Para ler, antes de votar.

Qualquer semelhança não é mera coincidência, e não é “Lei de Godwin”. Apenas substitua “judeus” por “esquerdistas”. E Holocausto por genocídio (voluntário ou involuntário) de milhares de brasileiros. Por que a Alemanha, o país com um dos melhores sistemas de educação pública e a maior concentração de doutores do mundo na época, sucumbiu a um charlatão fascista?  Lembrando, é claro, que o advogado Mike Godwin – inventor da satírica “lei de Godwin” das “analogias nazistas” (como está no final deste artigo) hoje concorda plenamente que o atroz candidato da extrema-direita “tem tudo a ver com Hitler”.

Foto: Getty Images

“Ao longo da década de 1920, Adolf Hitler era pouco mais do que um ex-militar bizarro de baixo escalão, que poucas pessoas levavam a sério. Ele era conhecido principalmente por seus discursos contra minorias, políticos de esquerda, pacifistas, feministas, gays, elites progressistas, imigrantes, a mídia e a Liga das Nações, precursora das Nações Unidas. Em 1932, porém, 37% dos eleitores alemães votaram no partido de Hitler, a nova força política dominante no país. Em janeiro de 1933, ele tornou-se chefe de governo. Por que tantos alemães instruídos votaram em um patético bufão que levou o país ao abismo?

Em primeiro lugar, os alemães tinham perdido a fé no sistema político da época. A jovem democracia não trouxera os benefícios que muitos esperavam. Muitos sentiam raiva das elites tradicionais, cujas políticas tinham causado a pior crise econômica na história do país. Buscava-se um novo rosto. Um anti-político promoveria mudanças de verdade. Muitos dos eleitores de Hitler ficaram incomodados com seu radicalismo, mas os partidos estabelecidos não pareciam oferecer boas alternativas.

Em segundo lugar, Hitler sabia como usar a mídia para seus propósitos. Contrastando o discurso burocrático da maioria dos outros políticos, Hitler usava um linguajar simples, espalhava fake news, e os jornais adoravam sugerir que muito do que ele dizia era absurdo. Hitler era politicamente incorreto de propósito, o que o tornava mais autêntico aos olhos dos eleitores. Cada discurso era um espetáculo. Diferentemente dos outros políticos, ele foi recebido com aplausos de pé onde quer que fosse, empolgando as multidões. Como escreveu em seu livro ‘Minha Luta’:

Toda propaganda deve ser apresentada em uma forma popular (…), não estar acima das cabeças dos menos intelectuais daqueles a quem é dirigida. (…) A arte da propaganda consiste precisamente em poder despertar a imaginação do público através de um apelo aos seus sentimentos.

Em terceiro lugar, muitos alemães sentiram que seu país sofria com uma crise moral, e Hitler prometeu uma restauração. Pessoas religiosas, sobretudo, ficaram horrorizadas com a arte moderna e os costumes culturais progressistas que surgiram por volta de 1920, época em que as mulheres se tornavam cada vez mais independentes, e a comunidade LGBT em Berlim começava a ganhar visibilidade. Os conservadores sonhavam com restabelecer a antiga ordem. Os conselheiros de Hitler eram todos homens heterossexuais brancos. As mulheres, ele argumentou, deveriam se limitar a administrar a casa e ter filhos. Homens inseguros podiam, de vez em quando, quebrar vitrines de lojas, cujos donos eram judeus, para reafirmarem sua masculinidade.

Em quarto lugar, apesar de Hitler fazer declarações ultrajantes – como a de que judeus e gays deveriam ser mortos -, muitos pensavam que ele só queria chocar as pessoas. Muitos alemães que tinham amigos gays ou judeus votaram em Hitler, confiantes de que ele nunca implementaria suas promessas. Simplista, inexperiente e muitas vezes tão esdrúxulo, que até mesmo seus concorrentes riam dele, Hitler poderia ser controlado por conselheiros mais experientes, ou ele logo deixaria a política. Afinal, ele precisava de partidos tradicionais para governar.

