Segregação inversa: o novo terrorismo

Me pergunto se alguns críticos de arte brasileiros estão com medo de ficar “por fora do sistema” e, então, tornam-se oportunistas; ou se o militantismo político e a ideologia obliteram seus julgamentos e eles realmente acreditam nas enormidades que dizem e escrevem? O fato é que, são “pão abençoado” para os novos terroristas culturais. 

“Terrorismo arquitetônico”: imposição da vontade pelo uso do “terror”, que é a distorção de um projeto já existente.

Ontem, dia 9, em vídeo gravado no início de setembro, ouvi um deles declarar que “pode estar enganado, mas esse caminho da 35ª Bienal é sem volta”. “Antes”, disse, “as exposições só tinham homens brancos e agora, terão apenas mulheres, pessoas da comunidade LGBTQIA+, negros, indígenas e outros excluídos pelo sistema e pelo mercado.”

Essa afirmação é uma distorção parecida com a arquitetônica que deformou o  projeto de Niemeyer para a mesma bienal. Se, antes, as exposições tiveram homens brancos, isso nunca aconteceu porque existia “intenção” de excluir mulheres, negros, indígenas ou LGBTQIA+. O propósito sempre era apresentar BOA ARTE, fosse de quem fosse, não importando gênero, etnia ou preferência sexual. Já vimos centenas de “mostras femininas” (como se gênero fosse critério estético). Porém, nunca se viu uma exposição “especial homens brancos”.

Minha avó, Felícia Leirner escultora (“métier masculino”, segundo Brecheret), ganhou o prêmio máximo na Bienal de São Paulo, nos anos 1960. Sua obra consta de acervos também no Exterior. Nenhuma artista de minha família jamais sofreu discriminação ou preconceito por ser mulher no século 20, e menos ainda no 21. Eu tampouco, enquanto crítica e curadora. A maior parte dos críticos de arte que conheço em toda parte, são mulheres. Várias premiadas e reconhecidas, algumas igualmente curadoras.

Tarsila, Anita Malfatti, Maria Bonomi, Renina Katz, Sheila Brannigan, Maria Martins, Tomie Ohtake, Yolanda Mohalyi, Regina Silveira, Mira Schendel, Carmela Gross… a lista de mulheres que construíram a arte brasileira e nos orgulham no mundo inteiro, não acaba mais.

Quem representa a arte da humanidade?

É inacreditável a naturalidade, a falta de indignação e a aquiescência com as quais uma pessoa (com estudos) pode afirmar que “antes, as exposições só tinham homens brancos”. O rapaz simplesmente parecia dizer que é “normal” que o que conte agora sejam as “cotas” identitárias, e não mais apenas os critérios intrínsecos à arte.

Como exemplo, citou, encantado, a última Bienal de Veneza, onde 80% dos artistas foram mulheres. Só espero que o brasileiro Adriano Pedrosa, próximo curador geral da mostra, não caia nas ciladas woke. Se o planeta não possui 80% de mulheres ou 80% de negros, por que uma exposição coletiva internacional que representa a arte da humanidade, deveria ter?

Clichês e bom-mocismo

Hoje, sim, existe intenção de “tirar pessoas da jogada”. Tirar homens brancos, heterossexuais e binários, para começar. Depois, virão os louros, os europeus, os de mais de 1,80m, os amarelos, os sem tatuagem, etc.  Porque o objetivo não é mais a arte. O objetivo é, inversamente, segregar.

Há pouco, o Estadão também publicou uma crítica “militante”, cheia de clichês e bom-mocismo sobre a 35a Bienal, ela mesma organizada não apenas por curadores “militantes” em cima de outros lugares-comuns ideológicos, demagógicos e hipócritas, mas por verdadeiros terroristas culturais. E a jornalista com a sua “boa consciência social” e “bons sentimentos” aponta, é claro, “apenas o que é bom”, evitando mostrar o que é péssimo e controverso. O seu artigo é complacência pura. Quem tem estômago sensível a enjoo, melhor se abster.

