‘Omertà’ ?

Em poucos meses, recebi quase quatro dezenas de mensagens emocionantes a respeito, ou a partir, do meu primeiro romance. A metade delas é confidencial, não posso publicar. As outras se encontram no site da Editora e no especial que criei para o livro. Dos remetentes, a maior parte não conheço ou conheço de nome como a leitora que me escreveu ontem, dia 14: ‘(…) várias lágrimas derramadas pela tua forte história. Bela escrita (…)’. Alguns testemunhos, confidenciais ou não, como este (que logo publicarei no site especial do livro), me deixaram profundamente tocada. Eu é que fiquei com lágrimas nos olhos. Senti-me entendida. Também entendi. Não é difícil ler o outro, quando “nos lemos” nele. Ou, quando nos identificamos, por pura empatia, com quem nos escreve.

E, no entanto, justamente as pessoas mais próximas – familiares, colegas de profissão, críticos, jornalistas ou pessoas que trabalharam comigo – estas, fecharam-se numa espécie de “Omertà”. Nada entrou, nada saiu. Surdez e mutismo totais.

“Omertà”, para quem não sabe, é um termo que nasceu do código de honra dos mafiosos napolitanos e do seu sentido de “família”. É aquele famoso “voto de silêncio” para que não se coopere com autoridades policiais ou judiciárias, tanto em relações pessoais diretas, quanto em situações que envolvem terceiros. Usa-se a “Omertà”, por exemplo, quando um assunto é tabu.

Soube de apenas uma exceção à regra. Imbecil e maldosa (como dizia a minha avó, “as duas coisas andam juntas”) uma conhecida, aos gritos, telefonou a um familiar: “Como é que a Sheila pôde fazer uma coisa dessas?” Talvez ela não saiba o que é literatura e ficção. Mas, como escrevi no início do romance, “no palco do mundo, quem somos nós para querer saber onde termina o imaginário e começa a realidade, e vice-versa?”

Mistério?

Dizia Françoise Giroud, que eu admirava, “não adianta ter talento até a quinta linha, se o leitor não passa da terceira”. Como Matei minha Mãe, sofre de um fenômeno interessante que, para mim, não se trata exatamente de um mistério. Não é como certos romances que dividem os leitores entre os que “amam” ou “detestam”. É um livro que separa as pessoas entre as que “amam” e as que “silenciam”.  Os primeiros, certamente foram além da quinta linha, os outros não sabemos dizer, nem ao menos, se leram.

Distantes falam e próximos se calam. Ao contrário do que se possa pensar, isto me agrada especialmente. O fato é que – como com meu trabalho em jornal, críticas de arte e crônicas – não escrevo para pessoas próximas que não sejam “neutras”, que carreguem “carga pessoal” ou simplesmente se acovardam diante de um tabu ou assunto “forte”.

Também não componho trabalho literário para quem não possua hábito de leitura, curiosidade, interesse. Jamais escrevi para mim mesma. A minha responsabilidade é com leitores “genuínos”, assim como certos autores, Lispector, por exemplo, que talvez por ter sido jornalista, portava uma “obrigação” com quem a lia. E nunca escreveu, egoisticamente, para si.

Ademais, quem é chegado a um autor e adere à “Omertà”, muito provavelmente também não figura entre aqueles que “quando leem”, como escreveu Proust, “são leitores de si mesmos”. Porque, na verdade, não querem ser “leitores de si mesmos”. Talvez, até mesmo, com qualquer livro. Que autor pode reprovar tal público ou escrever para ele?

Até a próxima, que agora é hoje e, como afirmou alguém, “o leitor ideal é aquele que lê literatura como se ela fosse anônima”!

Neste vídeo, algumas opiniões sobre meu romance, escolhidas por sua Editora👇

A resenhista que elogiou meu romance

M.L.G. praticamente ninguém sabe quem é. Apesar dos títulos universitários e currículo profissional literário que ela exibe em rede social, esta senhora lê mal, não revela sensibilidade, não capta subentendidos, pensa de maneira caótica e, é claro, escreve mal. Em suas resenhas, há parágrafos inteiramente incompreensíveis. De resto, repete praticamente os mesmos cacoetes depreciativos, sobre todos os livros que louva ou demole.

