artística da humanidade.

Perninhas abertas

Depois do caso Weinstein e do #MeToo, artistas como Balthus, Gauguin ou Schiele, mortos há muito tempo, têm seus trabalhos contestados por causa da sexualidade controversa. Devemos nos apressar, antes que as suas obras sejam examinadas, não mais esteticamente, apenas do ponto de vista do “comportamento criminoso de cidadãos estupradores”, ou que alguns venham cobrir com véus e destruir as telas, assim como fizeram as carolas que quebraram a escultura art decô que orna o túmulo de Oscar Wilde, no cemitério Père Lachaise, em Paris. Amanhã, pela “boa causa da proteção à criança e do respeito à mulher”, os museus acabarão colocando no porão, boa parte de suas obras-primas.

Caso Balthus: 10 mil signatários exigiram a retirada de sua pintura da parede do Metropolitan de Nova York. Felizmente, o museu se recusou e a obra continua bem lá. Quem não lembra da tela, onde uma adolescente sonha com os olhos fechados e braços estendidos. “Drama dos dramas”, a mocinha está com as perninhas um pouco abertas e o que se vê? Alguns centímetros de uma calcinha branca. Isso, e Balthus é acusado de “romantizar a sexualização da criança”. O que diz a sua biografia? Não me interessa, não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe. Deixem o artista e os segredos dele bem sossegados em sua tumba! Arte e artistas são livres.

Entre as esculturas “Gato” (1954) e “Mulher de Veneza II (1956) do suíço Alberto Giacometti (1901–1966), “Teresa sonhando”, a controvertida tela de Balthus, 1938. Foto: Thomas Urbain/AFP/Getty Images

Pessoalmente, acho mais obscenos a ostentação, exibicionismo e narcisismo que vejo no Instagram do que as menininhas da obra de Balthus com a qual, aliás, jamais me identifiquei. Gostemos ou não, fiquemos incomodados ou não, penso que tudo deve poder ser dito e mostrado, e pior (ou melhor) se o espectador ficar chocado. Problema dele. Em vez de exigir censura, é só passar ao longe e não olhar. A cada um, o direito de criar, gostar e olhar o que quiser.


Caso Schiele: em 1918, o coitado morreu de gripe espanhola. Foi há mais de um século. Um ano apenas depois do julgamento de Harvey Weinstein, o Museu Leopold de Viena (que visitei nos anos 1980, enviada pela Fundação Bienal, viagem que me inspirou um dos capítulos² de Direi Tudo) pretendia promover mais uma exposição de sua coleção para celebrá-lo.

Londres, Colônia e Hamburgo recusaram-se a apresentar o cartaz da mostra. Este, simplesmente retomava as famosas telas Moça com Meias Laranja e Homem Sentado Nu. As cidades refratárias propuseram borrar os órgãos sexuais femininos e masculinos, considerados “muito aparentes, luzentes e desconfortáveis”. Viena manteve-se firme, orgulhando-se do caráter sempre escandaloso do licencioso Schiele.

A cidade austríaca transformou o artista em argumento de venda, assim como os magnatas do luxo sabem fazer há muito tempo. Cínicos empreendedores podem ser tanto adeptos do pornô chique quanto do “pudibundo”, uma vez que eles mesmos fornecem hijabes e abayas às petromonarquias islâmicas.

“Adèle Harms”, Egon Schiele (1890-1918), 1917

De volta a Schiele. E quanto à sua reputação biográfica? Sim, ele teria abusado de suas jovens modelos, a justiça o absolveu. Sim, ele teria sido um amante de prostitutas e talvez de sua irmã. Igual a Balthus, também não me interessa. De qualquer forma, repito, a arte é livre e todas as questões externas a ela, não nos dizem respeito. Schiele foi um dos que melhor souberam encenar as núpcias de Eros e Tânatos. Tratou do corpo, do prazer e da morte, como ninguém. Nenhuma censura anacrônica consegue anular o seu gênio, assim como não pode nada contra Gauguin.

Até a próxima que agora é hoje, época na qual, para alguns, modernismo, puritanismo, obscurantismo e wokismo vão muito bem juntos!

