Como a arte, o futebol é de todos

“Finalmente, o que eu mais sei sobre a moral e as
obrigações do homem, devo ao futebol…”
(Albert Camus em carta a J.-P. Sartre, 1957)

Futebol é como arte. Em campo, é obra individual e coletiva, expressão objetiva e subjetiva voltada à concretização de um ideal de desteridade e harmonia, com uma finalidade comum. Torcemos ou não por países, o futebol é de todos. E, como tudo que é universal, contribui para a paz no mundo.

A bola e a sua magia enquanto objeto transicional é peça de compartilhamento que circula entre os povos, não apenas entre nações, fazendo deste esporte uma espécie de religião ecumênica que é fator de concórdia e comunhão. Assim como a arte, hoje mundializada, que gira entre os museus no mundo inteiro, unindo as pessoas.

A única falha é que o futebol não fica num vácuo. Depois do dia 2 de dezembro de 2010, ele foi, digamos, “roubado” e hoje aparece timidamente nos bastidores da Fifa, cuja decisão histórica teve enredo digno de filme de mistério e espionagem – com política, muito dinheiro, corrupção, dissimulação, super lobby e “Catargate” – entre vários países.

Esta “arte” acabou por se instalar na primeira Copa do Mundo organizada em mundo árabe, num país pequeno, desconhecido, sinistro e bandido que financiava o terrorismo islamista.  Ditadura, para a qual – a fim de disfarçar a sua sujeira, deixando de ser pária aos olhos do planeta – a solução era “comprar” a Federação Internacional de Futebol. Emirado riquíssimo que provoca polêmicas em relação, entre muitas outras coisas, às condições de vida dos trabalhadores locais, ao lugar das mulheres e das minorias LGBTQ+, à censura à imprensa  e ao impacto ambiental de seus estádios climatizados. 

Nenhuma Copa do Mundo suscitou tanta reprovação. Nem mesmo aquela disputada em 1978, na Argentina da ditadura militar. Só nos Jogos Olímpicos de Moscou (1980) e de Los Angeles (1984), talvez, os aspectos esportivos foram eclipsados a tal ponto pelos não esportivos, como os boicotes.

Do mesmo modo que a arte, o futebol não tem culpa, sofre por tabela. Há pouco, os catari estavam no deserto, em cima de camelos. Agora estão no TikTok , em toda parte e usurpam um esporte pelo qual se apaixonaram, sem jamais terem jogado na areia. E conseguiram o seu intento: durante um mês, boa parte do mundo estará com os olhos voltados a Doha, capital do Catar. 

Antes, em campo, o futebol transcendia confederações e federações nacionais e internacionais, cartolas, países, governos, política e até mesmo o próprio futebol. Quem o ama e está indignado, com razão, não será tolo ou masoquista se agora não conseguir curti-lo em sua plenitude.

O presidente Emmanuel Macron, para quem “futebol não é política”, mostra-se contra o boicote do Mundial que começa amanhã, dia 20. Ele pensa que “a Copa ajudará a mudar este país que não respeita os Direitos do Homem”. É possível. Em todo caso, tudo isso já deveria ter sido pensado em 2010, não 12 anos depois.

Paris: cartaz que se encontra em toda a cidade. Foto © Patrick Corneau. Novembro, 2022.

E se certos jogadores adotassem bigodes encerados, Gumex e shorts listrados?

Há quatro anos, ao assistir aos primeiros jogos da Copa 2018, enquanto aguardava a estréia da seleção brasileira contra a Suíça no dia 20 de junho, não conseguia me furtar à delícia de imaginar os jogadores como foram retratados pela primeira vez na história da arte. Sim, porque nunca tinham sido pintados antes de 1908, quando Henri Rousseau resolveu fazê-lo.

Artista celebrado por Apollinaire – admirado e colecionado por Picasso – Rousseau, afinal, foi o primeiro a representar a modernidade. Verdade que tinham acabado as extravagâncias com vestimentas e capilares, os “Bleus” estavam com um look de “genro ideal”. Na Rússia também, parecia que a hora era de sobriedade.

