Memórias de Cuba

Estive lá, quando não havia voo do Brasil e éramos obrigados a pernoitar em algum país da América Latina que tivesse relações diplomáticas com a República de Cuba, voltando ao Brasil com escala em Miami, aonde íamos em voo clandestino, com bastante medo, junto a refugiados. Penso que foi o país mais ambíguo que já conheci. 

Experimentei Mojito, nos jardins da segunda (e formidável) Bienal de Havana, em 1986. Descobri Marguerita no Bodeguita del Medio, bar frequentado por Salvador Allende, Pablo Neruda e Ernest Hemingway. Trocava-se dólares por pesos, às escondidas, na rua e nos jardins perto de nosso hotel. A corrupção andava de mãos dadas com a penúria. Apesar disso, ou por causa disso, comprava-se charutos e rum Havana Club, para levar ao Brasil.

Os carros eram americanos e datavam de antes de 1959, ano da revolução cubana. A arquitetura em pedaços e os hotéis de luxo decaído, pareciam saídos de filmes de Hollywood, nos anos da Segunda Guerra. Na praia de Varadero, vi um exército de russos avermelhados em calção de banho. Juntos, assemelhavam-se a uma caridea, grupo de camarões, esticando-se ao sol. Nos supermercados, as prateleiras ofereciam pouquíssimos produtos, a maior parte vindos da Rússia. Afinal, eu estava no Caribe, mas em pleno país soviético.

País que tentava salvar a cara

País que tentava salvar a cara de todas as maneiras. Culturais, científicas, sociais. Penso que, na época, essa era a razão principal da existência da Bienal de Havana, da Escola de Belas-Artes, idealizada por Fidel e Che, e de todas as atividades culturais. Hoje, não sei. Também, devia ser o principal motivo dos convites a personalidades do mundo inteiro. Uma gigantesca operação de Relações Públicas.

Enchiam-nos de presentes, levavam-nos a visitar hospitais, escolas, obras sociais, centros de cultura. Apresentavam, é claro, apenas a face “apresentável” da capital. Jamais vimos a outra. À, de fato formidável e esforçada exposição, vieram os já falecidos Jorge Wilheim, presidente da 19a Bienal, Arthur Luiz Piza e Sergio Camargo, de Paris, entre outros artistas brasileiros simpatizantes do regime castrista.

Naquele momento, ninguém se perguntava a razão de tal demonstração e a necessidade de tanta persuasão. Ninguém sentia-se manipulado. Nenhum de nós percebia que era apenas mais um pião de propaganda… fidelista.

Sem a interferência indecente da viúva alegre

Vi e ouvi, de perto, Fidel Castro discursando em grande espaço. Ele falou, por ocasião da inauguração do grande evento, como não poderia deixar de fazer, para tantos convidados do mundo inteiro. Foi em espaço aberto, em uma tribuna – com seus ministros. Destacava-se de todos. Lembro de um belo homem, grande e carismático que, no alto de seus 60 anos, discorria de maneira bem diferente do populismo barato, que vemos nos dias de hoje. O assunto era o poder da educação e cultura no desenvolvimento de um povo. Penso que o chamado “ditador do proletariedado” até que foi sincero, pois o seu governo – por inteligência ou estratégia – sempre privilegiou Educação e Cultura.

Não lembro muito mais do que isso. Estava impressionada com a cena e siderada pela “aparição”, mesmo imaginando que tudo que o que vemos nunca é exatamente o que vemos. Foi o que aconteceu na minha conversa com a viúva de Wifredo Lam (1902-1982) , para trazer o artista ao Brasil. Para minha surpresa, ela fez chantagem. Propôs ajuda, sim, mas em troca de uma exposição individual de seu amante, artista medíocre, na Bienal de São Paulo.

Denunciei isso, no meu encontro com o Ministro da Cultura cubana. Ele conseguiu contornar a questão. Obtivemos Lam, na 19a Bienal, com auxílio direto de Cuba, sem a interferência indecente da viúva alegre.

Observei bastante, não escrevo tudo

Escrevo pouco, observei mais sobre essa experiência de alguns dias durante o lapso de três anos que nos separava da queda do muro de Berlim e fim da Guerra Fria. Agora, apenas digo que, para mim, Cuba é o país mais ambíguo que já conheci. Amei. E também detestei. Penso que, talvez, jamais saberei o que é, de fato.

