Rafael Siminovitch, jovem e belo empresário em Paris, colecionador de arte contemporânea sem filhos, sofisticado e esportivo milênico, descendente de baby boomers bem-sucedidos, foi atingido severamente – como tantos – pela grande epidemia do século 21.

Antes, raramente bebia uns uísques ou umas vodcas quando chegava do trabalho. Porém, com o confinamento, o tele trabalho, as intermináveis reuniões por Zoom, a derrocada vertiginosa da sua empresa, e sem conseguir vender nem mesmo uma peça de sua coleção de arte, Rafael passou a consumir estes “ansiolíticos” (como ele os chamava) diariamente. Na maior parte das vezes, a partir das 11 da manhã, o que o obrigava dormir a tarde toda e recomeçar a beber às 8 da noite. A ponto de a sua mulher lhe dizer:
“Basta! Ou você procura ajuda, ou é divórcio!”
Rafael, que, de fato, acordava de madrugada sentindo-se culpado, temendo a punição de Deus, jogou-se no Google à procura de um especialista em alcoologia que pudesse salvá-lo, assim como o seu casamento. Encontrou o Dr. Menahem Schneersohn, médico em uma clínica chamada Bokirtow que, em hebraico separando o “bokir” do “tow”, quer dizer “bom dia”.
Na foto, o doutor posava com uma longa barba branca, cabelo cortado rente ao crânio e óculos redondos de metal. No site Doctolib, por meio do qual todo mundo na França marca consulta ou tele consulta, Rafael descobriu as suas especialidades: geriatria, hipertensão arterial, medicina infantil e adolescente, check-up, alcoolismo, contracepção, burn-out, varicela, vacinação, eletrocardiograma, doenças sexualmente transmissíveis, infecções, HIV e tabagismo. Tudo isso, falando “alemão, inglês, árabe, francês, hebraico e italiano”. “Perfeito!”, pensou o jovem empresário. “É um poliglota e, ainda por cima, da colônia…”
O que Rafael não imaginava é que este clínico geral era um erudito que ensinava a Torá. Pediu a ajuda do Google mais uma vez, para conhecer as avaliações dos pacientes, e descobriu que o Dr. Schneersohn se apresentava, nada mais nada menos do que, em condição de… rabino! Um rabino ortodoxo, mas evoluído, com canal no YouTube e posto de diretor de uma revista online no endereço “hassidismo.org”.
Como se isto não bastasse, Rafael viu na revista que o rabino Dr. Schneersohn, frequentava muitas “farbrengen”, reuniões durante as quais os chassídicos buscam elevação moral. Momentos de troca, onde é possível inspirar-se para o serviço de Deus, aproximar os corações, sublinhar a importância da ação concreta que visa “enxaguar os olhos com as lágrimas da meditação”. Nas farbrengen, aqueles judeus ortodoxos se unem, se amam e se alegram, recebendo as bênçãos mais importantes, especialmente a tal da “Libertação futura”.

Rafael olhou bem as fotos. Claro, só havia homens em volta de mesas cheias de acepipes. Na questão “igualdade entre homens e mulheres”, os chassídicos continuam seguindo a corrente mística do judaísmo fundado no século 18 pelo rabino Israel ben Eliezer, mais conhecido como Baal Shem Tov. Mulheres de um lado, homens de outro.
Rafael aumentou as imagens e, surpresa! Já na primeira, com um grande chapéu de Lubavitch, não de pele, mas de abas, o sorridente doutor rabino Menahem Schneersohn, especialista em alcoologia, levantava um copinho, enquanto todos se serviam de várias garrafas de Smirnoff e J&B. No final da soirée farbrengen, depois de muitos brindes “L’Chaim!” (À Vida!) com os copinhos no alto, alguns convivas pareciam realmente ter encontrado a “elevação moral”, estando prontos para a “Libertação futura”.
Nada mais faltava para que Rafael marcasse consulta. O doutor rabino que, provavelmente, acumulava menos pacientes do que alunos de Talmude, tinha hora livre no dia seguinte. Como o estacionamento na rua seria difícil, o jovem empresário deixou o seu Audi na garagem e, uma hora antes da consulta na clínica Bokirtow, precipitou-se no metrô em direção à estação Belleville.

Faz seis meses que a mulher de Rafael Siminovitch, não tem mais notícias dele. O jovem ex empresário tornou-se financista e courtier d’art*, mora em Belleville, deixou crescer a barba, passa o seu tempo a ser poliglota, a aprender e discutir finança talmúdica numa ieshiva**, comprou um chapéu de aba para frequentar as farbrengen, nem pensa mais no que é correto ou politicamente incorreto. Está feliz que mulheres fiquem de um lado e homens de outro, estes amando-se, unindo-se, alegrando-se, recebendo as bênçãos mais importantes e brindando L’Chaim com o copinho, na boa companhia de muitas garrafas de Smirnoff e J&B.
Até a próxima que agora é hoje, e boa sorte ao Rafael, personagem fictício deste meu pequeno conto de pandemia!
- Courtier d’art (corretor de arte): especialista sem galeria ou butique, que atua como intermediário entre os compradores que procuram determinadas obras e os vendedores. O courtier deve ter excelentes habilidades de negociação e falar vários idiomas para aconselhar seus clientes estrangeiros.
** Ieshiva: instituição de ensino em que se estuda o Talmude.