² Sachertrauma”, pág. 73. No meu livro Direi Tudo e um pouco mais (Ed. Perspectiva, 2017), capítulo dedicado à verdadeira torta Sacher na Viena de Egon Schiele, e à grave questão da falta de tato em certos humanos.  

Captura de tela do site do Masp: vista da exposição “Paul Gauguin: O outro e eu”. Crédito da foto: Eduardo Ortega

‘Decolonial’: novo chique, novo woke ou novilíngua?

No Brasil, trata-se da imitação de mais uma doutrina radical que reduz a realidade humana; da invenção ideológica de mais um (nem tão) novo sectarismo, e de uma injustiça epistêmica. Com a arrogante ambição de “desconstruir” as humanidades artísticas, universitários militantes (e professores anuentes, talvez porque queiram agradar à jovem plateia que lhes prodiga ‘likes’, talvez por covardia, medo de represálias ou, talvez, porque adotaram, de fato, a ideologia) travam uma batalha intelectual como se certas obras e artistas de grupos sociais tivessem sido ‘injustiçados pela cultura ocidental’. Como se os povos originários e sua extraordinária cultura e luta, pessoas negras, mulheres, estivessem sendo, em pleno século 21, ‘silenciados’ pela história, a ‘alta cultura’, e agora devam ‘se empoderar’ (para usar a palavra da moda) e ‘concorrer’ com ela.

Também, como se existisse ‘norma universal’. Como se na arte – que é livre – haja ‘padrões’ que pudessem ter sido ‘condicionados’ pela colonialidade. Como se Picasso, para dar apenas um exemplo, não tivesse, ao contrário, reverenciado a arte africana e se inspirado nela. Como se o Ocidente não tivesse se debruçado sobre a arte da Oceania, do arquipélago Malaio, da América e das terras árticas, para aprender com elas.

Como se ‘primitivo’ e ‘naif’ fossem apenas uma ‘construção’ ou uma ‘solução encontrada pela hegemônica experiência europeia’, e já não existissem por si, independentes das conquistas de povos ‘cultos e civilizados’. Como se – na continuação desse raciocínio paranoico woke – tivesse havido uma lógica em ‘categorizar’ essa arte original, para que ela não ‘ameaçasse’ a arte moderna. A história prova o contrário. Todos sabemos, e Dubuffet demonstrou perfeitamente, que a ‘art brut’ junto a tantas outras, influenciou profundamente (jamais ameaçou) o modernismo. Menos ainda, a arte contemporânea. 

Mas, depois de ler os parcos sofismas moralistas que sustentam essa loucura nas universidades brasileiras, olhemos mais de perto o resultado do que se defende. Possui essa suposta ‘nova’ arte decolonial, estatura de ‘adversária’? Revoluciona alguma coisa? Mobiliza-se em projeto? Não é o que se constata nos inconvincentes e absconsos exemplos que costumam nos trazer.

Esse “neopós-modernismo” mutante, que se esforça tanto para se auto justificar, repete constantemente seus quatro temas-chave: indefinição de fronteiras, poder à linguagem, relativismo cultural e até mesmo evicção da noção do indivíduo e do universal. O gênero ficou mais importante do que o corpo, a raça mais relevante do que o homem, a vitimização decolonial tomou o lugar da política de convergência, a noção de “dominante e dominado” e seu emprego em discursos anticientíficos, beira o fanatismo. Qual a sua real contribuição e alcance?

Iván Argote, série “Turistas”.
“Eles mantêm a sua querela, porque não se mantêm senão por ela.”
René Girard (1923-2015), em ‘O Bode Expiatório’ (1982)

Arte “decolonial: novo chique, novo woke, ou novilíngua? O início dos anos 2010 viu o surgimento de um fenômeno que se autodenominou “woke”. Ser “woke” significava estar “acordado”. Tratava-se, em princípio, de permanecer vigilante diante das injustiças sofridas pelas minorias nos países ocidentais. Mas, como era de se prever, o movimento desbordou.

