Gauguin está salvo

Segundo o dicionário, “anacrônico” é o que está em desacordo com os usos e costumes de uma época. Censura anacrônica, portanto, não tem nenhuma razão de existir.  Assim, Paul Gauguin – com uma exposição no Masp, em São Paulo (até o dia 6 de agosto) – tanto quanto Balthus (Balthasar Klossowski), Egon Schiele, Pablo Picasso e tantos outros que hoje sofrem acusações que nada têm a ver com o tempo deles, estão salvos. E que os nossos representantes no Congresso façam alguma coisa para frear os abusos fundamentalistas na Cultura. Ninguém aguenta por muito tempo cachorros raivosos latindo o tempo todo, embaixo da janela.

Captura de tela do site do Masp: vista da exposição “Paul Gauguin: O outro e eu”. Crédito da foto: Eduardo Ortega

Entre a defesa justa e a ideologia intransigente, fundamentalista, do woke, existe um abismo. Quando os pequenos papagaios acusam a literatura e a arte, sistemática e gratuitamente, de “colonialismo, racismo, misoginia, capacitismo” e outros tipos de discriminação totalmente infundados em sua época, caem em cegamento abusivo. Ou damos risada, sem levá-los a sério, ou será realmente necessário “enquadrá-los” por meio de alguma lei republicana.

Depois de Polanski, é preciso punir Gauguin?

“Paul Gauguin (1848-1903), pintor genial, mas artista pedófilo…”. Eis o resumo do que os museus no futuro serão talvez obrigados a escrever nas etiquetas das telas para alertar os visitantes e evitar qualquer crítica. Certas publicações já seguem o mesmo princípio, provavelmente também por sensacionalismo.

Uma novata que se diz “crítica de arte”, contatou-me porque estava escrevendo sobre “o” Gauguin para uma revista e queria saber se eu me sentiria “confortável” em falar sobre a “produção” dele. Como se “o” Gauguin” ou “o” Paul  fosse amigo dela ou seu bicho de estimação. Ou como se o artista não criasse, apenas “produzisse” Gauguins, igual a uma fábrica de automóveis. Assim mesmo agradeci e respondi gentilmente. Disse que jamais poderia sentir mal-estar em analisar a obra de um gênio e enviei os links para este artigo e mais este. A foca woke sumiu…

O pintor francês, falecido há 120 anos, vira e mexe fica no centro de alguma uma nova polêmica. Tanto, que o lado woke do New York Times chegou a se perguntar “se Gauguin ainda deveria ser exposto”.

Fofocas nada têm a ver com arte, porém, em Londres, a National Gallery dedicou-lhe uma exposição de retratos acompanhados deste aviso anedótico ao público, digno de tabloide inglês: “O artista manteve repetidamente relações sexuais com mocinhas, casando-se com duas delas e tendo filhos. Gauguin, sem dúvida, aproveitou sua posição de ocidental privilegiado para se permitir uma grande liberdade sexual.”

O aviso em “estilo mexerico”, refere-se aos últimos doze anos da vida do pintor, no final do século 19, quando este partiu para o Taiti e depois às Ilhas Marquesas com o objetivo de escapar da civilização ocidental e encontrar uma nova inspiração. Paul Gauguin estabeleceu-se, então, no meio da população local e foi morar com vahinés¹, uma de 13 anos e outra de 14, sendo que ele tinha mais de 40. Ali, pintou as suas telas mais famosas, vivendo de expedientes na comunidade, corroído pela miséria, pelo alcoolismo e pela sífilis que acabaria por matá-lo em 1903.

