O ouro canibal e a queda do céu

Este vídeo que registrei, encontrava-se num desprezível e merecido canto do subsolo, na surpreendente exposição “A Luta Yanomami”, de Claudia Andujar, na Fundação Cartier, em Paris, há três anos. A balbuciação do atroz ignorante, exortando “integração”, tornava-se uma abominação ainda maior face à diversidade que presenciamos na mostra, à sensibilidade única e extraordinária deste povo que a artista conseguiu captar.

Imagem em destaque: © Claudia Andujar, A Luta Yanomami, Fundação Cartier, Paris, 2020.

Com que direito, o sujeito que nos governava, falava em “integração” e “diminuir reservas”? Com que autoridade o ignaro ousava discorrer sobre o desejo e o destino de seres humanos dos quais ele não conhece e jamais conhecerá a tradição secular?

Os projetos genocidas de extinção da reserva Yanomami e autorização do garimpo e agronegócio em áreas indígenas, têm 30 anos. Já eram baseados em teorias negacionistas e de conspiração inventadas por militares, e brandidas inclusive pelo falecido pornofilósofo de Virgínia. Mais recentemente, foram endossados por gente como Sergio Moro e outros canalhas da extrema-direita. Segundo a imprensa, 21 ofícios com pedidos de ajuda dos Yanomami foram ignorados durante os últimos quatro anos.

Sabemos, ademais, que índios despertam sonhos autoritários, nacionalistas, nativistas, chauvinistas, xenófobos, teocráticos, racistas e reacionários de assimilação forçada ou, pior, genocídio – a limpeza étnica de grupos, com base na sua suposta ameaça ou inferioridade.

No Estadão de ontem, dia 24: “Alisson Marugal, procurador da República em Roraima, afirma que as operações coordenadas do governo federal durante a gestão de Jair Bolsonaro foram feitas para não funcionar.” Desde 2017, ele vem denunciando o prenúncio do que se tornou a maior crise humanitária e de saúde entre a população Yanomami, na Amazônia.

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Quinze anos antes da belíssima mostra de Andujar, depois que vi duas exposições brasileiras em Paris, Adriana Varejão na Fundação Cartier e sobretudo Brésilindien no Grand Palais, os índios já não saíam mais da minha cabeça. Li tudo que pude e assisti a documentários. A mostra de Adriana sobre a carnificina da colonização portuguesa foi contundente e a do Grand Palais consagrada às identidades dos povos originários do Brasil com um vasto panorama das culturas indígenas desde a pré-história até os nossos dias, era deslumbrante. Como não amar os índios, mais ainda, talvez, do que certa parte dos homens soi-disant “civilizados”?

Como não amar os traços que eles deixaram e continuam deixando no planeta, como a arte plumária, cestaria, cerâmica, máscaras, joias, armas, vestimentas e instrumentos musicais? Não houve vez em que estive no Brasil nos anos 1990, sem que visitasse a FUNAI (Fundação nacional do Índio), hoje “desmontada”.

Fiquei tão impressionada com essas duas manifestações, quanto com o anúncio feito no dia 11 de junho de 1998. Uma descoberta que, na época, para mim, foi “o ponto da aniquilação do espaço-tempo”, um dos últimos enigmas antropológicos da Terra.

Tão longe e tão próximos!

“O cientista não é o homem que fornece as verdadeiras respostas; é quem faz as verdadeiras perguntas”
‘O Cru e o Cozido’, Claude Lévi-Strauss (1908-1995)

Aquele, foi um dia como os outros. E, no entanto, marcou uma descoberta à qual nós (brasileiros e homens de boa vontade que habitam o planeta Terra) não demos a menor importância.

Sobrevoando o estado do Acre, na fronteira com o Peru, uma equipe da FUNAI assinalou a existência de uma tribo desconhecida que não possuía contato com a civilização.

O responsável pelo Departamento dos Índios Isolados (hoje, quem se ocupa é Survival, o movimento global pelos direitos dos povos indígenas), indicou que, depois de quatro dias de vôo sobre a floresta, densa e inacessível por via terrestre, a equipe distinguiu uma dúzia de cabanas coletivas, com cerca de 15 metros de comprimento cada uma.

Dois postos de vigilância foram trazidos por helicópteros e instalados na floresta. Os observatórios foram atados com arame farpado. Não houve contato com aquela tribo, cuja população foi estimada em 200 indivíduos. Os sertanistas e nós, curiosos, ignorávamos a sua distribuição, língua, costumes e etnia. Talvez, ignoraremos para sempre. Assim espero. Porque sem nós, aqueles seres estarão salvos.

Imagine se, na França, tivéssemos a oportunidade de encontrar tribos vivas, como no paleolítico?