Em quinto, Hitler ofereceu soluções simplistas que, à primeira vista, faziam sentido para todos. O problema do crime, argumentava, poderia ser resolvido aplicando a pena de morte com mais frequência e aumentando as sentenças de prisão. Problemas econômicos, segundo ele, eram causados por atores externos e conspiradores comunistas. Os judeus – que representavam menos de 1% da população total – eram o bode expiatório favorito. Os alemães “verdadeiros” não deviam se culpar por nada. Tudo foi embalado em slogans fáceis de lembrar: ‘Alemanha acima de tudo’, ‘Renascimento da Alemanha’, ‘Um povo, uma nação, um líder.’

Em sexto lugar, as elites logo aderiram a Hitler porque ele prometeu — e implementou — um atraente regime clientelista, cleptocrata, que beneficiava grupos de interesses especiais. Os industriais ganharam contratos suculentos, que os fizeram ignorar as tendências fascistas de Hitler.

Em sétimo, mesmo antes da eleição de 1932, falar contra Hitler tornou-se cada vez mais perigoso. Jovens agressivos, que apoiavam Hitler, ameaçavam os oponentes, limitando-se inicialmente ao abuso verbal, mas logo passando para a violência física. Muitos alemães que não apoiavam o regime preferiam ficar calados para evitar problemas com os nazistas.
Doze anos depois, com seis milhões de judeus exterminados e mais de 50 milhões de pessoas mortas na Segunda Guerra Mundial, muitos alemães que votaram em Hitler disseram a si mesmos que não tinham ideia de que ele traria tanta miséria ao mundo. ‘Se soubesse que ele mataria pessoas ou invadiria outros países, eu nunca teria votado nele ‘, contou-me um amigo da minha família. ‘Mas como você pode dizer isso, considerando que Hitler falou publicamente de enforcar criminosos judeus durante a campanha?’, perguntei. ‘Eu achava que ele era pouco mais que um palhaço, um trapaceiro’, minha avó, cujo irmão morreu na guerra, responderia.

De fato, uma análise mais objetiva mostra que, justamente quando era mais necessário defender a democracia, os alemães caíram na tentação fácil de um demagogo patético que fornecia uma falsa sensação de segurança e muito poucas propostas concretas de como lidar com os problemas da Alemanha em 1932. Diferentemente do que se ouve hoje em dia, Hitler não era um gênio. Não passava de um charlatão oportunista que identificou e explorou uma profunda insegurança na sociedade alemã.

Hitler não chegou ao poder porque todos os alemães eram nazistas ou antissemitas, mas porque muitas pessoas razoáveis fizeram vista grossa. O mal se estabeleceu na vida cotidiana porque as pessoas eram incapazes ou sem vontade de reconhecê-lo ou denunciá-lo, disseminando-se entre os alemães porque o povo estava disposto a minimizá-lo. Antes de muitos perceberem o que a maquinaria fascista do partido governista estava fazendo, ele já não podia mais ser contido. Era tarde demais.”


Oliver Stuenkel (Düsseldorf, 1982), jovem e brilhante autor deste texto, que reproduzo, é professor associado e pesquisador de relações internacionais. Graduado pela Universidade de Valência, na Espanha, é mestre em Políticas Públicas pela Kennedy School of Government de Harvard University e doutor em Ciência Política pela Universidade de Duisburg-Essen, na Alemanha.

Atualmente trabalha como professor adjunto de Relações Internacionais da Fundação Getulio Vargas, em São Paulo, responsável por coordenar a Escola de Ciência Sociais (CPDOC) e MBA em Relações Internacionais da instituição. Além disso, Stuenkel – que publicou inúmeros livros – é membro não residente do Global Public Policy Institute, em Berlim, e membro do Carnegie Rising Democracies Network.


Quero lembrar que, no contexto da ascensão do neofascismo no mundo, alimentado pelas redes em Internet, o advogado Mike Godwin – inventor da satírica “lei de Godwin” das analogias nazistas – se manifestou a favor do movimento #EleNão, afirmando que “seria perfeitamente OK chamar o atroz de nazista”.