Mas, e se certos jogadores como Antoine Griezmann, Olivier Giroud, Cristiano Ronaldo, Lionel Messi, Gerard Piqué, tivessem adotado bigodes encerados?  Mesmo que estivessem um pouco mais elegantes, e se aqueles jogadores usassem, em vez dos cortes estranhos de cabelo e tatuagens, os penteados duros de Gumex, alinhadas camisetas e shorts listrados?

Só não dava para imaginar Neymar “bem-apresentado” – o, hoje, coerente apoiador de Bolsonaro com 10 quilos a mais e vaiado em Paris aos gritos de “vá pagar os seus impostos!”

“Os jogadores de futebol”, Henri Rousseau, 1908

Cinco anos depois, em 1913, Umberto Boccioni o futurista – do qual o MAC (Museu de Arte Contemporânea) de São Paulo possui, entre outros trabalhos, uma bela escultura – pintou o Dinamismo de um jogador de futebol (foto abaixo). Os futuristas italianos, também defensores da modernidade, odiavam o classicismo, “vomitavam” diante da Mona Lisa e procuravam novos temas. O esporte trazia inspiração, pois ele permitia mostrar – não apenas a figura do jogador – mas a potência do seu movimento, que é o que interessava aos futuristas.

A mesma preocupação em apresentar o dinamismo do jogo, podemos encontrar na pintura de André Lhote, “Jogadores de Futebol”, de 1918 (foto abaixo). Ele foi o teórico do cubismo, o que irritava um pouco Braque e Picasso, criadores do movimento, que não queriam vê-lo contido num “manual”. Teoria de cubismo para artistas cubistas era um pouco como se um comentador esportivo dissesse aos jogadores como eles deveriam jogar… Lhote (assim como Juan Gris) introduziu cor e letras como referências às publicidades que já se via nos estádios, há mais de um século.

Foi também André Lhote quem, alguns anos mais tarde, escreveu sobre o escândalo criado por Nicolas de Staël que, em 1952, expôs a sua famosa série sobre o estádio Parc des Princes.

Staël: “traidor do abstracionismo” por causa do futebol

“Jogadores de Futebol”, Nicolas de Staël, 1952

Staël era, até então, um herói da pintura abstrata. Mas, depois de ter assistido um primeiro jogo da Copa entre a França e a Suécia (um pouco como aquele sofrido e não muito jubiloso que assistimos há 4 anos, no dia 16 de junho, entre França e a Austrália), se lançou num conjunto sensacional de pinturas figurativas (foto acima).

Staël escreveu até mesmo ao seu amigo, o poeta René Char, contando a emoção de ter visto a “massa de músculos em movimento”. Emoção que lhe valeu o título de “traidor do abstracionismo” dado pelo grupo que, depois, ele acabou chamando de “gangue da abstração”.

Sem contar as centenas de artistas brasileiros, atualmente há cada vez mais criadores no mundo que se inspiram no futebol. Alguns de maneira bastante crítica, aliás.

Maurizio Cattelan, Laurent Perbos (foto abaixo), Massimo Furlan, Gianni Motti, Miguel Calderon (na Bienal de São Paulo), Fabrice Hyber – que imaginou em 1998 uma bola cúbica que obrigava a criar regras de jogo especiais, como fazer gols nos “corners” – e muitos outros artistas contemporâneos.

E não são só os artistas plásticos que se entusiasmam…


Ouça  💕👇


Philippe Parreno e seu cúmplice escocês Douglas Gordon, por exemplo, filmaram Zinédine Zidane durante um jogo, por meio de 17 câmeras sincronizadas, com lentes diferentes, misturando 35mm e Alta Definição. Isso, durante um jogo regular do campeonato espanhol, La Liga. Assisti a este filme há 16 anos no Palais de Tokyo, em Paris: 90 minutos durante os quais se vê apenas um homem, um jogador, isolado das duas equipes, inteiramente só. O espectador tem a sensação de estar no terreno ao lado dele. Filme impressionante! (Trailer abaixo)

E, por falar em Zinédine Zidane, o infeliz e célebre gesto que ele fez sobre Materazzi também foi imortalizado num bronze de mais de 5 metros de altura que Adel Abdessemed apresentou em 2012 na exposição chamada “Eu sou inocente”, no Centro Pompidou em Paris (foto abaixo).