Até a próxima, que agora é hoje, e como saber o que é um lugar, onde tudo pode ser “maravilhoso” e “infernal”, ao mesmo tempo?

Armando Mariño, Bienal de Havana, 2003.
Marta Palau (1934 – 2022), artista espanhola, naturalizada mexicana, diante de sua magnífica instalação na 2a Bienal de Havana, em 1986.

‘Decolonial’: novo chique, novo woke ou novilíngua?

No Brasil, trata-se da imitação de mais uma doutrina radical que reduz a realidade humana; da invenção ideológica de mais um (nem tão) novo sectarismo, e de uma injustiça epistêmica. Com a arrogante ambição de “desconstruir” as humanidades artísticas, universitários militantes (e professores anuentes, talvez porque queiram agradar à jovem plateia que lhes prodiga ‘likes’, talvez por covardia, medo de represálias ou, talvez, porque adotaram, de fato, a ideologia) travam uma batalha intelectual como se certas obras e artistas de grupos sociais tivessem sido ‘injustiçados pela cultura ocidental’. Como se os povos originários e sua extraordinária cultura e luta, pessoas negras, mulheres, estivessem sendo, em pleno século 21, ‘silenciados’ pela história, a ‘alta cultura’, e agora devam ‘se empoderar’ (para usar a palavra da moda) e ‘concorrer’ com ela.

Também, como se existisse ‘norma universal’. Como se na arte – que é livre – haja ‘padrões’ que pudessem ter sido ‘condicionados’ pela colonialidade. Como se Picasso, para dar apenas um exemplo, não tivesse, ao contrário, reverenciado a arte africana e se inspirado nela. Como se o Ocidente não tivesse se debruçado sobre a arte da Oceania, do arquipélago Malaio, da América e das terras árticas, para aprender com elas.

Como se ‘primitivo’ e ‘naif’ fossem apenas uma ‘construção’ ou uma ‘solução encontrada pela hegemônica experiência europeia’, e já não existissem por si, independentes das conquistas de povos ‘cultos e civilizados’. Como se – na continuação desse raciocínio paranoico woke – tivesse havido uma lógica em ‘categorizar’ essa arte original, para que ela não ‘ameaçasse’ a arte moderna. A história prova o contrário. Todos sabemos, e Dubuffet demonstrou perfeitamente, que a ‘art brut’ junto a tantas outras, influenciou profundamente (jamais ameaçou) o modernismo. Menos ainda, a arte contemporânea. 

Mas, depois de ler os parcos sofismas moralistas que sustentam essa loucura nas universidades brasileiras, olhemos mais de perto o resultado do que se defende. Possui essa suposta ‘nova’ arte decolonial, estatura de ‘adversária’? Revoluciona alguma coisa? Mobiliza-se em projeto? Não é o que se constata nos inconvincentes e absconsos exemplos que costumam nos trazer.

Esse “neopós-modernismo” mutante, que se esforça tanto para se auto justificar, repete constantemente seus quatro temas-chave: indefinição de fronteiras, poder à linguagem, relativismo cultural e até mesmo evicção da noção do indivíduo e do universal. O gênero ficou mais importante do que o corpo, a raça mais relevante do que o homem, a vitimização decolonial tomou o lugar da política de convergência, a noção de “dominante e dominado” e seu emprego em discursos anticientíficos, beira o fanatismo. Qual a sua real contribuição e alcance?

Iván Argote, série “Turistas”.
“Eles mantêm a sua querela, porque não se mantêm senão por ela.”
René Girard (1923-2015), em ‘O Bode Expiatório’ (1982)

Arte “decolonial: novo chique, novo woke, ou novilíngua? O início dos anos 2010 viu o surgimento de um fenômeno que se autodenominou “woke”. Ser “woke” significava estar “acordado”. Tratava-se, em princípio, de permanecer vigilante diante das injustiças sofridas pelas minorias nos países ocidentais. Mas, como era de se prever, o movimento desbordou.