Até a próxima, que agora é hoje e, thanks Mike! #ForaBolsonaro

Racismo antifrancês

Vira e mexe recebo mensagens de brasileiros com menção aos atos antissemitas que ocorrem, não no resto do mundo, mas apenas na França. Cheguei a cortar relações com um crítico de arte recém-falecido porque, mesmo sabendo que eu não apreciava aquilo, ele me assediava semanalmente até com notícias antigas, quando não encontrava recentes. De quatro possibilidades, uma. Ou, quem sabe, todas juntas:

  1. Certos brasileiros têm um “problema” consciente ou  inconsciente com a França.
  2. Querem me alertar, “por amizade” que eu, uma franco-brasileira, “moro no país errado, o mais antissemita do planeta”.
  3. Estão com inveja, porque o Brasil virou uma democratura bananeira e a França continua e é cada vez mais um Estado republicano, civilizado e respeitado internacionalmente.
  4. Gostariam, “por amor”, que eu voltasse ao Brasil.

Imagem: “O galo gaulês (daí, a palavra “galo”) é um dos símbolos alegóricos e um dos emblemas da França.”

A última mensagem que recebi por WhatsApp fazia menção ao ataque a um pequeno restaurante kosher, no 19ème em Paris, onde destruíram mesas de fórmica e picharam as paredes com a cruz gamada e os dizeres “Hitler tinha razão”. Este ato imundo aconteceu no início do mês, durante o grande julgamento dos criminosos vivos e mortos no massacre de Charlie Hebdo, no supermercado kosher e em outros atentados da mesma época, o que fez aumentar o vandalismo antissemita e a ameaça terrorista em Paris e no resto do país.

“Você ouviu falar neste julgamento?”, perguntei à missivista. Ela respondeu: “Não estou acompanhando.” Quer dizer, ela tirou a informação do contexto porque não o conhece, o julgamento do massacre provavelmente não a interessa – ela prefere o lado sensacionalista gênero “antissemitismo francês” – e mandou por mandar, só para ouvir a resposta clichê: “Oh! Que horror!”

A Europa inteira vê crescer o antissemitismo, junto com os “nacionalismos”. Efeito também das manifestações da extrema direita e extrema esquerda (que instrumentalizam os coletes amarelos na França, por exemplo), somadas ao islamismo radical. Respondi, é claro,  enviando links para a situação na Inglaterra e na Alemanha. Poderia mandar muito mais. A França não está sozinha.

Porém, a minha interlocutora brasileira, que é judia evidentemente, não se deu por vencida e respondeu: “Quer dizer que falar que os franceses estão entre as sociedades mais antissemitas do mundo é falso?”

Preconceito e campanha

É totalmente falso. Arqui-falso. Para começar, não existe “sociedade antissemita nacional”. Existem números de antissemitas em regiões ou países. E há maior ou menor repressão ao antissemitismo, e maior proteção constitucional, num país ou noutro.

A França, hoje, é um dos países do mundo onde a repressão ao antissemitismo é a mais forte, e a Constituição é muito clara, por causa de sua história, justamente. As leis e a Carta Magna são duríssimas. Todas as datas históricas do Holocausto são comemoradas oficialmente e noticiadas; documentários e filmes aparecem, de maneira obrigatória, em todas as televisões.

Há, além de outras organizações de defesa, o CRIF que trabalha junto ao governo francês, federando mais de 60 associações. Não conheço o número de antissemitas na França, mas os especialistas em Europa sabem que é na Áustria, Polônia e Hungria, onde encontra-se o maior número deles, inclusive em seus governos. E onde as leis contra o racismo são mais brandas.