Em 2020, os diretores da National Gallery of Art de Washington, Tate Modern de Londres, do Museum of Fine Arts de Boston e Museum of Fine Arts de Houston cometeram o absurdo paranoico de “adiar para 2024” uma retrospectiva dedicada a Philip Guston, grande mestre da pintura americana do século 20, porque algumas de suas pinturas retratam figuras encapuzadas da Ku Klux Klan. Anunciaram que esperariam “até o momento em que” (eles acharem que) “a poderosa mensagem de justiça social e racial que está no centro da obra possa ser interpretada mais claramente”.

Em seu novo ensaio, A Religião Woke, publicado há alguns meses pela Editora Grasset (recomendo que seja traduzido, urgentemente, no Brasil) Jean-François Braunstein, emérito professor de filosofia contemporânea, história da ciência, filosofia da medicina e ética médica, na Sorbonne, vê no wokismo “muito mais do que uma simples onda de ‘loucura passageira’ ou esnobismo intelectual”. “Trata-se”, para ele, “de um autêntico fanatismo: seus seguidores, profundamente intolerantes, disfarçam suas opiniões de ‘ciência’ e pensam que podem doutrinar. Inclusive crianças.”

O filósofo recorre a textos, teses, conferências e ensaios que ele explica longamente, para denunciar esta nova religião destruidora da liberdade. O objetivo dela é “desconstruir” toda a herança cultural e científica de um Ocidente acusado de ser “sistematicamente” machista, racista e colonialista. Segundo Braunstein, “é a primeira vez na história que uma religião nasce nas universidades.” Escreve: “Tudo está a postos para a instauração de uma ditadura em nome do “bem” e da “justiça social”.

Revisionistas e cancelistas

A questão é sempre mais política do que científica, e me surpreende que, com relação ao wokismo da arte decolonial, historiadores brasileiros possam aquiescer a propósitos de recriar a história, redundar particularidades, questionar a completude universal da cultura humanista, eliminar as fronteiras entre arte e artesanato, vitimizar grupos, distorcer formas sociais em relação a posições marginais, induzir à percepção errônea do real.

Me admira que cientistas que pesquisam eventos passados de povos, países, períodos e indivíduos, possam compactuar com a pobreza de uma ótica quase que unicamente “colonialista”, sob o ressentimento e ódio do conhecimento e da cultura secular da humanidade (ocidental ou não).

Isso, em nome do “politicamente correto” identitarista, etnicista, racialista; também do ideologismo de gênero, classe, de geopolítica, entre outros. E que estes cientistas possam julgar textos e obras, às vezes de há séculos, com olhos de hoje; atuar como revisionistas, quase cancelistas, à maneira da aberração chamada Marilene Felinto.

Fred Wilson: “Os antigos egípcios foram negros, brancos ou marrons?” (2012)

Sara é uma francesinha mestiça, habituada à diversidade, que, aos 15 anos, estuda numa escola de periferia. Seus colegas são brancos, negros, asiáticos, magrebinos, judeus etc. “Nos entendíamos bem, havia solidariedade, respeito e benevolência entre todos”, conta ela. “O curso de ‘educação cívica’ chamado Existe racismo antibranco? mudou a nossa vida. A partir das aulas da professora (que depois foi despedida), muitos começaram a se ver como vítimas e a só falar nisso. O WhatsApp da classe virou um campo de batalha com dois campos se enfrentando: os brancos, acusados de racismo, escravidão, colonialismo, desigualdade.” E Sara explica, com maturidade: “O curso não ajudou a refletir. Apenas instalou um clima de ódio, inimizades e transformou em vítimas alguns de meus colegas que, antes, iam tão bem.”

O discurso woke oferece poder de denúncia e boa consciência aos novos e arrogantes prescritores ideológicos. Alguns artistas defendidos por eles, como Jota Mombaça (1991, Natal, RN) – mesmo mimicando intenções na sua entrevista absconsa para a 34a Bienal (vídeo mais abaixo) – não parecem se mobilizar em projeto. Uns e outros, fundam-se sobretudo em pensadores conhecidos, embromando teorias, mascarando o vazio de seu pensamento com discursos ininteligíveis, queimando as pistas, criando listas de suspeitos de um lado, e apologizados de outro.