Em 2020, os diretores da National Gallery of Art de Washington, Tate Modern de Londres, do Museum of Fine Arts de Boston e Museum of Fine Arts de Houston cometeram o absurdo paranoico de “adiar para 2024” uma retrospectiva dedicada a Philip Guston, grande mestre da pintura americana do século 20, porque algumas de suas pinturas retratam figuras encapuzadas da Ku Klux Klan. Anunciaram que esperariam “até o momento em que” (eles acharem que) “a poderosa mensagem de justiça social e racial que está no centro da obra possa ser interpretada mais claramente”.

Em seu novo ensaio, A Religião Woke, publicado há alguns meses pela Editora Grasset (recomendo que seja traduzido, urgentemente, no Brasil) Jean-François Braunstein, emérito professor de filosofia contemporânea, história da ciência, filosofia da medicina e ética médica, na Sorbonne, vê no wokismo “muito mais do que uma simples onda de ‘loucura passageira’ ou esnobismo intelectual”. “Trata-se”, para ele, “de um autêntico fanatismo: seus seguidores, profundamente intolerantes, disfarçam suas opiniões de ‘ciência’ e pensam que podem doutrinar. Inclusive crianças.”

O filósofo recorre a textos, teses, conferências e ensaios que ele explica longamente, para denunciar esta nova religião destruidora da liberdade. O objetivo dela é “desconstruir” toda a herança cultural e científica de um Ocidente acusado de ser “sistematicamente” machista, racista e colonialista. Segundo Braunstein, “é a primeira vez na história que uma religião nasce nas universidades.” Escreve: “Tudo está a postos para a instauração de uma ditadura em nome do “bem” e da “justiça social”.

Revisionistas e cancelistas

A questão é sempre mais política do que científica, e me surpreende que, com relação ao wokismo da arte decolonial, historiadores brasileiros possam aquiescer a propósitos de recriar a história, redundar particularidades, questionar a completude universal da cultura humanista, eliminar as fronteiras entre arte e artesanato, vitimizar grupos, distorcer formas sociais em relação a posições marginais, induzir à percepção errônea do real.

Me admira que cientistas que pesquisam eventos passados de povos, países, períodos e indivíduos, possam compactuar com a pobreza de uma ótica quase que unicamente “colonialista”, sob o ressentimento e ódio do conhecimento e da cultura secular da humanidade (ocidental ou não).

Isso, em nome do “politicamente correto” identitarista, etnicista, racialista; também do ideologismo de gênero, classe, de geopolítica, entre outros. E que estes cientistas possam julgar textos e obras, às vezes de há séculos, com olhos de hoje; atuar como revisionistas, quase cancelistas, à maneira da aberração chamada Marilene Felinto.

Fred Wilson: “Os antigos egípcios foram negros, brancos ou marrons?” (2012)

Sara é uma francesinha mestiça, habituada à diversidade, que, aos 15 anos, estuda numa escola de periferia. Seus colegas são brancos, negros, asiáticos, magrebinos, judeus etc. “Nos entendíamos bem, havia solidariedade, respeito e benevolência entre todos”, conta ela. “O curso de ‘educação cívica’ chamado Existe racismo antibranco? mudou a nossa vida. A partir das aulas da professora (que depois foi despedida), muitos começaram a se ver como vítimas e a só falar nisso. O WhatsApp da classe virou um campo de batalha com dois campos se enfrentando: os brancos, acusados de racismo, escravidão, colonialismo, desigualdade.” E Sara explica, com maturidade: “O curso não ajudou a refletir. Apenas instalou um clima de ódio, inimizades e transformou em vítimas alguns de meus colegas que, antes, iam tão bem.”

O discurso woke oferece poder de denúncia e boa consciência aos novos e arrogantes prescritores ideológicos. Alguns artistas defendidos por eles, como Jota Mombaça (1991, Natal, RN) – mesmo mimicando intenções na sua entrevista absconsa para a 34a Bienal (vídeo mais abaixo) – não parecem se mobilizar em projeto. Uns e outros, fundam-se sobretudo em pensadores conhecidos, embromando teorias, mascarando o vazio de seu pensamento com discursos ininteligíveis, queimando as pistas, criando listas de suspeitos de um lado, e apologizados de outro.

