A onça da minha avó

As atribulações de uma pantera e seu filhote no parque de Serengeti na Tanzânia, documentário com imagens surpreendentes que passou esta semana na televisão, lembrou-me de uma das únicas reprovações que eu fazia na idade adulta, à minha adorada avó Felícia. Não entendia como era possível ela, que amava os bichos como ninguém, ter adquirido a pele de um deles em forma de casaco.

Verdade que nos anos 1950, 1960 e ainda antes, quando ela frequentava a Madame Rosita, loja que depois mudara-se da Barão de Itapetininga para a avenida Paulista, estes conceitos e consciência não faziam parte do repertório das pessoas. Tanto que um simpático senhor peleteiro se ocupava de guardar as peles no frigorífico durante o verão, e ninguém achava estranho. Nem mesmo Evita Perón, a “defensora incansável dos pobres, miseráveis e explorados”, quando foi recebida pelo presidente Dutra, deixou de usar estolas e casacos de vison.

Felícia, tanto quanto Evita de quem ela desconfiava pela ambiguidade e não gostava do estilo, porém com motivos muito diferentes, provavelmente adquiriu a pele como quem compra dobradinha para comer, sem querer imaginar a origem da substância. E, por incrível que possa parecer, um pouco como os esquimós: apenas para se aquecer. Sim, porque – artista que era – o que a minha avó mais detestava era a ostentação. Jamais usou uma joia na vida.

Ela amava o casaco de pele pela sensação de conforto, sensualidade do toque e pelo calor que lhe proporcionava. Por felicidade, podia comprar um. Que, segundo ela, não era “nada que se equiparasse com lã ou sintéticos”. Assim, eu vi a minha avó usar a sua onça, não em eventos sociais ou para passear mas, sozinha, para trabalhar. Sobretudo cedo, de manhã, em seu gelado ateliê de Campos do Jordão, onde se instalou a partir de 1962. Ou para ler, enrolada nela em seu terraço com vista para as montanhas. Vi também Felícia sujar a onça de barro enquanto moldava esculturas, ou limpar nela as mãos que afofavam a terra de uma planta no jardim.

Até a próxima que agora é hoje, continuo a condenar a matança de animais para a vaidade e ostentação de vestuários. Contudo, não reprovo mais a minha avó por ter usado a pele daquele único bicho até o final da vida dela. Para mim, ele teve um fim muito digno: foi, enquanto avental de artista, a primeira onça a colaborar com a arte brasileira, entrando em sua história!

Quando ataque terrorista tem a ver com o peixe

Hoje houve mais um atentado terrorista, assassinato e tomada de reféns, no sul da França, perpetrado desta vez por um franco-marroquino. Apesar de sua opacidade aparente, a questão é cristalina.

O supermercado onde faço as minhas compras desde 2015, ano do atentado de 13 de novembro, chama-se Super U. Jamais entro lá sem alguma preocupação. Aliás, jamais entro em qualquer lugar público em Paris com sentimento diferente. Hoje, houve mais um atentado terrorista, assassinato e tomada de reféns justamente no Super U, no sul da França, perpetrado desta vez por um franco-marroquino. O presidente Macron acaba de declarar em Bruxelas que o perigo do terrorismo persiste, mas agora é endógeno. Não é mais comandado do Exterior.

Apesar de sua opacidade aparente, a questão é cristalina: os jovens magrebinos se iniciam como simples delinquentes (tráfico de drogas, roubo, etc.) e são presos. Uma vez na prisão – barril de pólvora prestes a explodir, com uma população carcerária de mais de 70 mil pessoas -, são cooptados pelas redes salafistas e se radicalizam, dando continuidade ao mesmo ódio desenfreado pela França e pelos franceses. Ódio este que se prende ao passado colonial, é claro, mas também ao ostracismo que funciona como um círculo vicioso: quanto mais ódio, mais ostracismo e mais ódio. Logo tornam-se criminosos comuns podendo “eliminar” quem odeiam sob o pretexto “nobre” da causa jihadista e ainda passam por heróis aos olhos dos outros islamitas radicais.

A religião muçulmana é a mais fácil do mundo. Basta a pessoa declarar que acredita em Alá. Depois, é só alegar lealdade ao grupo Estado Islâmico (EI), gritar “Allahu Akbar” (Deus é o maior, em árabe) e, assim, maquiada e fantasiada de jihadista, cometer uma carnificina sob aura religiosa quando, na verdade, não é mais do que um pequeno facínora de periferia.

Retribuição

Hoje, sexta-feira, foi dia de peixe. Meus avós, imigrantes europeus no Brasil, jamais permitiram que comêssemos carne neste dia. Consideravam falta de respeito trair os hábitos do país cristão que os recebera, além de pensarem que era de mau gosto fazer isto diante de pessoas que, por motivos religiosos diferentes dos deles, preferiam o peixe neste dia da semana.

Esse é o meu costume até hoje, assim como ficou gravado em minha educação o forte sentido moral de “direito e dever”, segundo o qual o primeiro sempre deve se equivaler ao segundo. Em relação ao seu trabalho artístico*, a minha avó, já naturalizada brasileira, dizia:

“O que realizo é também uma forma de retribuir a este país o que ele me deu. ”

Claro que não dá para comparar, mas – penso que, em nossa época, se os muçulmanos da França pudessem ter o mesmo reconhecimento, amor e ausência de ódio, igual vontade de integração, consideração, gosto e atenção com a aculturação que os meus avós – os franceses certamente seriam mais respeitosos, tolerantes e, aqui, não teríamos chegado aonde estamos.

Até a próxima, que agora é hoje!

Vídeo Estadão: “Por que a França virou alvo de ataques?”

  • Obra escultórica que, no final da vida, Felícia Leirner doou ao governo do Estado e se encontra agora reunida no museu ao ar livre que leva o seu nome, em Campos do Jordão.


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Esperando ‘Miss Liberty’, a homenagem às vítimas do terrorismo

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14 de Julho: o preço da liberdade

É a 26ª vez que assisto in loco a comemoração da queda da Bastilha e hoje particularmente também do centenário da entrada do Tio Sam na 1ª Guerra. E é a 1ª vez que vejo o Brasil, minha pátria original, nesse estado.

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O que mais surpreende neste artista franco-argelino é a sua capacidade de refletir sobre a consciência individual e coletiva num mundo em crise. O que ele faz tem talvez mais a ver com a etnologia, antropologia, geopolítica e história, do que com as artes plásticas em seu sentido tradicional. Colonização, guerras, terrorismo, religiões, ideologia, política, pintura e arquitetura são os temas que disseca com maestria.