A escritora oficial e a sua fã universitária

Não. Não vou deixar passar o post de Leyla Perrone-Moisés, insigne universitária brasileira que afirmou no Facebook: “os comentários negativos à atribuição do Nobel à Annie Ernaux mostram apenas a profunda ignorância dos leitores.”

Vitrine, em Paris, de uma das inúmeras livrarias em todo o país, que se recusam a vender os livros de Annie Ernaux. Tradução: “Inútil perder o seu tempo em me perguntar se tenho ‘livros’ de Annie Ernaux. Não proponho obras de colaboracionistas antissemitas, feministas histéricas, “indigenistas”, racialistas e tudo que tenha alguma ligação com o fedor woke!

Como se leitores não pudessem ter sua própria maneira de pensar, a professora apresentou o argumento de que o livro Os Anos “foi eleito um dos melhores romances do século XX, por muitos críticos internacionais.” “E é mesmo”, afirma, esquecendo a modéstia de acrescentar que “é mesmo”, mas apenas no julgamento dela e daquelas pessoas que o elegeram. Outros, não necessariamente ignorantes, não o elegeram, não julgam da mesma maneira e têm todo o direito de não pensar segundo a doxa. Toda expressão, tanto quanto toda opinião, é livre.

Contudo, não me surpreende que a especialista não aceite opiniões contrárias às suas. Fã incondicional da escritora oficial francesa, ela só pode se comportar como a própria Ernaux que há dez anos pediu que o escritor Richard Millet – por ter publicado uma obra literária que não agradava aos “bem-pensantes” (como ela) – não fosse mais editado e expulso da editora Gallimard, onde era diretor de coleção.

Esta “punição”, que Ernaux convenceu 100 escritores, menores como ela, a assinar, foi algo jamais visto. Nem mesmo na União Soviética houve algum requerimento de homens e mulheres de letras dirigido contra um colega. A confraria foi reunida por Ernaux, não por solidariedade, mas por desejo de “cancelar” a “ovelha negra”, sendo que um autor, sobretudo em obra literária, por mais controversa que seja, como a de Millet, está no terreno da liberdade criativa absoluta.

“Em seu país, ela é bestseller”, afirma a crítica literária brasileira. Ora, Marc Levy é um milhão de vezes mais bestseller na França e ninguém garante, com isto, a sua “grande qualidade literária”. Decerto, Leyla Perrone nem o conhece. O que, é claro, não a torna uma profissional demérita. O que a desmerece é um argumento tão medíocre como este.

Cereja sobre o bolo, a universitária pensa que “a ignorância dos leitores brasileiros se deve à queda de prestígio que a língua e a literatura francesa têm sofrido desde meados do século passado.” Como se os grandes editores e jornalistas “se desinteressassem” realmente da literatura francesa.

Não sei, mas duvido que ela tenha razão. Que se saiba, são raros os países como o Brasil que (desde sempre) dão tanta acolhida à literatura francesa. Será preciso lembrar, entre incontáveis outros exemplos, a quase completa tradução de Diderot e a edição de tantas obras sobre este autor, feitas por Jacó Guinsburg em sua Editora Perspectiva, pouco antes de falecer?

A Iluminuras acaba de lançar mais uma obra-prima (entre 4!) de Paul Valéry. Os catálogos das editoras estão recheados de autores franceses. Pascal Quignard, Emmanuel Carrère e Houellebecq foram traduzidos. Por mais defeitos que possa ter esta edição, a Nova Fronteira há pouco republicou a “Recherche” e “Jean Santeuil”, com a tradução de Py. Não faltam proustianos no Brasil.

Passionária no papel de ‘censora, delatora e canceladora’

O fato é que, no entendimento de “outros” críticos, escritores e analistas franceses e não franceses, Annie Ernaux certamente não está neste rol dos “respeitadíssimos” como diz Perrone-Moisés. Em 2012, quando a escritora executou a sua linchagem de Millet em Paris (Os Anos já havia sido publicado) nunca li tantas tribunas contra Annie Ernaux, ridicularizando (também literariamente) a passionária que tomara o papel de “censora, delatora e canceladora, do gênero soviético”.