Gramática e diplomas não bastam. Vê-se rapidamente que a resenhista “não descobriu a pólvora” – eufemismo que os franceses usam para definir alguém com um ou dois neurônios. E, no entanto, certas editoras e certos prêmios literários usaram os seus serviços, assim como um “jornal de literatura” que publica as garatujas desta “expert”, lhe pediu uma crítica sobre o meu último livro. A resenha é superelogiosa, mas que falta de sorte a minha!

Foto©Marie-Anne Worms, 2022. Gentilmente enviada, quando ela soube que eu ainda não tinha visto pessoalmente o lindo objeto que atravessava o Oceano Atlântico.

Ao periódico que concedeu uma página inteira para o meu romance e acabou por desperdiçar um espaço valioso de reflexão, agradeço, de todo modo. Se eu fosse leitor, apenas por ver um tal destaque, já apertaria o botão da Amazon para comprar o livro rapidinho.

Reproduzo o primeiro parágrafo aqui, na cor que ele merece, para que você, embora saiba que é verdade, não possa acreditar no que os seus olhos lêem. M.L.G. começa assim:

“Como matei minha mãe. Você leria um livro com este título, em uma capa muito vermelha em tamanho 16 x 23, apesar de a autora ser bem conhecida e séria? Fui incumbida desta resenha e, ao receber a obra, me senti obrigada a cobrir a palavra ‘mãe’ do título com uma fita adesiva, pois minha mãe de quase 95 anos, às vezes, passa por aqui e poderia ver o livro; e, quem sabe…, achar que era leitura de autoajuda. Esta historinha caseira mostra ousadia na escolha do título (comentado dentro do romance), já que o matricídio consta de todos os pecados capitais; é preciso coragem – essa a intenção -, mesmo que apenas numa capa.”

Você, leitor querido, deve estar pensando como é possível começar uma resenha literária desta maneira, não é mesmo? Pois, garanto que o resto não é melhor. Também ficou com pena desta mãe de 95 anos, cuja inteligência é subestimada por uma filha que “cola adesivo” sobre um objeto, aliás, graficamente lindíssimo? Chorou de rir, como eu, quando leu que “o matricídio consta de ‘todos’ pecados capitais”, sendo que estes são apenas 7 (soberba, avareza, inveja, ira, luxúria, gula, preguiça) e que, entre eles, não consta nenhum matricídio? Só este parágrafo, já diz tudo sobre quem o escreveu.

‘Por favor, poupe-me.”

Sem citar o título ambíguo e fora de contexto (frase que está no meu livro, porém não é comentada, nem explicada no texto dela), resolvi traduzir a resenha, oralmente, a um crítico literário francês. Ele – que está habituado a ler Europe (onde escreve), L’Atelier du Roman ou En attendant Nadeau, entre outras publicações de altíssimo nível -, quando comecei o terceiro parágrafo, me interrompeu: “Por favor, poupe-me. Será que os últimos quatro anos de mediocridade, contaminaram igualmente a cultura e a sociedade brasileiras?”

Só li o artigo inteiro no dia seguinte. Percorri três vezes o 17° parágrafo (sim, a resenha é muito longa, uma verdadeira tortura chinesa) e, mesmo assim, não entendi. O resto, dá preguiça de contar. É uma verdadeira sopa de besteirol. Confusão e falta de cérebro totais. Verdade que são necessários mais neurônios e um pequeno esforço, mas a “articulista” não só não entendeu o enredo e os matizes, como deve ter lido na diagonal porque, inclusive, escreve inverdades sobre os personagens, troca o nome de um deles, dando uma ideia errônea, para não dizer, incompreensível, do romance.

Como os imbecis que lêem Proust e pensam que o “narrador” é o autor e os personagens correspondem de fato a “fulano” e “sicrano”, ela chega a chamar o meu livro ficcional de “autoficção”. De onde, e com que direito, tirou esta afirmação?  Não é porque meu romance é uma “ficção inspirada em fatos reais”, que deve necessariamente ser uma “autoficção”. E se a história me foi inspirada pela vida de outra pessoa? Como está escrito na Advertência, “no palco do mundo, quem somos nós para querer saber onde termina o imaginário e começa a realidade, e vice-versa?”

O pior de tudo, é que se trata de uma crítica elogiosa. Superelogiosa. Com as poucas ressalvas que ela se forçou a achar (e que nenhum de nós, revisores inclusive, encontrou) ou com a exigência de “exercícios estilísticos peculiares ou ideológicos” (coisas que nunca foram obrigatórias a nenhum autor – basta ler Houellebecq), M.L.G. qualifica a obra de “instigante” e termina assim: “a coragem da autora de quebrar os tabus e o mutismo faz do livro um interessante modo de pensarmos as feridas silenciosas que se revelam em nós (…) A obra incomoda. E muito. A autora consegue nos mobilizar.”

