Morre Miyake, o artista da vanguarda para as massas

Sinto-me especialmente triste. Aos 84 anos, faleceu um dos talentos que mais admirei e cujas roupas prêt-à-porter imperecíveis, até mesmo de segunda mão, compro quando posso e uso com alegria há 30 anos. Raros são os estilistas que, apesar de seu sucesso no mercado, realizam objetos de aparência tão conotativa como este designer, e com tal complexidade moral, social e histórica. Exagero? Não, se formos buscar as origens dos signos que ele realmente fez convergir. Em suas roupas estão, nada mais nada menos do que, a vida, a energia, a violência, a sensualidade e a estética do passado e do presente japonês. 

No campo especializado da arte sempre foi feita uma distinção entre a criação autônoma para os iniciados e a produção para as massas. Estabeleceu-se uma ordem hierárquica, baseada nesta oposição, entre o “sério” e o “frívolo”, o “alto” e o “baixo”, o “puro e o “impuro”. No presente, depois do longo caminho iniciado pela Pop Art, não existem mais grandes antagonismos. O resultado da nova relação entre a vanguarda e a cultura de massa é uma espécie de panteísmo artístico que afeta todos os aspectos da mercantilização da cultura e da “culturalização” do mercado, onde a arte pode aparecer em qualquer parte, mesmo nos lugares mais inesperados. É o caso de uma moda, como a de Issey Miyake, por exemplo, a única, penso eu, com a qual sempre me identifiquei.

Hoje, quem vê na superfície os plissados aparentemente “fashion” que marcam a criação deste gênio das “roupas de arte”, esquece os labirintos do visível. É incapaz de perceber a abstração nos rostos gigantes de Chuck Close, a harmonia no barulho de John Cage, e a não negociabilidade da super negociabilidade de Andy Wharol. E, com certeza, também não consegue diferenciá-los dos desenhos diversamente revolucionários feitos para a produção de massa como os de Alexandra Exter, Popova, Tatlin, Courrèges ou Cardin.

Porém, é necessário lembrar, além de tudo, que a moda é um sistema de signos abstratos cujo significado é determinado pela máxima aceleração e proliferação de mensagens. Nela, a velocidade da comunicação é tão grande, que o seu significado desaparece a cada momento, muda de ano a ano, e vive apenas em meio à noção cíclica das coleções. Existe ali um renascer contínuo e uma fagocitose irresponsável da história (o chamado “revival”) que a tornam irremediavelmente pós-moderna até hoje.

Não é por acaso que a revista Artforum, durante a apresentação das coleções de verão em 82, teve como capa uma roupa-escultura de Miyake composta de armadura feita de rotim, uma espécie de palhinha de junco pintada em preto e vermelho, sobre uma brilhante saia plissada de náilon e poliéster. No editorial, os críticos Ingrid Sischy e Germano Celant apontavam veementemente esse exemplo máximo da “convergência de signos” que marcava, naquela época, a pintura, arquitetura, fotografia e cinema chamados “pós-modernos”.

Mas, mesmo no século 21, as roupas de Issey Miyake continuam sendo o retrato da eterna ressurreição. Tanto quanto aconteceu com os movimentos do neoclassicismo, new wave, neoexpressionismo, neorealismo, neoromantismo, neofovismo, neolook, etc, nos anos 80, o seu trabalho continua dependendo da manipulação de modelos anteriores. E, no seu caso, com a hiper consciência dos estilos e das tradições históricas do seu país, o Japão. O artista lembra as atitudes do Maneirismo do século XVI, retomadas quatro séculos depois, que se baseiam não nos originais, mas nas reproduções que transformam a arte em lenda, em ícone popular.

Poucos são os artistas que, apesar de seu sucesso no mercado, realizam objetos de aparência tão conotativa como este designer, e com tal complexidade moral, social e histórica. Exagero? Não, se formos buscar as origens dos signos que ele realmente faz convergir. Em suas roupas estão a vida, a energia, a violência, a sensualidade e a estética do passado e do presente japonês. Cultura de massa e alta cultura – ele propôs até mesmo uma colaboração com artistas contemporâneos do seu país para a famosa série dos “pleats please” (plissados por favor) – gueixas e Samurais, quimonos e armaduras, hábitos e rituais, alta tecnologia, mangas (gibis), personagens de ficção científica. Com essa pesada bagagem histórica e iconográfica, e por meio do diálogo entre o passado e o futuro, Miyake criou equivalências entre o esculpir e o modelar, a rigidez e a maciez, o natural e o pintado, o estático e o movimento, evidenciando sempre a situação do individuo na tecnocracia que caracteriza a vanguarda orientada para a massa.