¹Vahiné, é a mulher do Taiti, do taitiano “vahine” (mulher, esposa, concubina, amante), cuja etimologia é o proto-polinésio “fafine”. Usado na Europa desde o final do século 18, o termo foi um ícone do imaginário europeu em relação a este mito da Polinésia, durante mais de dois séculos. Uma das canções da minha juventude, interpretada por France Gall em 1981 (com letra de Michel Berger), chama-se Vahiné

Tudo deve ser repensado

“Para museus internacionais, Gauguin sempre garante sucesso de bilheteria”, escreveu o New York Times. E acrescentou: “entretanto, numa época em que o público está cada vez mais sensível em relação às questões de gênero, raça e colonialismo, os museus deveriam reavaliar seu legado.” Se eu fosse crítica de arte naquele periódico, teria escrito: “numa época em que o público está cada vez mais histérico e paranoico em relação às questões de gênero, raça e colonialismo, os museus deveriam fazer campanhas de esclarecimento e reeducação para matizar as neuroses de cada um e defender seu legado histórico.” Escreveria exatamente isso, mesmo que fosse “cancelada” para todo o sempre.

Em nossos dias, devemos queimar Gauguin por causa de uma vida “dissoluta e condenável”? É a eterna questão sobre obra e a vida privada do autor: podemos ou não dissociar uma da outra? Uma controvérsia que a França viveu há pouco com o cineasta Roman Polanski, cujo extraordinário filme J’accuse, foi alvo de pedidos de boicote porque seu diretor, há décadas, foi acusado de abuso sexual.

Quanto a Gauguin que o Masp expõe agora, pelo que li a mostra está igualmente “cheia de dedos” e explicações. Por que não fica claro para o público que a obra continua sendo a obra? Que quando um artista cria algo, isso não pertence mais ao artista, e sim ao mundo?

“Duas Vahinés”, Paul Gauguin, 1891.

Erotismo colonial

Há vários anos, Gauguin criava polêmica. Seu nome já despertava mal-estar… Por ocasião do lançamento de um filme sobre sua vida, Gauguin – Voyage de Tahiti, onde o artista foi interpretado por Vincent Cassel, muitos tiveram chiliques. Alguns lamentaram que aspectos da vida privada do pintor fossem ocultados, em particular a idade de suas vahinés companheiras ou parceiras de uma noite. Outros denunciaram o silêncio do cineasta sobre “os abusos do homem branco sobre as populações locais”. Como se o papel de um cineasta tivesse que ser necessariamente o mesmo de um militante woke. Ou, como se Gauguin não tivesse trazido benefícios às esposas e às populações. O pai de uma dessas garotas implorou ao artista para que se casasse com ela, “salvando-a, assim, dos missionários”.

Os fatos merecem ser colocados em perspectiva. Em 1900, apesar da vinda dos missionários, a Polinésia mantinha uma relação diferente com o sexo e o sentimentalismo, o pecado e a culpa. Gauguin chegou tarde demais, invadido por esse “sonho” que, então, encontrava-se agonizante.

A formidável historiadora Anne-Claude Ambroise-Rendu, autora de A História da pedofilia do século 19 ao 21 (Histoire de la pédophilie du XIX au XXIe siècle – Ed. Fayard), explica que precisamos desconfiar do nosso olhar atual sobre fatos que datam de mais de 100 anos. “Se começarmos a reler todo o comportamento dos indivíduos de ontem com os valores que são os nossos hoje, teremos uma leitura anacrônica do passado”, explica.

Na França, no final do século 19, por exemplo, a lei punia todo “atentado ao pudor sem violência até os 13 anos”, limite de idade que seria aumentado para 15, em 1945. Isto significa que, naquele tempo, uma garota de 13 anos já não era considerada “criança”, e Gauguin não tinha de nada de condenável mesmo que ainda se possa acusá-lo moralmente por ele ter participado do “erotismo colonial” e “aproveitado de sua condição de branco”. Nenhum grande mecenas deixaria de ajudar um gênio da arte, que nunca fez mal a ninguém.

Porém, tratá-lo como pedófilo, uma noção que nem existia na época e define um perfil psiquiátrico “tipo”, é completamente absurdo. “Cabe aos diretores de museus fazer o seu trabalho até ao fim…”, declarou a historiadora. Ou seja, cabe a eles, como escrevi acima, fazer um esforço conjunto de elucidação para nuançar essa histeria e defender a herança artística da humanidade.