Um daqueles críticos lúcidos, dizia assim: “Desconfiemos desta ‘santificação coletiva’ de Madame Ernaux, pelos carolas. Recapitulemos: em meio século, ela escreveu sobre seu pai, sua mãe, seu amante, seu aborto, a doença de sua mãe, seu luto, seu supermercado, seu metrô, seu defloramento fracassado durante o verão de 1958… Tudo, sempre recontado muitos anos depois com uma seriedade sem precedentes. O que é surpreendente com Madame Ernaux é o quanto os seus livros – que não param de voltar à sua origem modesta – não são modestos. São a história de uma escritora que se instalou no topo da sociedade, passando a vida a remoer a sua injustiça social. Este ‘sentimento doloroso’ das origens revela, na verdade, a miséria do seu aburguesamento. Como se ela se recusasse a admitir que se saiu muito bem.”

Não li tudo, apenas três romances, mas concordo com ele. Num dos livros, fiquei deveras irritada com a figura feminina que passa aspirador enquanto espera a visita do amante (diplomata, se não me engano) e, em vez de desligar o aparelho, gasta páginas falando do medo de não ouvir a campainha. Em todos eles, Madame Ernaux inventa a “queixa ostentatória”, o “lamento autoconfiante”. É triste, porque nessa ladainha de autossatisfação e autocomiseração simultâneas, que ela chama de “autobiografia coletiva”, existe, é claro, muita coisa boa que se salva.

Há frases maravilhosas que lembram até mesmo o hipnótico Modiano. Mas são frases que, se ela fosse Sagan, teria deixado assim mesmo. Porém, Ernaux não é Sagan e toda vez que inventa uma bela frase, ela a estraga. Veja só: “Foi um verão sem pormenores climáticos”. Bom demais. Basta? Não. Ela sempre acrescenta alguma outra laboriosa para encher linguiça, e acaba com a anterior: “Eu a conheço na solidão intrépida de sua inteligência.” Oh là là!

Outro exemplo: “Ela espera viver uma história de amor.” Frase linda e simples que diz tudo, faz adivinhar até mesmo a decepção que muito provavelmente virá depois. Aí, Ernaux adiciona: “É preciso continuar, delimitar o terreno – social, familiar e sexual.” Fica parecendo redação de exame de fim de ano na escola ou discurso para a extrema-esquerda de Mélenchon. Não dá!

À custa de sempre querer se “autodefinir”, Annie Ernaux toma o seu leitor por um idiota. Aniquila qualquer talento possível de leitura e imaginação, afundando-o na sua deslumbrada exegese. Pessoalmente, tenho pavor de autores que “se escutam” em auto deleitação, “gozando” (para usar a palavra dela) nesta espécie de onanismo literário.

No final, quem tem um pingo de sensibilidade – e não é um universitário de plantão ou membro decadente da Academia sueca – acaba os livros com pena, pensando na escritora que ela poderia ter sido, nos livros menos chatos que ela poderia ter escrito e na leveza, distância e humor aos quais ela se recusa desde que descobriu que era escritora.

Denúncia e cópula

Mas Annie Ernaux continua a perseverar fora dos livros. Quando não escreve, segue assinando petições desprezíveis, sobretudo para ostracizar, banir e expurgar todos aqueles que não se ajoelham diante do “espírito dos tempos”. É o seu hobby.

No início deste ano, um crítico literário do Figaro argumentou que, se alinhássemos apenas as suas assinaturas, provavelmente teríamos um romance bem mais grosso do que o seu último, com 27 páginas (8 euros, enquanto Madame Bovary, 627 páginas, custa 3), onde ela conta como, quando estava com 50 anos, teve um “caso” com um aluno. Numa entrevista, a escritora diz que quando fornica bem com o rapaz (enquanto este assiste televisão, ao mesmo tempo que lhe dirige gírias vulgares), ela fica feliz: “Muitas vezes, fiz amor para me forçar a escrever (…). Esperava que o fim da expectativa mais violenta que existe, a do gozo, me desse a certeza de que não havia gozo maior do que escrever um livro.” Eis um bom conselho para jovens principiantes.

Finalmente, descobrimos onde a nova vencedora do Nobel encontra sua inspiração: na denúncia e na cópula.

