A erudição perto de nós

Maravilha! Nada mais inteligente do que publicar obras-primas clássicas, admiradas por escritores como Boccaccio, Diderot, Machado de Assis, mas que têm relação direta com o tempo presente. Se você tem medo da erudição, perca-o. Ela pode estar mais perto de nós do que a novela da Globo.


A Abobrificação do divo Cláudio é uma sátira que acaba com este imperador romano, morto em 54 d.C. Não só o autor se vinga do exílio e das crueldades que sofreu nas mãos de Cláudio, como ainda por cima enaltece Nero, seu sucessor, de quem foi preceptor.

Como César Augusto, o primeiro imperador romano, tinha inventado a ideia de se atribuir natureza divina, os vindouros, entre eles, Cláudio, acharam que podiam fazer a mesma coisa. Assim, na ficção do genial filósofo e dramaturgo Lúcio Aneu Sêneca, este governante – que era um tirano boçal e incompetente – vai ao céu mas, depois de muitas perpécias e sendo rejeitado pelos deuses, é enviado ao inferno para receber o juízo final. E que juízo final!

O texto e as ideias em prosa e verso, ficção e realidade, são saborosas, claro, dentro da tradição paródica criada pelo “cínico” da filosofia helenística, Menipo de Gadara (cerca de 275 a.C.). Em vez de se transformar em deus, o atroz vira uma abóbora, ou uma abobrinha se o leitor assim preferir, pois as duas frutas pertencem à mesma família das cucurbitáceas e, de todo modo, ele só falava abobrinhas.

Não é coincidência que o estudo, as traduções e o interesse por esse livro cresceram nos últimos anos em todo mundo. Afinal, déspotas proliferam bastante, da Coreia do Norte de Kim Jong-un à Síria de Assad; dos Estados Unidos de Trump ou da Rússia de Putin ao Brasil do Atroz.

Até a próxima que agora é hoje, e nem é preciso ser um Sêneca! Quem não gostaria de ver o Brasil acima de tudo, o Atroz abaixo de tudo e Deus abobrificando-o para todo o sempre?
ABOBRIFICAÇÃO DO DIVO CLÁUDIO
LÚCIO ANEU SÊNECA
TRADUÇÃO
Luiz H. M. Queriquelli, Maria H. F. Adriano, Miguel Â. A. Mangini, Pedro F. Heise
Editora Iluminuras

Por que Lula, “gêmeo” de Mélenchon, não pode ser a solução

Os ex-presidentes Lula (2003-2011) – candidato à presidência do Brasil em outubro próximo – e Dilma Rousseff (2011-2016) manifestaram ontem, dia 5, o seu apoio a Jean-Luc Mélenchon para a eleição presidencial francesa. Foi o que anunciou o LFI (La France insoumise), partido de extrema-esquerda que o político representa. Lula e Dilma justificaram o gesto por “sua gratidão a Mélenchon, que visitou o camarada em 2019 quando este estava preso em Curitiba por corrupção”. Será que aquela visitação “turístico-política” interesseira e os falsos ideais decantados pelos dois histriões, são razões para que ofereçam sustentação a um dos três candidatos que constituem uma verdadeira ameaça à democracia na França?

Trappes, 5 de abri, 2022. Meeting de Jean Luc Melenchon e seu holograma.

“Expressamos nosso apreço e gratidão pela solidariedade irrestrita que os camaradas da LFI (La France insoumise) sempre manifestaram ao Partido dos Trabalhadores e ao povo brasileiro nos momentos mais difíceis para a democracia em nosso país”, escreveram Lula e Dilma em um comunicado traduzido no site do Parlamento da União Popular.

“Não esqueceremos a sua firme posição diante do golpe contra a presidente Dilma e da condenação injusta e ilegal do presidente Lula”, acrescentaram os dois ex-chefes de Estado. E concluíram: “Nos dias eleitorais desta semana, desejamos sucesso ao camarada Jean-Luc Mélenchon e ao LFI, que se inscrevem na luta pela paz, a autodeterminação dos povos, a justiça e a igualdade de direitos”.