Até a próxima, que agora é hoje, países são países, governos são governos, política é política, e futebol… bem, futebol é futebol! Quem ama, não perde.

Dedico este artigo a Samuel Leon, editor do meu primeiro romance, ele que conheceu de perto os efeitos nefastos da ditadura militar na Argentina da famosa Copa de 1978, e é um dos maiores apaixonados por futebol que conheço.  

Dinamismo de um jogador de futebol, Umberto Boccioni, 1913-14
“Dinamismo de um jogador de futebol, Umberto Boccioni, 1913-14”
“Jogadores de Futebol”, André Lhote, 1918
Obra de Laurent Perbos, “A bola mais longa do mundo”, 2003. Cortesia do artista.
“Coup de tête”, 2011-2012, Adel Abdessemed, bronze

Vídeos

Trailer do filme realizado pelos artistas Philippe Parreno e Douglas Gordon, Zidane, um Retrato do Século 21:

Animação de Gareth Bale. “Tottenham vs Inter Milan” (Richard Swarbrick), 2011. @RikkiLeaks: 

Entrevista com o ex goleiro Albert Camus, que acabara de ganhar o Prêmio Nobel. O escritor comenta o prêmio durante o jogo entre a França e Mônaco, no dia 23 de outubro de 1957, no Parc des Princes (subtítulos em inglês):

 


A aberração revisionista e cancelista chamada Marilene Felinto

Para Marilene Felinto – no texto de ontem, dia 6, com o título Complexo de ‘Negrinha’ na Folha de S. Paulo – “é importante que haja revisão e alteração da aberração racista chamada Monteiro Lobato”. Para mim, é importante que haja revisão e alteração da aberração revisionista e cancelista chamada Marilene Felinto, cujas ideias resultam da mistura do velho revisionismo histórico com a cultura contemporânea do cancelamento.

Tia Anastácia, personagem adorável do “Sítio do Pica-pau Amarelo” de Monteiro Lobato. Foi de suas mãos que surgiu a boneca Emília.

O revisionismo histórico, já conhecemos. Hoje está até mesmo no negacionismo. A cultura do cancelamento, importada dos Estados Unidos, consiste em anular, denunciar, boicotar, excluir do debate, do espaço público, profissional ou cultural, toda pessoa de hoje ou de ontem, julgada inaceitável por suas opiniões, por seu comportamento ou simplesmente por ser considerada “refratária à moral dos novos tempos”.

Trata-se de exercer uma vigilância (woke) para denunciar os crimes da “branquitude” (parafraseando “negritude”), sobretudo a heterossexual, capitalista e normativa. Mesmo que esses “crimes” tenham se dado no passado, em outras culturas e entendimentos da realidade.

Seu móbil: o ressentimento, a sede de vingança. Sua ponta de lança: as redes sociais. E, agora, também os jornais. Os cancelistas podem literalmente decretar a morte social de um indivíduo ou de uma instituição. A influência desses linchadores na imprensa, na cultura e no seio da universidade não para de crescer. É uma verdadeira praga, e como todas as pragas, injusta e peçonhenta.

Na cultura do cancelamento, não se trata apenas de denunciar as ações ou os argumentos de alguém, mas de impedir qualquer pessoa de defender o seu direito à liberdade de expressão. O objetivo não é somente obstruir a palavra contraditória, mas estimular cada um a ser agente desta mesma cultura do ostracismo. Quem não entrar nessa, será rapidamente designado como cúmplice. Assim, o medo impera.

O linchamento às vezes leva à morte

Nos Estados Unidos, a cultura do cancelamento faz e desfaz carreiras. Bret Weinstein, professor da Evergreen State (Washington), teve que renunciar ao cargo após uma campanha viral, apenas porque se opôs à organização do “dia sem brancos” na universidade. O linchamento às vezes leva à morte: Mike Adams, professor de criminologia da Universidade da Carolina do Norte, polemista com ideias “não politicamente corretas” (com as quais pode-se até mesmo não concordar) foi tão assediado e ameaçado no Twitter que acabou suicidando-se em julho passado.