OSLO, NORWAY – DECEMBER 10: (FILE PHOTO) Palestinian leader Yasser Arafat displays his Nobel Peace Prize December 10, 1994 in Oslo, Norway. Arafat was awarded the prize with Israeli Foreign Minister Shimon Peres and Israeli Premier Yitzhak Rabin. (Photo by Yaakov Saar/GPO via Getty Images)
Caricatura de Annie Ernaux para o jornal LesEchos. Retrato de uma militante  pró-palestina, de 82 anos, do partido islamo-esquerdista “La France Insoumise”.

Mas, já que Arafat também recebeu o Nobel, é bom lembrar que, no dia 19 de junho de 2017, ela co-assinou, no Le Monde, uma coluna de apoio a Houria Bouteldja – porta-voz do infame partido Indigènes de la République e autora do livro woke e antissemita Les Blancs, les Juifs et nous (Os Brancos, os Judeus e nós, 2016). Boteldja protestava que uma “senhorita da Provence” não era digna de participar do concurso Miss França, porque tinha pai israelense-italiano. Segundo ela e sua amiga Ernaux, “não se pode ser israelense, inocentemente”. Portanto, as duas sugeriram “enviar todos os sionistas para o Gulag”.

O apoio de Ernaux à Houria Bouteldja desencadeou inúmeras reações, inclusive do diretor de Marianne e ex-diretor do l’Humanité, que descreveu o texto de Ernaux como “surpreendentemente fiel a uma mulher que sempre expôs seu racismo à vista de todos”. Mas, logo em seguida, em 2018, Annie Ernaux assinou mais uma petição, desta vez para boicotar a temporada transcultural França-Israel. E, no ano seguinte, publicou no jornal Mediapart um pedido de boicote ao Eurovision Song Contest, em Tel Aviv.

Em 2021, juntamente com a extrema direita e a extrema-esquerda, Ernaux apoiou os coletes amarelos que, entre outras calamidades em vários outros pontos do país, destruíram a parte inferior do Arco do Triunfo. Não contente com isso, Madame, hoje Nobel, ingressou no parlamento da União Popular reunindo gente do mundo associativo, sindical e intelectual por trás da candidatura de Jean-Luc Mélenchon, violento extremista pró-terrorismo palestiniano, às eleições presidenciais de 2022.

Penso que, quando o antissemitismo ocorre na França, país do caso Dreyfus e da “rafle du Vel’ d’Hiv”, isto é ainda mais abominável. Uma vez que os chamados “novos antissemitas” sempre se escondem por trás da oposição ao sionismo – odiando ou negando o direito de existência do Estado de Israel – acho formidável o decreto constitucional do presidente Macron, que faz considerar o antissionismo na França, como crime racista.

Céline foi antissemita, e grande escritor. Ernaux, antissionista e inimiga de Israel, agora não é apenas “criminosa racista”, segundo a Constituição francesa. Tornou-se igualmente woke, neofeminista, racialista, comunitarista, identitarista, “indigenista” (termo inventado por Boteldja), extremista de esquerda, decolonialista, neoecologista, pró-palestina e militante do partido islamo-esquerdista La France Insoumise, há 10 anos.

Deixo aos especialistas julgarem se este militantismo interfere no estilo de sua escrita literária. Penso que, como foi apontado acima, talvez sim. E mal. Ideologia nunca é bom, sobretudo para escritores. Como dizia Jean-François Revel, “ideologia é aquilo que pensa no seu lugar.”

Me incomoda, mas entendo que o presidente francês tenha saudado o seu prêmio. Ao contrário do atroz brasileiro (que vetou o título de ‘heroína da Pátria’ à Nise da Silveira e não deu a mínima quando João Gilberto morreu), Emmanuel Macron jamais deixou de valorizar artistas e escritores compatriotas, não importando o seu espectro político. Mas é pena que não foi Salman Rushdie, o ganhador do Nobel.