A luta política sempre produziu uma retórica bem provada: as ideias do adversário são contraditórias, suas paixões interessadas, seus valores imorais. Mas o movimento woke segue uma lógica mais inquisitorial e pessoal: desmascarar culpados, desconstruir estereótipos e álibis dominantes, revelar suas pulsões. E tudo em nome do “sofrimento” que os inimigos infligem, e das “identidades que estes esmagam”. Queixas – de sexo, gênero, raça, natureza, colonialidade – tornam-se motores da História. A utopia do mundo de reconstruir é substituída pelo imperativo do mal menor: não ofender/estigmatizar um grupo, indignar-se, arrepender-se, lamentar-se sempre. Viva a nova Inquisição!

Mas, vejamos quem é que possui pulsões, álibis dominantes e estereótipos.

Quem é o ‘opressor’?

É bom lembrar que a maioria da população, em qualquer país, está tão obcecada pela questão do colonialismo quanto pelo destino dos LGBT & Co. Ou seja, não está preocupada nem um pouco. E não é preciso dizer quais são os seus assuntos primordiais.

Ademais, neste momento deletério de policiamento ideológico identitário, a maioria dos que conhecem o assunto, encontra-se bastante irritada com todas as censuras e proibições dos “bem pensantes”. O woke obriga a se vigiar, se autocensurar, deformar seu discurso ou calar. A saia ficou cada vez mais justa. Viver, com tantas amarras, tornou-se extremamente desconfortável.

Um famoso conservador que conheço – e que não quis dar o seu nome numa entrevista a um jornal, por medo de represálias e manifestações em frente do seu museu – declarou: “Essa nova ordem moral que privilegia o indivíduo em detrimento da obra é um enorme retrocesso porque, por princípio, é incompatível com a arte que permanece inteiramente comandada pela liberdade”. “Nossa época está ávida de vítimas”, disse ele. “Esse sistema unívoco é aquele, excessivo e sem apelo, de supostos juízes revolucionários. Nem dá mais para contestar um ponto de vista, ter outra opinião. Até o uso de palavras torna-se fonte de conflito.” E conclui, com justeza: “Critérios morais prevalecem sobre critérios artísticos.”

Depois dessa declaração, pensemos juntos. Quem “silencia” quem?  Quem é o opressor?

Estratégia de mercado

“Arte decolonial” é uma invenção nociva, sustentada por sofismas facilmente desmontáveis, tanto quanto o identitarismo, onde mais esta forma de censura busca a sua legitimidade. Penso que a cultura woke, seja qual for, nega o livre arbítrio e a complexidade da moral, apenas para poder existir. “Mantêm a sua querela, porque não se mantêm senão por ela”, como está na epígrafe girardiana deste artigo. “É a inimiga da criatividade” (Seth Greenland).

Porém, a fantasiosa doutrina “decolonial” não é apenas uma maneira incorreta e desonesta de impor qualquer trabalho, seja ele artístico ou intelectual.

No site da 34a Bienal: “Jota Mombaça (1991, Natal, RN) define-se como “bicha não binária, nascida e criada no nordeste do Brasil”. Jota pesquisa as relações entre humanidade e monstruosidade, investiga a pertinência do queer como categoria no contexto brasileiro e tensiona a constituição de subjetividades e marginalidades nos centros e periferias do capitalismo. Em suas performances e escritos, seu corpo desafia a branquitude heterossexual cisgênero e masculina que se impõe como norma universal. Jota expõe as violentas políticas de morte e de invisibilidade às quais foram submetidos os corpos racializados ao longo da história colonial, que perduram atualmente sob a ficção da democracia racial.”(…)

Trata-se sobretudo de uma estratégia comercial: colocar sob holofotes trabalhos considerados ruins (porque são ruins mesmo, e não necessariamente de uma ótica colonialista, branca, patriarcal ou eurocêntrica) ou que não são vistos e percebidos por si próprios (porque de fato não têm nada para chamar a atenção, nem mesmo um programa estético) e que por estas razões não vendem e não “se vendem”.

Não me admira que um dos artistas (indígena aculturado), tão celebrado pelo “woke festivo” brasileiro, tenha formação publicitária. A sua arte (ou artesanato, para sermos mais exatos) nasce da vontade de aceitação pelo público, mostrando os melhores aspectos do seu “produto decolonial”. É publicidade pura. Está muito longe da arte.