O diretor do MoMA de São Francisco foi demitido em julho de 2020, porque disse que continuaria a comprar artistas brancos para não entrar em uma “discriminação inversa”. Esta expressão é agora proibida pelo discurso antirracista. O emérito conservador do Metropolitan Museum de Nova York precisou se desculpar por ter perguntado em seu Instagram: “Quantas grandes obras de arte foram perdidas por causa do desejo de jogar no lixo um passado que não se aprova?”

Na França, a cultura do cancelamento ganha cada vez mais espaço. A filósofa Sylviane Agacinski foi impedida de falar na faculdade de Bordeaux devido à sua oposição à RMA (reprodução medicamente assistida). O jornalista e escritor Mohamed Sifaoui foi banido injustamente da Sorbonne por “islamofobia” porque realiza enquetes sobre os islamistas do crime organizado. A apresentação da peça As Suplicantes de Ésquilo foi cancelada, acusada de retratar uma blackface* racista. Recentemente, Alexander Neef, diretor da Ópera de Paris, referindo-se aos balés cult de Nureyev, disse que “algumas obras vão, sem dúvida, desaparecer do repertório”, pela mesma razão.

Como no Brasil, aqui o título O Caso dos Dez Negrinhos de Agatha Christie desapareceu. O livro foi ridiculamente rebatizado como Eles eram Dez.  No mundo da música, alguns sugerem o recrutamento de músicos não mais por mérito, mas por cotas.

Quando os tribunais intervêm, às vezes corrigem certos excessos. A inventora do #Balancetonporc (o #MeToo francês) foi condenada em 2019 por difamar o homem que ela acusou de assédio. O tribunal decidiu que a moça “ultrapassara os limites permitidos da liberdade de expressão”. Muito bom, mas tarde demais. A vida do acusado já fora destruída.

Blackface: cartaz do espetáculo de menestrel do americano William H. West (1853 – 1902), em 1900.

Muitos professores se calam e se adaptam por receio de “desaparecer”. Alguns aderem ao “cancelismo” com entusiasmo: uma universitária de Massachusetts ficou “super orgulhosa” de retirar a Odisseia de Homero de seu programa de ensino. Outros sofrem. Uma jornalista do New York Times teve que provar aos seus superiores a equidade no número de negros, brancos, mulheres e homens que serviram como “fonte” em sua reportagem.

 “Fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (Roland Barthes)

O politicamente correto substituiu a antiga censura. Quer instaurar o pensamento único. É, de novo, o mesmo totalitarismo que torna o debate impossível. Céline, tanto quanto Monteiro Lobato, pode e deve ser lido sem qualquer alteração. Apenas com explicação. Em literatura não se toca! Só a educação nos permite distinguir o certo do errado.

Como escreveu J. Roberto Whitaker Penteado, autor de Os Filhos de Lobato (Ed. Globo), em matéria especial para o Estadão, há um ano, “não se deve censurar ou mexer em uma vírgula sequer dos mais de 50 livros e quase 100 traduções que Monteiro Lobato publicou, entre 1914 e 1948”. “Reescrever qualquer parte da obra dele”, diz o escritor, “seria como reformar Brasília, transformar a Asa Branca em Asa Negra ou fechar o abraço do Cristo Redentor.”

Leia Felinto, em 1998, quando escreve sobre Spielberg. Ela, que quer “revisão e alteração” da literatura da nossa infância, aparece apontando teorias de conspiração, em plena histeria antissemita.

Até a próxima, que agora é hoje e não temos nada a ver com a “não leitura de Monteiro Lobato” por Marilene Felinto, mas temos tudo a ver com a verdadeira luta contra TODOS os racismos!

Nota: *Blackface (rosto negro) refere-se à prática teatral de atores que se coloriam com carvão para representar personagens afro-americanos de forma exagerada, geralmente em espetáculos de menestréis norte-americanos.