Perninhas abertas

Depois do caso Weinstein e do #MeToo, artistas como Balthus, Gauguin ou Schiele, mortos há muito tempo, têm seus trabalhos contestados por causa da sexualidade controversa. Devemos nos apressar, antes que as suas obras sejam examinadas, não mais esteticamente, apenas do ponto de vista do “comportamento criminoso de cidadãos estupradores”, ou que alguns venham cobrir com véus e destruir as telas, assim como fizeram as carolas que quebraram a escultura art decô que orna o túmulo de Oscar Wilde, no cemitério Père Lachaise, em Paris. Amanhã, pela “boa causa da proteção à criança e do respeito à mulher”, os museus acabarão colocando no porão, boa parte de suas obras-primas.

Caso Balthus: 10 mil signatários exigiram a retirada de sua pintura da parede do Metropolitan de Nova York. Felizmente, o museu se recusou e a obra continua bem lá. Quem não lembra da tela, onde uma adolescente sonha com os olhos fechados e braços estendidos. “Drama dos dramas”, a mocinha está com as perninhas um pouco abertas e o que se vê? Alguns centímetros de uma calcinha branca. Isso, e Balthus é acusado de “romantizar a sexualização da criança”. O que diz a sua biografia? Não me interessa, não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe. Deixem o artista e os segredos dele bem sossegados em sua tumba! Arte e artistas são livres.

Entre as esculturas “Gato” (1954) e “Mulher de Veneza II (1956) do suíço Alberto Giacometti (1901–1966), “Teresa sonhando”, a controvertida tela de Balthus, 1938. Foto: Thomas Urbain/AFP/Getty Images

Pessoalmente, acho mais obscenos a ostentação, exibicionismo e narcisismo que vejo no Instagram do que as menininhas da obra de Balthus com a qual, aliás, jamais me identifiquei. Gostemos ou não, fiquemos incomodados ou não, penso que tudo deve poder ser dito e mostrado, e pior (ou melhor) se o espectador ficar chocado. Problema dele. Em vez de exigir censura, é só passar ao longe e não olhar. A cada um, o direito de criar, gostar e olhar o que quiser.


Caso Schiele: em 1918, o coitado morreu de gripe espanhola. Foi há mais de um século. Um ano apenas depois do julgamento de Harvey Weinstein, o Museu Leopold de Viena (que visitei nos anos 1980, enviada pela Fundação Bienal, viagem que me inspirou um dos capítulos² de Direi Tudo) pretendia promover mais uma exposição de sua coleção para celebrá-lo.

Londres, Colônia e Hamburgo recusaram-se a apresentar o cartaz da mostra. Este, simplesmente retomava as famosas telas Moça com Meias Laranja e Homem Sentado Nu. As cidades refratárias propuseram borrar os órgãos sexuais femininos e masculinos, considerados “muito aparentes, luzentes e desconfortáveis”. Viena manteve-se firme, orgulhando-se do caráter sempre escandaloso do licencioso Schiele.

A cidade austríaca transformou o artista em argumento de venda, assim como os magnatas do luxo sabem fazer há muito tempo. Cínicos empreendedores podem ser tanto adeptos do pornô chique quanto do “pudibundo”, uma vez que eles mesmos fornecem hijabes e abayas às petromonarquias islâmicas.

“Adèle Harms”, Egon Schiele (1890-1918), 1917

De volta a Schiele. E quanto à sua reputação biográfica? Sim, ele teria abusado de suas jovens modelos, a justiça o absolveu. Sim, ele teria sido um amante de prostitutas e talvez de sua irmã. Igual a Balthus, também não me interessa. De qualquer forma, repito, a arte é livre e todas as questões externas a ela, não nos dizem respeito. Schiele foi um dos que melhor souberam encenar as núpcias de Eros e Tânatos. Tratou do corpo, do prazer e da morte, como ninguém. Nenhuma censura anacrônica consegue anular o seu gênio, assim como não pode nada contra Gauguin.

Até a próxima que agora é hoje, época na qual, para alguns, modernismo, puritanismo, obscurantismo e wokismo vão muito bem juntos!

