Golden imbecility

Há quem defenda os rapazes do “golden shower”, uma vez que eles mesmos se defenderam dizendo que a sua “performance” foi “ato político-artístico planejado com o intuito de comunicar uma mensagem de artistas contra o conservadorismo”. Mas as imagens, os objetivos, a ocasião e o lugar não deixam nenhuma dúvida. Trata-se de uma apresentação pública de parafilia incontestavelmente inartística, uma impostura que, em qualquer país do mundo, seria proibida ou punida pela lei.  

Imagem: Réplica da “Fonte” de 1017, ready-made de urinol assinado por Marcel Duchamp. Centro Pompidou. (Sucessão Marcel Duchamp / ADAGP / foto RMN-GP / Christian Bahier / Philippe Mige.)

Nas imagens indevidamente divulgadas pelo presidente Bolsonaro, entretanto, não se vê nada do que os dois autodenominados “artistas” supostamente pretendem. O manifesto que eles escreveram, e só depois que o vídeo viralizou, descreve um projeto esdrúxulo de produtora pornográfica, propõe uma discussão sobre “práticas sexuais não hegemônicas e hegemônicas” (?!) e coloca “populações indígenas, LGBTTQIAN+, mulheres cisgênero e transgênero, população negra, quilombola” (sic) etc., tudo no mesmo saco. Ou seja, é uma mixórdia total.

Pode-se chamar qualquer ato de “ato político”, até mesmo um assassinato. Assim como se pode dizer que uma panela é objeto de arte. Porém, não é a simples nominação que torna um ato político ou transforma um objeto em arte. Mesmo Marcel Duchamp instaurou a escolha como a sucessora da elaboração mental, para os seus “ready-made”.

Os rapazes se divertiram

Li um comentário no Facebook dizendo que “os rapazes se divertiram praticando o que lhes apetece e diz respeito apenas a eles”. Certamente. Só o lugar estava errado.  Quando não se trata de arte, todos têm o direito de fazer o que lhes apetece… entre quatro paredes. Quando se trata de arte, existem cuidados. Antes de jogar qualquer coisa de forma egoísta e irresponsável na cara das pessoas, é preciso lembrar que se está diante de um público de diferentes faixas etárias e sociais. Quando se exibe performance ou arte erótica, por exemplo, em qualquer lugar o mundo – Paris, Nova York, Tóquio ou Berlim – tudo que é inadequado a crianças ou que pode ferir o sentimento ou a sensibilidade de certos adultos, se for em espaço aberto é proibido e se for exibido em instituições é isolado com um aviso e uma indicação etária. Neste caso, há também alternativas expográficas (agrupando as obras mais problemáticas em espaços exclusivos) para liberar o acesso a todas as idades. O público fica livre para escolher visitar os “espaços reservados” ou não. Isto se chama “classificação indicativa”. Jamais se viu uma “apresentação explícita” em países civilizados ou, pelo menos, alguma que não fosse impedida ou enquadrada pela justiça.

Esta exibição inartística de rua nada tem a ver com a verdadeira performance (La Bête) apresentada em 2017 por Wagner Shwartz no MAM em São Paulo. E menos ainda com o que foi exibido no mesmo ano, na mostra “Queermuseu – cartografias da diferença na arte brasileira” no Santander Cultural da capital gaúcha. A performance de Shwartz, artista coreógrafo (que já realizou muitas outras na mesma linha) interpretava a célebre obra interativa “Bicho” de Lygia Clark – na qual o público era convidado a interagir mexendo em seus braços, pernas e no restante do corpo para alterar a sua posição como se ele mesmo fosse a escultura articulada da artista, falecida em 1988.

Se pessoas nuas não são “tabu” em tribos indígenas, são menos ainda em espetáculos, performances (ou pinturas) de museu. No entanto, a confusão entre arte e obscenidade se dá por motivos que todos conhecemos. E os objetivos de quem transforma em ato político o que é simples pornografia, também.  Não é porque somos um Estado Democrático de Direito, que supostamente a performance está “amparada constitucionalmente” e que, segundo os advogados dos “artistas”, “a Carta da República garante, em seu artigo 5º, inciso IX, a liberdade de manifestação cultural e artística”, que juristas, críticos de arte e analistas experientes são obrigados a considerar indecência como arte ou manifesto político. Ou que atos torpes supostamente artísticos sejam reprimidos ou reprovados porque se esteja do lado da censura.

Até a próxima que agora é hoje e a verdade é que o célebre “Golden Shower” que ficará na história política e dos costumes de nosso país – e que, infelizmente, não deu origem a um efetivo “Golden Shower Gate -” não foi mais do que puro comportamento parafílico de exibicionismo e voyeurismo. O que, em lugares públicos de qualquer país do mundo é – muito justamente – proibido e punido pela lei!

Crítica de um filme que não vi e não gostei

Jean-Jacques Beineix, realizador, produtor e argumentista francês, está certo: “o cinema anda povoado de cretinos irrecuperáveis”. Eu diria ainda que a sétima arte às vezes é exercida por gente que não deveria nem mesmo habitar o planeta.

