Contra o aborto e a favor das armas

Os nefandos da Suprema Corte nos Estados Unidos decidiram que abortar não é mais um direito, mesmo em casos de estupro. A sentença, que reverte uma decisão tomada pelo mesmo tribunal há meio século, é uma bomba na vida das mulheres e da política americana. Enquanto alguns países progridem, os bárbaros religiosos da extrema-direita americana, copiados pelos conservadores e integristas brasileiros (como a juíza imbecil que tentou destruir a vida de uma criança) – uns e outros contra o aborto e a favor das armas – fazem suas pátrias regredirem à Idade Média.

Barbara Kruger, “Sem título” (1991)

Dos 194 países do planeta, apenas 10 concedem às mulheres exatamente os mesmos direitos legais que aos homens, de acordo com o relatório publicado recentemente pelo Banco Mundial. São eles: França, Bélgica, Dinamarca, Letônia, Luxemburgo, Suécia, Canadá, Islândia, Portugal e Irlanda.

Na Índia, Afeganistão, Síria, Somália, Arábia Saudita, Kuwait, Paquistão, República Democrática do Congo, Iêmen, Nigéria, Sudão etc., as desigualdades e outras violações dos direitos humanos persistem. Em países como a Polônia, Hungria, Rússia, China, Estados Unidos, esses direitos retrocedem.

“O aborto é um direito fundamental para todas as mulheres. É preciso protegê-lo. Expresso a minha solidariedade às mulheres cujas liberdades hoje estão sendo questionadas pela Corte suprema dos Estados Unidos da América.” (Presidente Emmanuel Macron)
“Um dia escuro para os direitos das mulheres. Solidariedade total a todas as mulheres nos Estados Unidos e no mundo. Não desistiremos de nossos direitos, jamais.” (Primeira-ministra Élisabeth Borne)

Último recurso para situações sem saída

Simone Veil (1927-2017) foi uma magistrada, cientista política, e política sobrevivente do Holocausto, que pertenceu à Academia francesa de Letras e exerceu vários cargos, entre eles o de ministra da saúde na França. Hoje ela se encontra no Panteão, ao lado dos grandes personagens que marcaram a História deste país, como Voltaire, Jean-Jacques Rousseau e Victor Hugo, entre outros.

Veil foi encarregada de apresentar ao Parlamento um projeto de lei que despenalizava o aborto. Este combate, apoiado pela parte esclarecida da sociedade francesa (artistas, cientistas, professores, filósofos e intelectuais) lhe valeu ameaças da extrema direita, direita e extrema esquerda.

Num discurso que ficou famoso, ela afirmou que o aborto deve continuar como uma “exceção”, o “último recurso para situações sem saída”. O texto foi finalmente aceito na Assembleia nacional em 1974 e a lei adotada pelo Senado, duas semanas mais tarde, entrando em vigor em 1975.

Simone Veil se opunha à “banalização do aborto”, prática que, segundo ela, “permaneceria sempre um drama”, mas precisou que “se a sua lei não o proibia, ela não criava nenhum direito a ele.” A despenalização do aborto foi um avanço civilizador, uma grande vitória e um passo decisivo em favor das mulheres, de seus direitos e sua proteção, no primeiro mundo.

O seu lindo rosto é a melhor resposta ao obscurantismo

A vida de Simone Veil, como disse uma senadora, é um “apelo à recusa de todos os compromissos com os extremistas, os populistas, os mercadores de infelicidade.” De fato. Porém, é melhor não contrapor um personagem civilizado e civilizador a esta caterva conservadora e fundamentalista. Ele não merece. Deixemos que repouse em paz no Panteão. Apenas o seu lindo rosto, que hoje é o mesmo de “Marianne”, efígie da República francesa, é a melhor resposta ao obscurantismo.

Basta ver as caras e figuras monstruosas dos fanáticos americanos da América profunda de Trump e cotejá-las à bela, culta, esclarecida e evoluída juventude americana, para vislumbrar que, ali também, não há comparação possível. Intelectuais, historiadores e artistas já lançaram luz sobre esta civilização e sua complexa e tão díspar sociedade.

Até a próxima, que agora é hoje e todos precisam saber: muito longe de qualquer observância e preceito religiosos, o aborto é um direito fundamental da mulher!

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A erudição perto de nós

Maravilha! Nada mais inteligente do que publicar obras-primas clássicas, admiradas por escritores como Boccaccio, Diderot, Machado de Assis, mas que têm relação direta com o tempo presente. Se você tem medo da erudição, perca-o. Ela pode estar mais perto de nós do que a novela da Globo.


A Abobrificação do divo Cláudio é uma sátira que acaba com este imperador romano, morto em 54 d.C. Não só o autor se vinga do exílio e das crueldades que sofreu nas mãos de Cláudio, como ainda por cima enaltece Nero, seu sucessor, de quem foi preceptor.

Como César Augusto, o primeiro imperador romano, tinha inventado a ideia de se atribuir natureza divina, os vindouros, entre eles, Cláudio, acharam que podiam fazer a mesma coisa. Assim, na ficção do genial filósofo e dramaturgo Lúcio Aneu Sêneca, este governante – que era um tirano boçal e incompetente – vai ao céu mas, depois de muitas perpécias e sendo rejeitado pelos deuses, é enviado ao inferno para receber o juízo final. E que juízo final!

O texto e as ideias em prosa e verso, ficção e realidade, são saborosas, claro, dentro da tradição paródica criada pelo “cínico” da filosofia helenística, Menipo de Gadara (cerca de 275 a.C.). Em vez de se transformar em deus, o atroz vira uma abóbora, ou uma abobrinha se o leitor assim preferir, pois as duas frutas pertencem à mesma família das cucurbitáceas e, de todo modo, ele só falava abobrinhas.

Não é coincidência que o estudo, as traduções e o interesse por esse livro cresceram nos últimos anos em todo mundo. Afinal, déspotas proliferam bastante, da Coreia do Norte de Kim Jong-un à Síria de Assad; dos Estados Unidos de Trump ou da Rússia de Putin ao Brasil do Atroz.

Até a próxima que agora é hoje, e nem é preciso ser um Sêneca! Quem não gostaria de ver o Brasil acima de tudo, o Atroz abaixo de tudo e Deus abobrificando-o para todo o sempre?
ABOBRIFICAÇÃO DO DIVO CLÁUDIO
LÚCIO ANEU SÊNECA
TRADUÇÃO
Luiz H. M. Queriquelli, Maria H. F. Adriano, Miguel Â. A. Mangini, Pedro F. Heise
Editora Iluminuras