A luta política sempre produziu uma retórica bem provada: as ideias do adversário são contraditórias, suas paixões interessadas, seus valores imorais. Mas o movimento woke segue uma lógica mais inquisitorial e pessoal: desmascarar culpados, desconstruir estereótipos e álibis dominantes, revelar suas pulsões. E tudo em nome do “sofrimento” que os inimigos infligem, e das “identidades que estes esmagam”. Queixas – de sexo, gênero, raça, natureza, colonialidade – tornam-se motores da História. A utopia do mundo de reconstruir é substituída pelo imperativo do mal menor: não ofender/estigmatizar um grupo, indignar-se, arrepender-se, lamentar-se sempre. Viva a nova Inquisição!

Mas, vejamos quem é que possui pulsões, álibis dominantes e estereótipos.

Quem é o ‘opressor’?

É bom lembrar que a maioria da população, em qualquer país, está tão obcecada pela questão do colonialismo quanto pelo destino dos LGBT & Co. Ou seja, não está preocupada nem um pouco. E não é preciso dizer quais são os seus assuntos primordiais.

Ademais, neste momento deletério de policiamento ideológico identitário, a maioria dos que conhecem o assunto, encontra-se bastante irritada com todas as censuras e proibições dos “bem pensantes”. O woke obriga a se vigiar, se autocensurar, deformar seu discurso ou calar. A saia ficou cada vez mais justa. Viver, com tantas amarras, tornou-se extremamente desconfortável.

Um famoso conservador que conheço – e que não quis dar o seu nome numa entrevista a um jornal, por medo de represálias e manifestações em frente do seu museu – declarou: “Essa nova ordem moral que privilegia o indivíduo em detrimento da obra é um enorme retrocesso porque, por princípio, é incompatível com a arte que permanece inteiramente comandada pela liberdade”. “Nossa época está ávida de vítimas”, disse ele. “Esse sistema unívoco é aquele, excessivo e sem apelo, de supostos juízes revolucionários. Nem dá mais para contestar um ponto de vista, ter outra opinião. Até o uso de palavras torna-se fonte de conflito.” E conclui, com justeza: “Critérios morais prevalecem sobre critérios artísticos.”

Depois dessa declaração, pensemos juntos. Quem “silencia” quem?  Quem é o opressor?

Estratégia de mercado

“Arte decolonial” é uma invenção nociva, sustentada por sofismas facilmente desmontáveis, tanto quanto o identitarismo, onde mais esta forma de censura busca a sua legitimidade. Penso que a cultura woke, seja qual for, nega o livre arbítrio e a complexidade da moral, apenas para poder existir. “Mantêm a sua querela, porque não se mantêm senão por ela”, como está na epígrafe girardiana deste artigo. “É a inimiga da criatividade” (Seth Greenland).

Porém, a fantasiosa doutrina “decolonial” não é apenas uma maneira incorreta e desonesta de impor qualquer trabalho, seja ele artístico ou intelectual.

No site da 34a Bienal: “Jota Mombaça (1991, Natal, RN) define-se como “bicha não binária, nascida e criada no nordeste do Brasil”. Jota pesquisa as relações entre humanidade e monstruosidade, investiga a pertinência do queer como categoria no contexto brasileiro e tensiona a constituição de subjetividades e marginalidades nos centros e periferias do capitalismo. Em suas performances e escritos, seu corpo desafia a branquitude heterossexual cisgênero e masculina que se impõe como norma universal. Jota expõe as violentas políticas de morte e de invisibilidade às quais foram submetidos os corpos racializados ao longo da história colonial, que perduram atualmente sob a ficção da democracia racial.”(…)

Trata-se sobretudo de uma estratégia comercial: colocar sob holofotes trabalhos considerados ruins (porque são ruins mesmo, e não necessariamente de uma ótica colonialista, branca, patriarcal ou eurocêntrica) ou que não são vistos e percebidos por si próprios (porque de fato não têm nada para chamar a atenção, nem mesmo um programa estético) e que por estas razões não vendem e não “se vendem”.

Não me admira que um dos artistas (indígena aculturado), tão celebrado pelo “woke festivo” brasileiro, tenha formação publicitária. A sua arte (ou artesanato, para sermos mais exatos) nasce da vontade de aceitação pelo público, mostrando os melhores aspectos do seu “produto decolonial”. É publicidade pura. Está muito longe da arte.