Entrevistei Jean-Claude Carrière (1931-2021), em 1995. Nunca esqueço o que ele contou sobre o nosso país:

“Fui ao Brasil, graças a Héctor Babenco (1946-2016). Conheci São Paulo, Rio, Bahia e o Amazonas (…) visitei tribos indígenas, foi uma das experiências mais maravilhosas da minha vida. O que me surpreende é que os brasileiros das grandes cidades não conhecem o Amazonas! Eles têm em seu país a coisa mais extraordinária do mundo e não se interessam. Vão a pequenas praias, ao sul. Imagine se, na França, a pessoas tivessem a oportunidade de, em poucas horas de avião, estar num país onde se encontra tribos vivas, como no paleolítico. É fascinante! Eu encontrei cinco grupos de índios diferentes, isso sem falar das paisagens, dos animais, das caminhadas. Uma vez não pudemos voltar com o pequeno avião, pois estava muito tarde, e passamos uma noite ao relento sem comida, em plena floresta, o céu próximo, as estrelas muito brilhantes… Acho que, junto com a Índia, eu guardo pelo Brasil o sentimento mais forte da minha vida. Só penso em voltar…”

“O mundo começou sem o homem e acabará sem ele”.
Tristes Trópicos, Claude Lévi-Strauss (1908-1995)

Estive na Amazônia três vezes, entrei na floresta, não conheci os índios, mas vivi experiências extraordinárias que não posso rotular como “turísticas”. Meu marido, que, além de suas competências profissionais, é brasilianista, reproduziu em seu livro Brasileza, as palavras de Lourival, líder tradicional da comunidade indígena de Watoriki, seu xamã mais antigo (na época, 67 anos) e o mais respeitado: “Os brancos nos contaminaram sem cessar, há muito tempo. É por isso que os nossos morreram uns após os outros, sem parar. Hoje, basta. Não queremos mais morrer de Xawara dos brancos. Já ficamos suficientemente horrorizados com seu poder. Agora queremos morrer de velhice, como antes”.

O ouro canibal e a queda do céu

“Xawara” quer dizer “o ouro canibal e a queda do céu”. Segundo Patrick, e estou de acordo, “será muito difícil reverter essa tendência milenar e tão funesta do homem em meter o nariz entre a Natureza e Deus”. O “acúmulo desses resultados”, escreve ele, “tão decepcionantes e quase sempre assassinos, parece ter feito nascer uma tomada de consciência, uma ideia quase revolucionária na cabeça de muitos governantes. A verdadeira riqueza do Amazonas, ouve-se dizer, reside na incomensurável variedade de sua floresta e na sabedoria dos índios. Esse patrimônio pode salvar o mundo, é preciso tocá-lo o menos possível. A biodiversidade é hoje erguida como um valor sagrado, bem superior a todas as soberanias.”

Até a próxima, que agora é hoje, seis séculos de Humanismo, 75 anos depois do Holocausto, e homens como o ex-presidente “tapuim” (“inimigo”, em língua tupi-kawahiva) continuam a causar o mal. É bem possível que Claude Lévi-Strauss estivesse certo: “O mundo começou sem o homem e acabará sem ele”!

Colagem a partir de fotos de © Maureen Bisilliat
© Elza Lima – SOS YANOMAMI. Doe pelo pix 👉 sos@acaodacidadania.org.br

Ouça o Podcast da Folha. Excelente análise de Estêvão Senra, geógrafo e analista do Instituto Socioambiental :

 


Discussão ‘purista’ sobre a capa da Folha

O governo atual não gostou e o pessoal das redes caiu matando a Folha pela foto que o jornal publicou na sua primeira página, ontem, dia 19, ao mostrar o presidente Lula por trás de um vidro estilhaçado. Nessa imagem (o jornal avisa que é feita com técnica de múltipla exposição), o presidente, que chega ao Palácio do Planalto, parece ferido no coração. Você pode ver a cena, no final deste artigo. 

Imagem em destaque: Luiz Inácio Lula da Silva. 2016, dois anos antes de sua prisão. Foto AFP / Evaristo Sá

Sem dúvida, “montagem” não é fotojornalismo. Mas a explicação da fotógrafa defendendo o seu parti pris, quando viu a reação dos “haters”, a meu ver, é tão vã, quanto ingênua. Ao contrário do que ela diz, se a foto é composta na hora com o aparelho fotográfico ou depois com PhotoShop, dá exatamente na mesma.

Trata-se, evidentemente, de manipulação de imagem – coisa que, aliás, não deveria ter indignado ninguém. Afinal, é o mesmo que ocorre, por exemplo, quando se ilustra uma matéria de jornal com expressões “significativas” de rosto, cenas de guerra exageradas ou minimizadas, registros incompletos de fatos etc. Basta lembrar os retratos do ex-presidente, com semblantes atrozes ou imbecis, escolhidos (e bem escolhidos) “a dedo” por todos os jornais nacionais e internacionais, durante anos. Não é “manipulação”?

Jair Bolsonaro. Foto AFP / Evaristo Sá

Nenhuma imagem jornalística é neutra

Fotojornalismo ou não, imagens sempre saem do olho de alguém, depois são selecionadas e, por último, interpretadas por quem as vê. Nenhuma imagem jornalística é neutra. Com ou sem artifícios, constantemente carregam e/ou sugerem alguma mensagem ao leitor.

Nessa direção, a foto escolhida pelo jornal Folha de S. Paulo – apesar de desairosa – não pode ser mais adequada ao artigo que ela ilustra. Claro que há conexão com o conteúdo dele. Além disso, atinge todos tipos de leitor. O de esquerda, vê o presidente como vítima; o de direita, como alvo. Chocados ou não, é “jornalismo para todos”.

Essa discussão “purista” sobre o suposto fake da “múltipla exposição” não faz, portanto, o menor sentido. Até a próxima, que agora é hoje, e a questão está apenas na péssima foto, que reproduzo abaixo. Escura, apelativa e sensacionalista. Ruim demais. Tão sombria que até Lula, agora rosa claro, mudou de cor!

Foto feita com técnica de múltipla exposição mostra o presidente Lula e vidro avariado após ataques do dia 8 – Gabriela Biló – 18.jan.2023 / Folhapress
Jair Bolsonaro. Foto AFP / Evaristo Sá