Não vi A Casa que Jack Construiu, filme sinistro e repugnante de Lars von Trier que, em maio deste ano, causou a saída espontânea do público em Cannes, e a Mostra Internacional de SP exibirá em outubro. Assisti praticamente a todas as outras obras dele, o que já me autoriza a evitar esta última e concluir sem culpa e arrependimento intelectuais – com toda a subjetividade que o meu ofício me permite – que Trier é o realizador que mais detesto neste mundo!

Se o cinema é “uma mistura perfeita de verdade e espetáculo”, segundo François Truffaut, esta ignobilidade certa, “uma das atrações” do festival paulistano, só poderá constituir a nova mistura imperfeita de lama com a estupidez que aflige cada vez mais o cineasta, uma imundície tão dispensável quanto todas as outras várias perpetrações diabólicas dele até agora.

Pelo pouco que vi e li, A Casa que Jack Construiu é certamente mais uma diatribe propagandística contra a humanidade e o humanismo, com todas essas sujeiras insuportáveis do tipo que von Trier faz Charlotte Gainsbourg dizer, como “a hipocrisia é o que melhor resume o gênero humano”, ou “todos nascemos para matar”, etc., etc., etc.

Como sempre, o roteiro deve ser bastante abjeto. E porque não, mesmo se o espectador ficar perplexo diante de mensagens tão delicadas que lhe darão vontade de se jogar do alto do Edifício Itália ou de sair trucidando todo mundo?

A grande contradição é que esse cinema se mostra sempre uníssono. As sequências são pesadas, escolares, e as provocações repetidas lembram incitações de um adolescente problemático. Isso, quando não aparecem pequenas “lições de história” tiradas da Wikipédia para “intelectualizar” a narrativa.

O “humor” geralmente ajuda o conjunto a ficar mais pesado. Com a câmera no ombro, Lars von Trier sempre consegue um feito: transforma em feiura pura até mesmo atores lindos (quando estes já não são feios como Gainsbourg) e também tudo que é ou poderia ser bonito.

Até a palavra violência torna-se fraca para definir a intimidação moral desses filmes, onde racismo, sexismo, misoginia, masoquismo e ódio humano saltam aos olhos. Sempre entremeados de minicursos de esoterismo e “harmonia musical para nulos”. Nos perguntamos se esse homem de 62 anos é de fato um malvado moderno ou apenas um idiota, tipo intelectual bárbaro e nauseabundo da Idade Média.

A Casa que Jack Construiu marcou o retorno do dinamarquês à Croisette, tentando ser escândalo, mas foi em vão. Nem o boato da saída do montador do filme, de sua mesa de trabalho, para ir vomitar, ou das ambulâncias na porta do Festival para recolher os desmaiados, estimulou os perversos. Já estamos todos bastante acostumados com Tarantino, Haneke, Lynch, Cronenberg, Marco Ferreri…

Fora que a história e seus cinco tipos arrojados de assassinato todo mundo já conhece: Jack (Matt Dillon) é um assassino em série, autor de mais de 60 crimes, e tudo se passa ao longo de 12 anos a partir dos anos 1970, no estado de Washington. No elenco estrelam Uma Thurman, que praticamente não tem tempo de abrir a boca e já leva uma tijolada, Riley Keough, Bruno Ganz, Siobhan Fallon Hogan e outros.

O que dá uma certa satisfação aos (e às) antifeministas e aos artistas macabros é que Matt Dillon grande ator, ou melhor, Jack, mata sobretudo mulheres que ele acha particularmente imbecis e chatas. Além do feminicídio, ele satisfaz também o seu desejo estético de elaborar uma “grande obra fúnebre” no museu, quero dizer, na catedral lívida de uma câmara frigorífica colocando os corpos em poses sugestivas, os quais fotografa. Como Facebook, Twitter, Instagram ou Pinterest ainda não foram inventados, ele envia as fotos aos jornais assinando “Sr. Sofisticação”. Damien Hirst não poderia ter imaginado performance melhor.

Parece que os diálogos em voz off com o personagem interpretado por Bruno Gantz (Verge, ou melhor, Virgílio, o poeta da “Eneida”) são muito piegas, o que não me admira. Assim como não me admira que, como li em alguma parte, ele faça liçãozinha em forma de considerações nada originais sobre Glenn Gould, a arquitetura gótica, William Blake, as diferentes maturações do vinho, e também os grandes crimes totalitários. Tudo isso, é claro, pontificando, revisitando Dante e sem deixar saber porque o Jack chegou naquele ponto, apesar de mostrar que, quando pequeno, o exterminador tinha cortado com tesoura a pata de um lindo pintinho.

O niilismo de Lars von Trier sem dúvida macera em litros de vodca misturados com Rivotril. A sua obsessão é sempre suja e infame, o riso amarelo, a provocação sexual e política gratuitas; e o “espertinho” continua coexistindo em seu cérebro com o mesmo doente mental que um dia evocou comiseração por Hitler.

Não faz mais efeito. No presente, Lars von Trier é como aquele velho tio inconveniente que não gostamos de receber em casa. Até a próxima que agora é hoje e duvido que o cineasta teria sido, ele mesmo, um “grande assassino em série “, como afirmou. Os verdadeiros matadores não brincam em serviço!