Arte woke decolonial, é o culto absoluto do superego

Mensageiros woke adoram a palavra “narrativa”. Repetem bastante. Alguns não chegam a citar “arte”, mesmo quando é de arte que se trata. Não falta muito para sermão religioso. O woke artista e seu woke crítico se querem literalmente perfeitos, sem pecado. Arte woke decolonial é maniqueísta, culto absoluto do superego. Fogueira para os hereges e anti-modelos!

A questão é: fora das linchagens na imprensa e nas redes, e dos pequenos debates universitários estendidos às instituições em decadência, como a documenta de Kassel e a Bienal de São Paulo, pode o woke artístico mudar alguma coisa na vida cultural e política de um país? Pergunto, porque entre intelectuais mais evoluídos, vemos que o movimento encontra enorme resistência. Por enquanto, que se saiba, espécimes artísticos marginais do decolonial, só são pinçados pelas camadas urbanas e diplomadas, da moda.

Sabemos que no mundo virtual das GAFAM – Google (Alphabet Inc), Apple, Facebook (Meta), Amazon e Microsoft – qualquer sistema de pensamento promovido por jovens de origem menos humilde e com formação, está fadado a ganhar popularidade. E apenas nas classes altas. Mesmo quando o assunto trata de minorias e desfavorecidos. Não existe proletariado woke. Na França, os trabalhadores não sabem o que significa “decolonização”. Esse conceito é como “ópio dos intelectuais”, para usar a famosa fórmula de Raymond Aron sobre o marxismo.

Exemplo de “soft woke” ou “decolonial glamour” (essas palavras são invenções minhas). Retratos oficiais de Barack Obama por Kehinde Wiley, e de Michelle Obama por Amy Sherald, dois pintores afro-americanos. A primeira obra retrata o ex-presidente de terno, sentado em meio a folhas e flores típicas do Havaí, onde nasceu. Seu autor procurou “questionar a retórica usual de poder associada à elite masculina branca”. Já o retrato da ex-primeira-dama é inspirado em tecidos e estampas subsaarianos.

Também pergunto: crítico que defende a chamada arte decolonial, consegue analisar seus marginais prediletos de modo que critérios artísticos prevaleçam sobre critérios morais?  Ou, para ele, talvez, critérios históricos, sociológicos, psicológicos, psicanalíticos, econômicos, políticos, científicos, estéticos (filosóficos), enfim, tudo que igualmente diz respeito à crítica e à arte – depois de séculos – não existem mais?

O “woke capitalista”, como o que infestou até mesmo Walt Disney e as marcas de luxo; e o “soft woke”, “decolonial glamour” – expressões que inventei para designar o “woke comercial” de Kehinde Wiley e Amy Sherald (foto acima) – são melhores do que o universitário, porque pelo menos não se levam tão a sério. Mesmo os retratos oficiais de Obama e Michelle – à maneira do brega Romero Britto, que também pinta presidentes, de Dilma a Bolsonaro – são mais didáticos e colocam a codificação do poder americano de cabeça para baixo.

Não há uma só pessoa madura, que seja woke.

Também a idade, desempenha papel fundamental nesta praga. Não há uma só pessoa madura na França, por exemplo, que seja woke. Há pouco tempo, li que os adeptos do “wokismo decolonial”, neste país, geralmente têm entre 18 e 35 anos. Há um prognóstico ingênuo de que seriam remodelados pelo implacável mundo do trabalho. Não é bem assim.

O wokismo é uma epidemia. Trata-se, de fato, de um “vírus”, tanto a partir de Derrida quanto de certas feministas e decolonialistas. Precisa de virologistas.  É um grave perigo para o mundo do trabalho, suas relações sociais e a economia que dele depende, entre outras coisas.

Só nos Estados Unidos – onde a praga começou primeiro – encontra-se quarentões imaturos ou oportunistas, colados à ideologia. Curiosidade: segundo as estatísticas (Google confirma) muito mais mulheres são adeptas do wokismo (de todos os tipos) do que os homens. Não é muito difícil entender as razões.