Saiu igualmente  uma entrevista  onde outra “militante”, desta vez pequena assistente do Masp (Museu de Arte de São Paulo), afirmou que “ter 80% dos 121 artistas autodeclaradamente negros é uma conquista”. Dei muita risada. Cor se “autodeclara”? Deixou de ser uma qualidade anatômica ou fisiológica? Posso autodeclarar, então, de um dia para outro, que sou amarela?

Ela solta ainda outra pérola: “a arte deveria sempre refletir alguma ‘realidade social’ “.  Fiquei pensando quais seriam os destinos do dadaísmo, surrealismo, abstracionismo etc etc, se tivessem obedecido às ordens de pequenas funcionárias “direitistas do homem” como esta…

Terrorismo cultural

Em crítica de arte, tanto quanto em curadoria, quando não há neutralidade, não pode haver honestidade. Terroristas culturais ou intelectuais são os que racionalizam sistemas radicais de ideias irracionais. Pessoas perigosas com convicções ligadas a “compromissos”, “ambições” e “interesses” de todas as ordens, inclusive econômicas e institucionais. Possuem o mesmo grau de intolerância e igual desejo de provocação e intimidação que os terroristas etnonacionalistas ou separatistas, jihadistas, de direita, esquerdistas e anarquistas.

Críticos obliterados mentais genuínos, de um lado, e anuentes oportunistas com medo de ficar “por fora do sistema”, de outro, ambos são “pão abençoado” para partidários do terrorismo estético, cujos propósitos – sob a capa da “bondade, inclusão, cura e reparação”- constituem, ao contrário, destruição, violência e segregação. No caso, uma exposição de 121 artistas com 80% “não brancos”, discriminação invertida.

Até amanhã, que agora é hoje e, nas artes plásticas, nem durante a ditadura vivemos época mais deletéria do que nesses tempos woke. A liberdade está em perigo!

Negacionismo às avessas

Assisti ao documentário O Sopro das Montanhas, sobre o artista e calígrafo japonês Akeji Sumiyoshi (1938-2018)  cuja vida, durante meio século, esteve em fusão absoluta com a natureza. Raras vezes um filme me emocionou tanto. Já faz quase uma semana, não paro de lembrar. E, no entanto, ainda há pretensiosos imbecis pensando que são os cientistas ocidentais os conhecedores e detentores dos mistérios e “verdades” do universo.

Nascido em Kyoto, Akeji foi criado por seu avô, que vivia no alto das montanhas de  Kuramayana, no vale do Himuro ao norte da antiga capital. Mestre em artes marciais e seguidor do xintoísmo, este lhe ensinou desde cedo as práticas xamânicas ancestrais e o introduziu ao manejo do sabre. Também o sensibilizou à arte do pincel e à importância do chá.

Durante a adolescência, Akeji peregrinou de santuários xintoístas a mosteiros budistas, o que lhe permitiu familiarizar-se com a farmacopeia tradicional. Logo depois, matriculou-se na Universidade de Kyoto para estudar direito e continuou seus estudos em química e ciências naturais na Universidade de Shimane.

Jovem diplomado, vivendo em sofisticado apartamento, Akeji ingressou em um “think tank” (grupo de experts) a pedido do então primeiro-ministro, Ichirô Hatoyama. Ao retornar de um período na Sorbonne, em Paris, deixou a política e se casou.

Aos 31 anos, com sua esposa Asako, Akeji Sumiyoshi decidiu morar em um refúgio na floresta no mesmo vale de Himuro, nas encostas do Monte Kuramayama de sua infância, cabana que se tornou seu eremitério por quase cinquenta anos.

 

Os espíritos da floresta

O cotidiano de Akeji era feito de orações para evocar os espíritos da floresta, rituais com o sabre, cerimônias do chá e colheitas. Sem telefone, Internet ou qualquer meio de comunicação, ele levava uma vida atemporal, dedicando-se à arte em constante diálogo com o seu entorno animal e vegetal. Uma vez ou outra recebiam visitas.