Várias livrarias em Paris, e em toda a França, e não apenas de judeus, recusam-se a vender os livros de Annie Ernaux (foto). Eu acho isto errado, assim como penso que é errado interditar Céline ou deixar de tocar Wagner. Seria a mesma coisa que a própria Annie Ernaux faz com escritores que ela proscreve. No entanto, compreendo perfeitamente o protesto. O que não compreendo é uma universitária respeitada – que demonstra prezar a democracia e desejar, como nós, o fim deste governo -, desrespeitar e insultar pessoas que não são da sua opinião.

Até a próxima, que agora é hoje e, sim, professora. Também “leia e se informe, antes de falar”!


Em tempo:

Um desses pequenos brasileiros, que ainda escreve em jornal, fez a apologia da escritora. Ele  acha formidável, como Ernaux, os franceses, sobretudo os violentos “coletes amarelos” manipulados pela extrema-direita e extrema-esquerda, chorarem de barriga cheia. Eles que são grandes privilegiados no maior Estado de bem-estar social dentro da Europa, e talvez do mundo.

A França é um modelo único de democracia no planeta, quase comunista e generoso, que consagra 56% do seu PIB aos investimentos públicos, entre os quais escola gratuita, saúde gratuita, cultura gratuita, etc.

O sujeitinho que, evidentemente, não faz ideia do que é a França (embora tenha morado lá), teve a petulância de vituperar um grande presidente gaullista, pessoa de envergadura que ele certamente nunca terá em seu país e terminou a sua defesa apaixonada da passionária de carteirinha, afirmando que “não é preciso concordar com a política de Annie Ernaux para se engrandecer com seus livros”.

Para que o leitor tenha uma ideia de como os livros desta “pitbull woke” (como é chamada por alguns) podem “engrandecer”, traduzo um trecho de Os Anos (imagem acima), que o pequeno brasileiro, assim como a sua fã universitária, consideram uma “obra-prima”:

“As torres gêmeas de Manhattan desmoronando, uma depois da outra. Não conseguíamos sair da sideração, jubilávamos com isto por meio de celulares com o máximo de pessoas. De uma só vez, o mundo virava de ponta-cabeça, alguns indivíduos armados apenas de estiletes tinham arrasado em menos de duas horas os símbolos da potência americana. O milagre desta façanha nos maravilhava.” (2008)

Sabemos que os atentados de 11 de setembro de 2001 foram os mais sanguinários da nossa história. Sofremos com as imagens e até hoje lembramos, com horror, daqueles momentos nos quais morreram e foram feridos milhares de inocentes. E, no entanto, é bem possível que alguns  – depois de tantos anos de imoralidade na vida política brasileira – não consigam mais discernir o que é antiético e imoral do que é “política”, mesmo no terreno da liberdade criativa absoluta. Não, nem a literatura está acima de tudo e de todos.

56 anos de ‘Chabadabada”. Sem Trintignant.

Naquele ano 1966 em São Paulo, eu mal acabava de festejar a maioridade. Sobre um balcão em Havana, “el comandante” Castro chamava os povos do Terceiro Mundo à revolução. Cuba dançava enquanto Florença mergulhava – o rio Arno tinha transbordado as ribas. Palmeiras verdes e palmas douradas em Cannes, estavam todas agitadas. Foram muitos aplausos para Um Homem, uma Mulher, Jean-Louis Trintignant, Anouk Aimée, a música de Francis Lai (que, para nós, nunca terá outro nome senão “Chabadabada”), e até mesmo a um Ford Mustang sobre a praia de Deauville. E palmas sobretudo para um cineasta de 27 anos, desajeitado e sorridente. No palco do festival, Claude Lelouch cruzou seu ídolo, o gigante Orson Welles. Este acabara de atuar no filme de René Clément, Paris brûle-t-il, no papel de Raoul Nordling, o cônsul da Suécia. Sob a proteção da imagem benévola do modelo americano, Lelouch tornou-se l’enfant gâté (a criança mimada) da sétima arte. E Um Homem, uma Mulher, uma das mais belas declarações de amor do cinema francês.

Um Homem, uma Mulher
Jean-Louis Trintignant e Anouk Aimée, em Um Homem, uma Mulher, filme de Claude Lelouch (1966)

Ontem, dia 17, Jean-Louis Trintignant (1930-2022) nos deixou. “Ser uma página em branco, partir do nada, do silêncio. Daí, não é preciso fazer muito barulho para ser ouvido”: palavras de um homem sempre tímido e modesto. É muito triste ter que dizer adeus a um artista de quem tanto gostamos.