Perguntei-me a razão pela qual esta senhora, obrigou-se a encontrar “restrições inexistentes”. Dizia a minha avó: “inteligentes podem ser grandes maus, os pequenos só são maus porque sofrem de idiotice”. Se eu fosse paranoica, diria que foi acerto de contas comigo, com a editora Iluminuras (que tantos adoram e respeitam), ou fruto de camaradagem com pessoas que nos invejam. Mas, mesmo sem ser paranoica, eu diria a mesma coisa.

Críticas como esta, são ainda mais surpreendentes quando se descobre que a autora é “professora de literatura” e “saber ler corretamente” é a grande expectativa que os alunos têm da missão e vocação de seus professores. Suponho que elementos de natureza mais subjetiva, feitos de frustrações, ressentimentos ou mágoas interiores também devem interferir na falta de discernimento. Penso entender melhor, por que as novas gerações saídas das universidades brasileiras são tão medíocres.

‘Ele entende o que está fora dele?’

Estamos acostumados a dizer que qualquer tradução é uma traição. O mesmo deve ser dito da leitura. Nunca somos “bem lidos” porque o leitor ideal não existe, isso é fantasia do escritor. Certos leitores, como neste caso, lêem a partir de seus preconceitos, sem hesitar em distorcer o sentido de um romance para reescrever mentalmente os livros que gostam e não gostam. E evacuar, assim – por uma espécie de negação ou ponto cego mental que arrisca perturbar ou contestar suas opiniões -, preferências, princípios etc.

Na realidade, o leitor (em ocorrência, essa resenhista) lê virtualmente um outro texto, um texto fantasma, reconstituído de acordo com seus gostos e desejos. Já em 1932, Henri Michaux questionando as habilidades de Michel Leiris como crítico perguntava a André Rolland de Renéville: “Ele entende o que está fora dele? Se não houver chance de compreensão, prefiro o silêncio.”

Maxime Decout, universitário francês (este sim, digno da universidade), especialista em práticas de leitura e membro do prestigioso Instituto universitário da França, escreveu um notável ensaio audaciosamente intitulado Elogio do mau leitor. É neste livro, que está a observação de Michaux, citada acima. O seu ensaio é estimulante. Decout parte de uma constatação banal: “que leitor jamais se preocupou com a questão de ‘como ler bem’? A qualidade da nossa leitura pode ser avaliada?”

Grande leitor de Perec, Gary e especialista em má-fé e impostura, Maxime Decout responde a estas perguntas à sua maneira, ou seja, contra códigos e expectativas. Partindo de uma certa provocação heurística, seu livro se apresenta como um manual para “aprender a ler mal”.

‘A não-leitura de um inepto”

Inspirando-se em obras que vão de Bouvard e Pécuchet, de Flaubert a Cinéma (1999) de Tanguy Viel, passando por Huysmans, Valéry, Nabokov, Perec, Calvino, Robbe-Grillet, Roth, Bolaño, Cortazar, Éric Chevillard, Pierre Senges… Maxime Decout, através de exercícios práticos sobre os processos de escrita, propõe que “nos livremos da lamentável compulsão que nos prende a uma leitura servil, aquela que congela a leitura.” Pergunto-me se a tal resenhista que por comparação ao meu livro cita Eliane Brum, Heloisa Seixas, Cristovão Tezza, Julián Fuks e Chico Buarque, para dizer que “a escrita de autoficção tem produzido coisas interessantes”, conhece os autores que inspiraram Decout…

Pessoalmente, estou de acordo com ele. Para Marcel Duchamp, “os espectadores criam a obra de arte”. Para Maxime Decout, “os leitores criam a obra literária”. Mas, para a personagem Shelly Preisner, (única) autora de Como Matei minha Mãe, “a não-leitura de um inepto, pode matar o pai e a mãe de qualquer obra literária.”

Até a próxima, que agora é hoje, e gostaria de expressar a minha gratidão a todos que me enviaram mensagens tão tocantes e sensíveis (muitas das quais, confidenciais, não tenho a permissão de publicar)! Saibam que estão todas guardadas, indistintamente, em meu cofrinho de preciosidades ❤️