Dizer que os franceses estão entre “as sociedades mais antissemitas” não só é mentira, como faz parte de um velho e ultrapassado preconceito e uma campanha desenvolvidos depois da guerra por causa da “colaboração” durante o governo de Vichy. Esta parte da história francesa (que não deve e não pode ser amalgamada a uma suposta “índole francesa”) foi uma vergonha e é lembrada hoje em todas as escolas francesas, para que isto não mais se repita. O Holocausto faz parte das matérias obrigatórias nestas escolas, desde a mais tenra idade.

Falsa propaganda

Acontece exatamente a mesma coisa na Alemanha que faz de tudo para se redimir de seu passado, bem mais pesado do que o da França que possui, por outro lado, uma nobre história da Resistência. Quem visitou o Memorial aos Judeus Mortos da Europa em Berlim, pode constatar. É a homenagem mais impressionante que vi em minha vida. O extraordinário Museu Judaico alemão, igualmente.

Algum destes brasileiros sabe que a França possui mais de 60 museus e monumentos comemorativos do Holocausto no seu território? Algum deles  já  visitou o pungente Mémorial de la Shoah, classificado como “monumento histórico”, em Paris? Já visitou o Museu de Arte e História do Judaísmo , também em Paris?

O antissemitismo existe em toda parte, inclusive nos Estados Unidos com os “suprematistas brancos” e a extrema-direita de Bannon, e é uma praga, infelizmente. Mas está na hora desta parte ignorante da sociedade brasileira acompanhar as mudanças que ocorreram em certos países como a França, em vez de ficar repetindo preconceitos e velhas propagandas, como papagaios.

Exagero e mentiras

Ora, a minha amiga não desistiu e voltou com mais uma  perguntinha:  “Por que os judeus franceses são os que mais imigram para Israel?”

Também não é verdade. Isso acabou. Foi assim durante muito pouco tempo porque houve uma política israelense para levá-los para lá e que aproveitou a enxurrada do islamismo radical que os governos franceses anteriores não conseguiam conter. Saíram muitos vídeos fake na época e houve rumores sem fim. Muito exagero, muitas mentiras. Tudo isso foi desmascarado em reportagens muito bem feitas que todos vimos na televisão, artigos de jornal e até mesmo livros.

Alguns dados

Apenas alguns dados: imigração em Israel por país, nas últimas décadas.  A França, como se vê, está em 15° lugar, depois da Argentina e dos Estados Unidos.

URSS – 813.708
Magrebe – 345.753
Romênia – 273.957
Polônia – 171.753
Iraque – 130.302
Irã – 76.000
Estados Unidos – 71.480
Turquia – 61.374
Iêmen – 51.158
Etiópia – 48.624
Argentina – 43.990
Bulgária – 42.703
Egito e Sudão – 37.548
Líbia – 35.865
França – 31 172
Hungria – 30.316
Índia – 26.759
Reino Unido – 26.236
República Tcheca – 23.984
Alemanha – 17.912
África do Sul – 16.277
Iugoslávia – 10.141
Síria – 10.078

 

A dez maiores personalidades e organizações antissemitas do mundo

Segundo o Centro Simon Wiesenthal – ONG reconhecida pela Unesco e ONU, fundada em Los Angeles, em 1997, com representantes nas principais cidades do mundo – as dez maiores personalidades e organizações antissemitas do mundo são:

1. Os Irmãos muçulmanos
2. O regime iraniano
3. O desenhista brasileiro Carlos Latuff
4. O futebol europeu, sobretudo o inglês
5. O partido ucraniano Svoboda
6.
Aurora dourada, o partido grego (acusados ontem, dia 13 pela procuradoria de seu país, como organização criminosa)
7. Jobbik, o partido húngaro, com 47 deputados no parlamento
8. Trond Ali Linstad, médico conspiracionista norueguês
9. Jakob Augstein, jornalista alemão de esquerda
10. Louis Farakhan, líder da organização afro-americana “Nation of Islam” nos Estados Unidos

Como se vê, não há nesta lista, nenhuma personalidade ou organização francesa. 🇫🇷 Até a próxima que agora é hoje e, lembre-se, racismo antifrancês também é racismo!