Em homenagem a ele e ao também falecido ator, cantor e compositor Pierre Barouh (1934-2016), autor da famosa canção do “Chabadabada” junto com Francis Lai (1932-2018) para Claude Lelouch, reproduzo abaixo o diálogo* entre um homem e uma mulher sobre o “conjugalismo” e outros assuntos, tudo que o filme me inspirou.


UM HOMEM: Aquele filme de Lelouch marcou a minha vida. Quis, a partir de então, que as minhas relações fossem assim, livres e maduras.

UMA MULHER: “Maduras” pode ser. Mas “livres” já acho meio difícil. Não há relação totalmente livre. Quando existe amor, existe dependência e também o desejo, normal, de exclusividade. “Amor livre” é artificial, nunca deu certo e só criou ressentimento. Basta ler Simone de Beauvoir quando ela fala de Sartre e também saber que o pacto que fizeram nos jardins das Tulherias, de sempre se dizer a verdade, não deu certo. Ele contou que mentia tanto pra ela, que teve que inventar para si uma “moral provisória”…

UM HOMEM: Não lembro de Beauvoir falando mal de Sartre.

UMA MULHER: Então você não leu A Cerimônia do Adeus. Não que ela fale mal de Sartre. Ela não fala mal… apenas destrói a imagem do coitado com pormenores crus da sua vida íntima, como se estivesse se vingando. Mulheres que, intimamente, odeiam os homens ou têm contas a ajustar, seriam mais coerentes e justas se não se aproximassem deles para nada.

UM HOMEM: Ela também tinha a vida e as grandes paixões dela. Está enterrada ao lado de Sartre em Montparnasse, com o anel que seu amante, o escritor Nelson Algren lhe ofereceu depois da primeira noite de amor.

UMA MULHER: E Algren era americano, talentoso, boa pinta, judeu e comunista. Não era vesgo, nem baixinho.

UM HOMEM: Tá vendo? Sartre aceitava relações livres e maduras! Vesgo e baixinho, porém jamais ressentido.

UMA MULHER: Sartre ressentido, não! Muitas outras coisas, sim. Durante toda a vida dele, o filósofo trocou com Beauvoir uma longa e terna correspondência na qual eles se contavam mil e uma minúcias do cotidiano. Era mon cher amour pra cá, “minha pequena esposa morganática” pra lá. Simone de Beauvoir com o turbante, aquela voz e jeito duro que tinha, foi o seu “castor encantador”. Imagine! Mas quando se lê todas as biografias e relatos das pessoas envolvidas, parece que nós, comuns mortais, somos anjos inocentes perto da existencialista feminista e seu filósofo. Ah, os mitos! Impossível tocá-los, não é mesmo?

Casamento não depende de igualdade

UM HOMEM: Você é contra as feministas?

UMA MULHER: Eu sou contra a ditadura da igualdade.  O cínico Maurice Sachs dizia que “a igualdade é um preconceito de proletário” (risos). Hoje ele seria linchado (risos), se bem que acabou mal de todo jeito… Às vezes me pergunto se não tenho o mesmo espírito de contradição que ele adorava em Misia Sert, a egéria russa de tantos pintores, poetas e músicos no começo do século XX: quando estou com pessoas de esquerda fico de direita e quando estou com pessoas de direita fico de esquerda. (risos)

UM HOMEM: É… já percebi. Mas igualdade na vida comum é muito bom, não acha?

UMA MULHER: Quando o tema “igualdade” vem à tona em conversa de casal, é sinal de que as coisas vão mal. Casamento não depende de igualdade. Sou contra esse falso e demagógico discurso feminista, sim. Pois o que perturba um casal é falta de confiança, falta de entendimento. Para justificar problemas conjugais, até o sexo é supervalorizado. Como se a falta de desejo, tanto quanto a desigualdade, destruísse o amor. Mentira! É muito simpático o desejo, mas não dura até a tumba, sim? Um casal pode se amar sem desejo. Às vezes até mais!