Arte woke decolonial, é o culto absoluto do superego

Mensageiros woke adoram a palavra “narrativa”. Repetem bastante. Alguns não chegam a citar “arte”, mesmo quando é de arte que se trata. Não falta muito para sermão religioso. O woke artista e seu woke crítico se querem literalmente perfeitos, sem pecado. Arte woke decolonial é maniqueísta, culto absoluto do superego. Fogueira para os hereges e anti-modelos!

A questão é: fora das linchagens na imprensa e nas redes, e dos pequenos debates universitários estendidos às instituições em decadência, como a documenta de Kassel e a Bienal de São Paulo, pode o woke artístico mudar alguma coisa na vida cultural e política de um país? Pergunto, porque entre intelectuais mais evoluídos, vemos que o movimento encontra enorme resistência. Por enquanto, que se saiba, espécimes artísticos marginais do decolonial, só são pinçados pelas camadas urbanas e diplomadas, da moda.

Sabemos que no mundo virtual das GAFAM – Google (Alphabet Inc), Apple, Facebook (Meta), Amazon e Microsoft – qualquer sistema de pensamento promovido por jovens de origem menos humilde e com formação, está fadado a ganhar popularidade. E apenas nas classes altas. Mesmo quando o assunto trata de minorias e desfavorecidos. Não existe proletariado woke. Na França, os trabalhadores não sabem o que significa “decolonização”. Esse conceito é como “ópio dos intelectuais”, para usar a famosa fórmula de Raymond Aron sobre o marxismo.

Exemplo de “soft woke” ou “decolonial glamour” (essas palavras são invenções minhas). Retratos oficiais de Barack Obama por Kehinde Wiley, e de Michelle Obama por Amy Sherald, dois pintores afro-americanos. A primeira obra retrata o ex-presidente de terno, sentado em meio a folhas e flores típicas do Havaí, onde nasceu. Seu autor procurou “questionar a retórica usual de poder associada à elite masculina branca”. Já o retrato da ex-primeira-dama é inspirado em tecidos e estampas subsaarianos.

Também pergunto: crítico que defende a chamada arte decolonial, consegue analisar seus marginais prediletos de modo que critérios artísticos prevaleçam sobre critérios morais?  Ou, para ele, talvez, critérios históricos, sociológicos, psicológicos, psicanalíticos, econômicos, políticos, científicos, estéticos (filosóficos), enfim, tudo que igualmente diz respeito à crítica e à arte – depois de séculos – não existem mais?

O “woke capitalista”, como o que infestou até mesmo Walt Disney e as marcas de luxo; e o “soft woke”, “decolonial glamour” – expressões que inventei para designar o “woke comercial” de Kehinde Wiley e Amy Sherald (foto acima) – são melhores do que o universitário, porque pelo menos não se levam tão a sério. Mesmo os retratos oficiais de Obama e Michelle – à maneira do brega Romero Britto, que também pinta presidentes, de Dilma a Bolsonaro – são mais didáticos e colocam a codificação do poder americano de cabeça para baixo.

Não há uma só pessoa madura, que seja woke.

Também a idade, desempenha papel fundamental nesta praga. Não há uma só pessoa madura na França, por exemplo, que seja woke. Há pouco tempo, li que os adeptos do “wokismo decolonial”, neste país, geralmente têm entre 18 e 35 anos. Há um prognóstico ingênuo de que seriam remodelados pelo implacável mundo do trabalho. Não é bem assim.

O wokismo é uma epidemia. Trata-se, de fato, de um “vírus”, tanto a partir de Derrida quanto de certas feministas e decolonialistas. Precisa de virologistas.  É um grave perigo para o mundo do trabalho, suas relações sociais e a economia que dele depende, entre outras coisas.

Só nos Estados Unidos – onde a praga começou primeiro – encontra-se quarentões imaturos ou oportunistas, colados à ideologia. Curiosidade: segundo as estatísticas (Google confirma) muito mais mulheres são adeptas do wokismo (de todos os tipos) do que os homens. Não é muito difícil entender as razões.