Os apetrechos são carregados de dispositivos mnemônicos que representam eventos e informações cumulativas. Mas os elementos da moda e do gosto estão presentes em seu trabalho, é claro. Assim como a questão do corpo em nossos dias. Certas roupas poderiam compor uma versão “leve” do Balé Triádico de Oskar Schlemmer, o “pai da performance”, na Bauhaus. Não é por acaso que alguns de seus desfiles lembram o trabalho que Miyake realizou em conjunto com Maurice Béjart, William Forsythe e o Balé de Frankfurt.

Seus tecidos amassados, frisados, plissados em cascas ou ziguezagues, sempre vibram e estremecem, mimetizando os movimentos corporais vitais da inspiração e expiração, sístole e diástole. Issey Miyake tratava da vida e, portanto, do tempo e do sonho. As suas experiências eram físicas, materiais, e paradoxalmente abstratas. Frequentavam os profundos labirintos do visível, até mesmo quando viviam nas aparências cotidianas do invisível.

Até a próxima, que agora é hoje e perdemos mais um grande!

No centenário da Bauhaus, perdoar o Holocausto não é a questão

Durante encontro com pastores evangélicos, no Rio de Janeiro, um dia antes da comemoração do centenário da Bauhaus – que para alguns historiadores deixou também o campo de Auschwitz como herança – o presidente brasileiro declarou que o Holocausto “deve ser perdoado, porém não esquecido”. A plateia bateu palmas e os analistas políticos o condenaram, ficaram indignados, lembraram a História, falaram do escritor Primo Levi, dos campos de concentração… Só que a questão vai muito mais longe.

Imagem: Gráfico “A herança da Bauhaus”, na exposição “O espírito da Bauhaus” no Museu de Artes Decorativas em Paris (2017), onde se vê o campo de exterminação de Auschwitz.

Para quem o presidente falava? Para evangélicos que, como ele, sabem que “perdoar” está na Bíblia. Como é que se justificava? Dizendo que “os israelenses perdoam o Holocausto”, o que é falsidade ou ignorância. Se Israel perdoasse o Holocausto, não haveria mais razão para a sua existência, uma vez que a fundação daquele país se deve em essência à tragédia da Shoá. O problema, portanto, não é um político de má-fé, ignorante ou inábil dizer que foi eleito “por milagre”, ou ele “perdoar” ou não o Holocausto. O gravíssimo problema, isto sim, é a mistura de religião com Estado.

Um cristão pode perdoar qualquer coisa, mas um governo não pode. Um presidente fazer uma declaração como esta é uma infâmia não porque o Holocausto foi o maior genocídio do século 20, o resultado de um programa sistemático de extermínio étnico de seis milhões de judeus patrocinado pelo Estado nazista de extrema-direita, durante a Segunda Guerra Mundial. O presidente declarar isso é uma ignomínia porque ele é presidente.

Sim, “Jair Bolsonaro precisa voltar para a escola”, como disseram alguns. Mas penso que certos jornalistas, analistas políticos e historiadores também. Em vez de condenar o “mensageiro”, deveriam condenar a condição hierática do país ao qual ele serve. E dizer aos seus leitores não apenas que este presidente está sendo inapto, mas sobretudo explicar porque é tão importante um estado laico em nossos dias.

Hoje, dia 12 de abril, comemora-se o centenário da Bauhaus, instituto fundado pelo belga Henry Van de Velde, depois dirigido por Walter Gropius, que representa igualmente toda uma corrente artística relativa à modernidade na arquitetura, design, fotografia e dança. E cuja herança também foi, longe de poder ser perdoada, o campo de exterminação de Auschwitz. Quanto ao presidente brasileiro, volto a ele no final.

Ver Auschwitz como ‘herança da Bauhaus’, não é do gosto de todos

A história desta escola artística inovadora de Weimar, na Alemanha, estabeleceu as bases da reflexão sobre a arquitetura moderna, como a conhecemos hoje, e sobretudo do chamado “estilo internacional” que floresceu entre os anos 1920 e 1980 no mundo inteiro. Móveis, objetos do cotidiano, têxteis, obras de arte, o movimento queria “dar vida ao habitat e à arquitetura por meio de uma síntese entre as artes plásticas, o artesanato e a indústria”. Por um desvio, talvez, o arquiteto Fritz Ertl participou da concepção do campo de concentração de Auschwitz. Estudante na Bauhaus, de 1928 a 1931, Ertl que se tornou um SS durante a guerra, de fato desenhou as barracas horrendas e funestas do campo de exterminação na Polônia. Ver esta “realização” como “herança da Bauhaus”, certamente não é do gosto de todos.