UM HOMEM:  Então você não é feminista.

UMA MULHER:  Claro que sou feminista! Penso que tudo deve estar aberto às mulheres: carreiras, posições, tudo! E também a liberdade de escolher a vida e as paixões que quiserem. Ainda não é o caso, infelizmente. Há muita luta pela frente. Mas sou pela igualdade de oportunidades, não pela igualdade de resultados.

UM HOMEM: Entendo. Mas, nuance! Quando afirmei que gostaria que as minhas relações fossem livres queria dizer fora do matrimonio formal, sem laços e obrigações, exceto as emocionais. Se o amor não for livre, não é amor. Aquele filme do “chabadabada” inspirou a minha reflexão sobre o que é o amor, e mais especialmente, o que é o grande amor estilo Tristão e Isolda, Lancelote e a rainha Genebra, Dama das Camélias, Werther. Podemos nos contentar com relações medíocres ou buscar algo grande, obrigando-nos a ser melhores do que somos normalmente.

UMA MULHER: Essa é uma visão masculina, acho. Como para Sartre. O grande amor, ou “amor necessário” (como ele dizia) com a Simone; os amores “contingentes” (também como ele dizia) com o resto, as moçoilas. Para as mulheres, uma ligação amorosa não é forçosamente “grande”, “necessária” ou “contingente”. Nós amamos sem hierarquia.

Vale a pena vestir-se de branco para nada?

UM HOMEM: Na verdade, casamento de gente jovem sempre me entristece. Uma festa de divulgação de um sentimento é potencialmente perigoso. A metade dos casamentos em toda parte duram pouco. Vale a pena vestir-se de branco para nada?

UMA MULHER: Vale a pena vestir-se da cor que for, quando se ama alguém, se pensa que é a pessoa certa e se quer ficar com ela, mesmo sabendo que podemos nos enganar e que o amor pode não ser eterno. Além de que, às vezes, não nos enganamos e o amor é eterno mesmo. Saiba que sou a favor, super a favor do casamento formal. Mais do que isso, penso que as relações sem “laços e obrigações” não são relações. Persiste uma nuvem cinza sobre um casal que não possui uma situação definida por dentro e por fora: emocionalmente, claro, e também legalmente. Só existe uma palavra para definir pessoas que não querem – ou não têm coragem de – se casar pra valer: RESISTÊNCIA!

UM HOMEM: Então vou ser mais preciso: não sou contra o casamento. Sou contra o divórcio. Quando eu era jovem quase todos os pais dos meus amigos estavam separados, assim como hoje uma grande parte dos meus amigos. Eu creio no amor verdadeiro e eterno. A questão está em como chegar a ele.

UMA MULHER: Como chegar eu não sei. A gente acaba chegando, de uma maneira ou de outra. E se não chegar, também está bom. Valeu a aceitação de que o amor e a vida a dois podem (e devem) existir em vez das racionalizações que levam as pessoas, por medo da frustração, a inventar mil desculpas para dizer que é “melhor viver sozinho”. Talvez até seja muito bom – e é mesmo – mas não me digam que é “melhor”!

UM HOMEM: Eu gosto e também não gosto de viver sozinho. De todo modo, não consigo manter uma vida a dois por muito tempo. Sartre e o Castor, quando a vida deles começava a ficar um pouco monótona, faziam um ménage à trois ou cada um ia para o seu lado e depois voltavam…

UMA MULHER: Salvo exceções, claro, em questão de ligações amorosas heterossexuais, vocês homens se mostram um pouco incapazes (risos). Para “ligação amorosa”, acho que é preciso uma capacidade essencialmente feminina. As mulheres têm uma perspectiva sobre o casal e a duração da relação, que é diferente. Geralmente, elas são ativas e “fazem” o casal. Os homens são passivos, na maior parte das vezes têm imagens de “prisão”, recusam a ideia do “par amoroso” ou se resignam a ela. Em geral veem isso como uma carga. E quando elogiam o casamento (o que é raro), desconfio um pouco me perguntando quais são os seus motivos. Para as mulheres, viver a dois não exclui a liberdade. Para os homens, sim. Para elas, é um investimento do espírito, uma ação de emancipação. Para eles, não. Dá trabalho viver a dois, é preciso refletir, ponderar. Talvez as mulheres sejam menos preguiçosas nesse aspecto (risos).