Em uma de suas raras entrevistas, disse: “Quando estou prestes a caligrafar, manipulo o papel antes de usá-lo de modo que ele faça barulho e minha alma penetre nele. Eu o venero, trato-o como se fosse um sabre. Tanto o Caminho da tinta quanto o Caminho do sabre, ambos precisam de movimento perpétuo em direção ao Infinito e retorno ao Centro.”

Seguindo o ritmo das estações (no Japão são 24, subdivididas em 72), o calígrafo, poeta, pintor e químico coletava sementes, frutos, flores, cascas e raízes. Extraía-lhes a matéria corante por dessecação, moagem, combustão ou fermentação, utilizando processos tradicionais. Como não tinha espaço na cabana, o seu ateliê era a floresta. A sua arte e vida desenvolviam-se em fusão absoluta com a natureza que jamais deixou de adorar.

Este personagem exercia uma fascinação tão grande que chegou a ser visitado por Jacques Lacan e pela família Matisse. O casal de cineastas franceses realizou o premiado documentário com muita dificuldade, Akeji não queria ser filmado. Conquistar a sua confiança levou mais de um ano e só se deu pela ajuda que Corentin Leconte e Mélanie Schaan prestaram quando Asako teve que ser hospitalizada em Kyoto.

Profundamente marcados por esse encontro, os jovens realizadores confessaram em entrevista, que o filme mudou a sua vida. Deixaram Paris para se estabelecer na natureza bretã. Contaram que foi extranatural testemunhar o vendaval que se levantava, invariavelmente, a cada vez que Akeji pegava no pincel ou orava à natureza. Depois de presenciar dezenas de vezes este fenômeno de sintonia com os espíritos da floresta,  o casal percebeu que não havia “coincidência” e deixou a tradição cartesiana para sempre.

“Quando estou prestes a caligrafar, manipulo o papel antes de usá-lo, de modo que ele faça barulho e minha alma penetre nele. Eu o venero, trato-o como se fosse um sabre. Tanto o Caminho da tinta quanto o Caminho do sabre, ambos precisam de movimento perpétuo em direção ao Infinito e retorno ao Centro.” (Foto Yutaka Sumiyoshi)

Negacionismo às avessas

Não conto tudo isso só porque me emociona. Conto também, porque li as imbecilidades escritas por alguém que antes eu julgava interessante por sua posição científica diante do negacionismo dos ignorantes da extrema-direita e a gestão criminosa da covid-19 no Brasil.

Hoje, a negacionista – tão extremista quanto os fundamentalistas evangélicos – é Natalia Pasternak. Negacionista de algumas experiências (não necessariamente científicas) da maior importância para a humanidade. Misturadora absurda de alhos com bugalhos que coloca na mesma panela astrologia, homeopatia, acupuntura, medicina tradicional chinesa, curas naturais, curas energéticas, dieta, paranormalidade, discos voadores, deuses astronautas, antroposofia, poder quântico e… psicanálise, “pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério”, segundo ela. Como se a psicanálise, a homeopatia ou a medicina tradicional chinesa tivessem prentendido alguma vez terem sido “ciência”.

É preciso que alguém diga à essa bióloga pop-people-glamour, com seus preenchimentos labiais e bem depiladas sobrancelhas Nike, assim como ao outro pretensioso “culturocentrista”, cientificista, antropocentrista e etnocentrista que escreveu com ela esse desonesto, sensacionalista, arrogante, irresponsável, aliciante, comercial e apelativo Que bobagem!, que os seres humanos ainda estão muito longe de conhecer os mistérios e “verdades” do universo. Um pouco de modéstia, sabedoria e apuro oriental não lhes fariam mal.

Até a próxima, que agora é hoje e ciência não explica tudo. O nosso divino “artista do vento”, está aí para provar!