Mesmo porque a Bauhaus foi proibida pelo poder nazi e não raro mostrada, ao contrário, como símbolo da resistência. A verdade é que alguns de seus membros se acomodaram ao novo regime e outros o apoiaram francamente (veja “a lista dos 11”, no final deste post). Símbolo do modernismo, entretanto, esta escola foi considerada pelos nazistas como um abrigo à subversão “judaica-bolchevique” e eles a fecharam em 1933. Em seguida aceitaram reabri-la com a condição de que se expulsasse alguns de seus professores, entre os quais Kandinsky, o que Ludwig Mies van der Rohe, o diretor na época, se recusou a fazer.

Inúmeros membros da Bauhaus foram, então, proibidos de trabalhar ou tiveram que deixar a Alemanha. Por isso é tão chocante e difícil de entender que outros tenham contornado ou sustentado o regime fascista, pensando que a “modernidade” das formas (em escala humana), fosse compatível com a estética monumental, aterradora e glacial, totalmente representativa da extrema-direita do nacional-socialismo. Um partido que, para um presidente negacionista que quer justificar o seu lado e agora também perdoa o Holocausto, só pode ser de esquerda.

Até a próxima que agora é hoje!

Maquete de casa modernista em “O espírito da Bauhaus” (2017), no Museu de Artes Decorativas, Paris

A lista dos 11

Alfred Arndt (1896-1976)
Arquiteto da Bauhaus que adere ao partido nacional-socialista nazista em 1937. Trabalha ativamente, inclusive como chefe de propaganda nazista para o regime.

Herbert Bayer (1900-1985)
Grafista. Cria documentos e cartazes de propaganda para o regime nacional-socialista, no estilo Bauhaus.

Friedrich Engemann (1898-1970)
Estudante e depois professor na Bauhaus de 1927 à 1933, ano em que adere ao partido nacional-socialista.

Fritz Ertl (1908-1982)
Austríaco, estuda arquitetura na Bauhaus de 1928 à 1931. Torna-se SS e desenha os projetos para o campo de exterminação de Auschwitz-Birkenau.

Walter Gropius (1883-1969)
Arquiteto, fundador da Bauhaus em 1919, adere à Câmara da Cultura do Reich fundada por Goebbels e participa do concurso da Reichsbank organizada pelo novo poder nacional-socialista. A sua correspondência revela que Gropius era antissemita.

Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969)
Arquiteto, diretor da Bauhaus de 1930 a 1933. Expulsa, com a ajuda da polícia, os estudantes comunistas. Negocia com os nazistas para conseguir a reabertura da Bauhaus. Assina uma declaração de apoio a Hitler e adere à “Câmara da Cultura” do Reich.

Ernst Neufert (1900-1986)
Adjunto de Gropius, ensina na Bauhaus. Fascinado por Le Corbusier (outro arquiteto controvertido), escreve a ele para recomendar um aluno que deseja fazer estágio em Paris. Publica o “Guia da Racionalização da Arquitetura”, utilizado até hoje. De 1938 a 1945 Colabora com Albert Speer, o arquiteto oficial do 3° Reich. Seu modelo de referência para o “sistema de medida modular” (à maneira de Le Corbusier) é um homem loiro de 1,75m. Esta foi a “norma” adotada para acelerar as construções nos territórios conquistados pelos nazistas.

Lilly Reich (1885-1947)
Colaboradora de Mies van der Rohe. Em 1934 ela organiza a exposição “Povo alemão – Trabalho alemão”.

Hinnerk Schepper (1897-1957)
Estuda na Bauhaus de 1919 a 1922 e é nomeado diretor do ateliê de pintura mural. Pinta afrescos de propaganda nazista.
Hermann Göring lhe encomenda murais para a sua mansão.

Oskar Schlemmer (1888-1943)
Coreógrafo, diretor de teatro e professor, de 1923 à 1929. Rejeitado por seus colegas em razão de sua simpatia declarada pelo nacional-socialismo, deixa a Bauhaus para ensinar em Breslau. Adere à “Câmara de cultura” do Reich. Realiza para concurso, um afresco com multidão fazendo a saudação nazista. Segundo o historiador Eric Michaud (de quem assisti a notável defesa de tese), Schlemmer escreveu a Goebbels para assegurar o seu apoio ao nacional-socialismo. Mesmo assim, foi considerado “artista degenerado” e proibido de exercer.

Lothar Schreyer (1886-1966)
Predecessor de Oskar Schlemmer na Bauhaus. Em 1933 assina uma declaração de obediência e apoio a Hitler. Mesmo assim, em 1937 também foi classificado “artista degenerado” e proibido de exercer.