² Sachertrauma”, pág. 73. No meu livro Direi Tudo e um pouco mais (Ed. Perspectiva, 2017), capítulo dedicado à verdadeira torta Sacher na Viena de Egon Schiele, e à grave questão da falta de tato em certos humanos.  

Captura de tela do site do Masp: vista da exposição “Paul Gauguin: O outro e eu”. Crédito da foto: Eduardo Ortega

Parabéns, soberana!

Nunca escondi a minha simpatia pela Rainha do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e de seus outros Reinos e Territórios – Chefe da Commonwealth – que, no dia 6, aos 95 anos, completou 70 de reinado. A ponto de me perguntar se sou monarquista.

Elizabeth II, 2001© Lucian Freud

Mesmo assistindo à uma série demolidora na TV e lendo maldosos gossips de tabloide, nunca consegui deixar de ser fã de Isabel II (Elizabeth II, para o seu povo). Aprecio até mesmo as suas roupas!

No aniversário de 90 anos, lembra? Ela estava vestida com um tailleur “fluo” verde limão. “Fluo” é apócope da palavra “fluorescência”, sendo que esta é a capacidade de uma substância de emitir luz. Foi ousadia fashionable da grande dama? Excentricidade britânica? Mau gosto palaciano?

Nada disso! Not at all!

Se as cores das roupas da rainha da Inglaterra não tivessem um sentido, claro, seriam impensáveis. Como imaginar Sua Majestade Britânica e estilistas escolhendo “verde limão” apenas por cromatismo? Seria negar todo o alcance simbólico das tonalidades pictóricas na história dos mestres ingleses.

Elizabeth II, na comemoração de seus 90 anos.

Verde fluo, para mim, queria dizer que a rainha reinava e – emitindo luz sobre o que é obscuro – garantia a constituição e a democracia, a unidade nacional e a integridade territorial. Enquanto símbolo da continuidade histórica do Estado, continua a representar e assegurar os interesses internacionais. Tudo o que não vemos, há tempos, acontecer no Brasil.

‘Ela e eu vamos ao toalete como todo mundo’

Vi a rainha em carne e osso, de muito longe, quando ela inaugurou o Museu de Arte de São Paulo, na avenida Paulista, em 1968. Na comemoração, ao contrário da minha família, eu me encontrava no meio da massa, de onde enxergava quase que apenas o príncipe Philip e alguns dos amigos dos Leirner. Já um dos meus tios, há até mesmo foto dele fazendo uma pequena reverência no beija-mão de Elizabeth II, que foi madrinha do evento.

Minha avó Felícia, que me confessava não sentir nenhuma diferença entre ela e a rainha da Inglaterra “pois, afinal, ambas iam ao toalete como todo mundo”, naquela época pensava que a pessoa certa para mim seria o príncipe Charles. Verdade que estávamos com idade idêntica, mas, por mais que a minha avó estivesse brincando, era difícil me imaginar na corte inglesa uma vez que eu sempre escolhia o lado da plebe…

Rainha Elizabeth II é recebida para a inauguração do Masp, em 1968.
Nelson Leirner, no beija-mão da rainha Elizabeth II, madrinha da inauguração do Museu de Arte de São Paulo – Divulgação/MASP
Elizabeth II conhecendo Tomie Ohtake – Divulgação/MASP

Sempre gostei de coisas feitas e ditas por Elizabeth II, que soube se manter impecável dentro de seu papel e atribuições. Só não gostei de uma que não foi feita, quando Lucien Freud pintou o seu retrato e a monarca, magnânima e majestosamente, não o “mandou para a torre”. Que retrato horrível!

Até a próxima, que agora é hoje e Long Live the Queen!

Elizabeth II, retratada por Lucian Freud em 2001.

Nota: “Mandar para a torre” (“send to the tower”) é uma expressão inglesa que quer dizer “enviar à prisão”. Lugar ao qual, por exemplo, muitos brasileiros gostariam de mandar também o seu presidente atual.