A grande diferença entre os Estados Unidos, o Brasil que o imita (com bastante atraso) e a França, é que temos aqui uma esquerda anti-woke bastante forte. Ela está consciente e resiste ao modelo americano, por mais “politicamente correto” que possa ser. Por mais que o colonialismo seja, de fato, uma questão que lhe fale de perto. Grandes professores, especialistas no assunto, como o brilhante Pascal Blanchard, odeiam ideologias decoloniais. Sobretudo as que instrumentalizam os verdadeiros pensadores do colonialismo.

A teoria do filósofo e antropólogo René Girard (1923-2015) – cuja síntese figura no meu penúltimo livro (Direi Tudo, Ed. Perspectiva 2017), no capítulo O Inferno – explica bastante, creio eu, o mal-estar geral que presenciamos à nossa volta, e em toda parte.  Sinto que precisamos dela neste momento, mais ainda do que a discussão de Freud sobre o mal-estar na cultura, a pulsão de morte e a civilização. A questão girardiana do “desejo mimético” exige um pouquinho de esforço para acompanhar, mas vale a pena.

O antropólogo francês René Girard em junho de 2008. LINDA CICERO/STANFORD NEWS SERVICE

Arte (e virada) decolonial não existe

Realmente, não existe. Arte é arte tout court.

Totalmente de acordo com o que diz o presidente Emmanuel Macron: “Na colonização existiu o horror e também a emergência de Estados e riquezas. É a realidade da colonização: elementos de civilização e de barbárie.” Demonizar, sem relativizar, é wokismo burro (perdão pela redundância). A mim, dá muita pena de historiadores e intelectuais que sigam este caminho.

Acabaram essas relações de poder

Nos anos 1970, militava-se pela “arte latino-americana”, como no famoso Simpósio de Austin. Do colóquio equivocado “El artista Latinoamericano y su identidad” (que já tratava – e mal – de colonialismo), participaram até mesmo críticos como Damián Bayón, Aracy Amaral, Juan Acha, Frederico de Morais, Octavio Paz e Marta Traba. Obviamente, Walter Zanini e outros que tinham uma visão universalista e mais aberta da arte, não entraram na onda.

Com as nossas bienais, nos anos 1985 e 1987 – e já antes de nós, com as formidáveis edições de Walter Zanini – eliminamos fronteiras geopolíticas e apontamos a mundialização. Faz muito tempo que não existe mais relação de poder entre Europa e colônias. Faz muito tempo que o mundo, apesar de suas diversidades, é um só. O planeta inteiro se comunica. Todas as formas de arte, em toda parte, na Austrália como no Brasil, têm o seu lugar e as suas trocas.

Hoje, o homem volta-se ao universo, a lugares jamais explorados. Externos ao planeta Terra.

Há sete anos, já na 32a Bienal, sem o advento woke, mas, dentro do mesmo espírito, “trabalhos eram usados para criar uma estratégia de decepção”, segundo Rosalinda Fumarola, crítica de arte ítalo-brasileira inventada por mim, em mais uma entrevista imaginária ao jornal Valor Elevado, também inventado por mim.

“A história universal é a de um só homem.”

Por causa das diversidades, e graças às suas particularidades, sim, a arte é universal. Assim como o nosso planeta, que pertence ao Universo. J. L. Borges dizia: “A história universal é a de um só homem.”

Não penso que a novilíngua identitária triunfará. Mesmo se, com as redes, arrebanha incautos carneirinhos. Mesmo se, meio século depois, os pseudoativistas simulem raciocínio lógico, com estrutura aparentemente consistente e correta, produzindo a ilusão de uma “verdade”. Qualquer herdeiro de Austin, só pode involuir. Além de que, qualquer estratégia, mesmo e sobretudo as de mercado, sempre tem curta duração.

É necessário coragem para dizer “não” a este mundo orwelliano que nos é prometido. Não precisamos nos calar e deixar o populismo prosperar.

Até a próxima, que agora é hoje e, se o destino for venturoso com as futuras gerações, essa “virada” fictícia, de ícones chiques e tendência, será lembrada apenas como outra veleidade que passou!

Detalhe da instalação “The American Library”, do artista anglo-nigeriano Yinka Shonibare, 2019. Foto ©️Carol Ann Dixon.