A grande diferença entre os Estados Unidos, o Brasil que o imita (com bastante atraso) e a França, é que temos aqui uma esquerda anti-woke bastante forte. Ela está consciente e resiste ao modelo americano, por mais “politicamente correto” que possa ser. Por mais que o colonialismo seja, de fato, uma questão que lhe fale de perto. Grandes professores, especialistas no assunto, como o brilhante Pascal Blanchard, odeiam ideologias decoloniais. Sobretudo as que instrumentalizam os verdadeiros pensadores do colonialismo.

A teoria do filósofo e antropólogo René Girard (1923-2015) – cuja síntese figura no meu penúltimo livro (Direi Tudo, Ed. Perspectiva 2017), no capítulo O Inferno – explica bastante, creio eu, o mal-estar geral que presenciamos à nossa volta, e em toda parte.  Sinto que precisamos dela neste momento, mais ainda do que a discussão de Freud sobre o mal-estar na cultura, a pulsão de morte e a civilização. A questão girardiana do “desejo mimético” exige um pouquinho de esforço para acompanhar, mas vale a pena.

O antropólogo francês René Girard em junho de 2008. LINDA CICERO/STANFORD NEWS SERVICE

Arte (e virada) decolonial não existe

Realmente, não existe. Arte é arte tout court.

Totalmente de acordo com o que diz o presidente Emmanuel Macron: “Na colonização existiu o horror e também a emergência de Estados e riquezas. É a realidade da colonização: elementos de civilização e de barbárie.” Demonizar, sem relativizar, é wokismo burro (perdão pela redundância). A mim, dá muita pena de historiadores e intelectuais que sigam este caminho.

Acabaram essas relações de poder

Nos anos 1970, militava-se pela “arte latino-americana”, como no famoso Simpósio de Austin. Do colóquio equivocado “El artista Latinoamericano y su identidad” (que já tratava – e mal – de colonialismo), participaram até mesmo críticos como Damián Bayón, Aracy Amaral, Juan Acha, Frederico de Morais, Octavio Paz e Marta Traba. Obviamente, Walter Zanini e outros que tinham uma visão universalista e mais aberta da arte, não entraram na onda.

Com as nossas bienais, nos anos 1985 e 1987 – e já antes de nós, com as formidáveis edições de Walter Zanini – eliminamos fronteiras geopolíticas e apontamos a mundialização. Faz muito tempo que não existe mais relação de poder entre Europa e colônias. Faz muito tempo que o mundo, apesar de suas diversidades, é um só. O planeta inteiro se comunica. Todas as formas de arte, em toda parte, na Austrália como no Brasil, têm o seu lugar e as suas trocas.

Hoje, o homem volta-se ao universo, a lugares jamais explorados. Externos ao planeta Terra.

Há sete anos, já na 32a Bienal, sem o advento woke, mas, dentro do mesmo espírito, “trabalhos eram usados para criar uma estratégia de decepção”, segundo Rosalinda Fumarola, crítica de arte ítalo-brasileira inventada por mim, em mais uma entrevista imaginária ao jornal Valor Elevado, também inventado por mim.

“A história universal é a de um só homem.”

Por causa das diversidades, e graças às suas particularidades, sim, a arte é universal. Assim como o nosso planeta, que pertence ao Universo. J. L. Borges dizia: “A história universal é a de um só homem.”

Não penso que a novilíngua identitária triunfará. Mesmo se, com as redes, arrebanha incautos carneirinhos. Mesmo se, meio século depois, os pseudoativistas simulem raciocínio lógico, com estrutura aparentemente consistente e correta, produzindo a ilusão de uma “verdade”. Qualquer herdeiro de Austin, só pode involuir. Além de que, qualquer estratégia, mesmo e sobretudo as de mercado, sempre tem curta duração.

É necessário coragem para dizer “não” a este mundo orwelliano que nos é prometido. Não precisamos nos calar e deixar o populismo prosperar.

Até a próxima, que agora é hoje e, se o destino for venturoso com as futuras gerações, essa “virada” fictícia, de ícones chiques e tendência, será lembrada apenas como outra veleidade que passou!

Detalhe da instalação “The American Library”, do artista anglo-nigeriano Yinka Shonibare, 2019. Foto ©️Carol Ann Dixon.