Intimidações contemporâneas

UM HOMEM: Viver junto já está muito bom. Então, pra que casar?

UMA MULHER: Se o casamento enquanto ritual, contrato, instituição jurídica, cultural e social não fosse importante, ele simplesmente teria deixado de existir. E ele existe desde o Egito antigo, a Antiguidade greco-romana, no Antigo e Novo testamentos. Você diz que “metade dos casamentos em toda parte duram pouco”. Se ficássemos, como você, fazendo caraminholas ou se fossemos pensar em “estatística de separações” antes de casar, isso seria uma besteira muito grande!

Um Homem faz menção de responder, dá um suspiro e fica em silêncio.

UMA MULHER: Casar com a pessoa certa é muito bom, dá segurança e energia para trabalhar e produzir, dá uma alegria e um sentimento de realização muito grandes, além de ser prático e de estar em acordo com as leis. Recomendo o casamento, em qualquer idade e em qualquer configuração de gêneros, vivamente!

UM HOMEM: Ter as ideias claras é uma felicidade. Você tem uma visão otimista do casal.

UMA MULHER: Sim, a vida afetiva é sempre palpitante. Na verdade, procuro um caminho entre o pessimismo masculino e a vingança feminista. Estas pensam que “o amor é o ópio das mulheres”. Do meu lado, penso que o feminismo exacerbado (e sem reflexão) é o ópio das recalcadas.

UM HOMEM: Você não está sendo reacionária ao fazer a apologia do casamento?

UMA MULHER: Bem que estava esperando por essa pergunta! Faz parte das “intimidações contemporâneas” com as quais não devemos nos sentir intimidados de jeito nenhum! Você não gosta de arte ecológica, política, indigente, social, é reacionário. Mora em metrópole, onde tem acesso e sabe o que importa… é reacionário. Fica deprimido com a última Bienal de São Paulo, é reacionário. Tem mais de sessenta anos, é reacionário…

UM HOMEM: Elogio de casal é coisa de burguês.

UMA MULHER: É espantoso como, nos últimos tempos, tudo se torna um estigma de “direita”. Até o afetivo e o que toca valores familiares. Ocorre que conhecemos todos os tipos de amor na história: amor romano, amor medieval, amor do renascimento, amor burguês do século XIX, amor como o de Sartre e Simone de Beauvoir que foram os Abelardo e Heloísa laicos dos tempos modernos, e agora temos uma volta ao “conjugalismo” que não é burguês e também não é reacionário.

UM HOMEM: É verdade que essa ligação entre Sartre e Simone de Beauvoir foi um pouco acrobática, mas com aquele pacto que eles fizeram nos jardins em frente ao Louvre em 1929, a moral burguesa foi sacudida de vez. Hoje, com todas as composições possíveis, famílias recompostas, etc., estamos muito mais próximos deles do que da moral burguesa de “monogamia eterna” dos anos 1950. O que é esse conjugalismo do qual você fala?

UMA MULHER: Conjugalismo, para mim, é ser a favor do casamento para todos, mulheres com homens, homens com homens e mulheres com mulheres. É acreditar nos valores familiares, em todos os tipos de composição, com ou sem parentalidade. É saber que família é família, nem sempre biológica, que os laços são afetivos, legais e a responsabilidade é a mesma em qualquer configuração. “Viver junto” – o “grande e revolucionário” ideal – começa a dois. Defender a diversidade, a mistura de raças e a tolerância, sem ser capaz de viver com um ou uma parceira, e chegar a um entendimento em sua própria casa, em condições de liberdade total, é um disparate, não acha? Como defender uma moral universal, abstrata e sem relação com a experiência do dia a dia? O moral tanto quanto o ético estão no que vivemos cotidianamente. Jamais em regras ditadas por ideologias.

* Este diálogo – hoje homenagem sobretudo a Jean-Louis Trintignant – está no meu livro Direi Tudo, que você pode encontrar aqui ou aqui  ou ainda em algumas livrarias, como esta.

Até a próxima, que agora é hoje!