As coisas não são bem assim

Ora, as coisas não são bem assim. Jean-Luc Mélanchon, embora tenha se dedicado a dourar a sua imagem já muito desgastada nos últimos anos – inclusive por violência, como a tentativa de forçar passagem e insultos contra policiais e magistrados durante busca na sede do seu partido em Paris – não se inscreve de forma alguma nos ideais decantados por seus demagógicos amigos brasileiros.

No vídeo, Jean-Luc Mélenchon tenta forçar passagem, agride e insulta policiais e magistrados durante busca na sede do seu partido em Paris, em 2018. Este é o homem que Lula e Dilma gostariam de ver como “chefe de Estado”. 

Sobre a OTAN, Ucrânia, Estados Unidos, Europa, coletes amarelos, “mídiacracia”, Síria, aposentadoria, Didier Raoult, hidroxicloroquina, complacência com o islamismo e Putin (entre outros), Jean-Luc Mélenchon encontra-se de pleno acordo com a extrema-direita.

Mélenchon recusa o nome de ditadura em referência a Cuba, Venezuela ou Rússia. Encontra-se ideologicamente seduzido pela verticalidade do poder que, de Castro a Maduro, de Putin a Assad, lhe parece estranhamente mais democrático que o sistema liberal da França, seu próprio país.

Aqui estão os adoradores de Putin, três soberanistas que não se importam com a invasão ilegal de um país soberano como a Ucrânia:

1) Éric Zemmour, poutinólatra ideológico que vê na Rússia um modelo alternativo e odeia a União Europeia.

2) Marine Le Pen, oportunista poutinólatra cujo partido, cheio de dívidas, depende diretamente do Kremlin.

3) Jean-Luc Mélenchon, poutinólatra “munichois” (que é como se chamam os partidários do totalitarismo, iguais aos defensores dos acordos de Munique durante o Terceiro Reich), antiamericano pavloviano que toma o aliado como inimigo e vice-versa.

Gêmeos

Éric Zemmour, Marine Le Pen e Jean-Luc Mélenchon ficam muito constrangidos a cada vez que os jornalistas lhes perguntam como é que conseguiram condenar, ontem, os motivos que os americanos se deram para ir à guerra no Iraque e validar, hoje, as desculpas que os russos inventam para invadir a Ucrânia.

Mélenchon não representa a esquerda. Embora enfraquecida, a esquerda francesa existe e, até mesmo o brilhante e esclarecido Fabien Roussel, igualmente candidato à presidência pelo partido comunista francês (PCF), não se identifica de forma alguma com o LFI, cuja filosofia ele considera obsoleta, da “época soviética”. Ao contrário de Lula e Mélenchon, Roussel nunca apoiou as ditaduras.

Por que Roussel comunista (e democrata) que hoje apoia a OTAN e a Ucrânia, não é amigo de Lula? Por que Lula não apoia Roussel? Por que Lula não apoia a socialista Anne Hidalgo que também não suporta os ditadores e prega a democracia? Por que Lula apoia a extrema-esquerda fascinada pelo “poder vertical”, tanto quanto ele mesmo? Ninguém se pergunta?

Mélenchon é idêntico à extrema-direita, exatamente igual em ódio, violência, acusação, antimídia. Ao contrário da esquerda e direita tradicional, Jean-Luc Mélenchon é uma ameaça à democracia. 

Até a próxima, que agora é hoje, e aos que pensam que Lula é a alternativa, eu pergunto: como é que o gêmeo brasileiro de Jean-Luc Mélenchon que, por sua vez, é gêmeo da extrema-direita, pode ser a solução para afastar Jean-Luc Bolsonaro?

Toulouse, 3 de abril 2022 – Meeting de Jean-Luc Mélenchon FOTO: Vincent NGUYEN / Riva Press