Encontro e desencontro com Henri Cartier-Bresson¹

Ontem recebi a visita de duas amigas queridas, ambas fotógrafas “amadoras” no sentido estrito da palavra. Amam aquilo que guardam em seus celulares, não só por prazer, mas também por curiosidade e desejo de preservar em imagens o que vivem. Falando em clicar seguidamente o obturador do aparelho, como fazem algumas pessoas, o bate-papo caiu em Henri Cartier-Bresson – adepto inveterado do clic-clic-clic. Foi, então, que contei a elas: em 1969 o vi fotografando nas ruas de Paris, desta maneira. Magro e ágil que era, parecia um pernilongo saltitante a metralhar uma imagem atrás da outra com a sua Leica sem fotômetro nem flash. Em 1996, quando finalmente conversamos, ele já se tornara uma daquelas célebres personagens que as pessoas imaginavam não existir mais. E, no entanto, aos 87 anos estava bem vivo, um pouco mal-humorado e completamente imerso em sua produção de desenhos.

Foto de Henri Cartier-Bresson em Paris (1961) por Dan Budnik (1933–2020). Impressa em 2008 por J. Jankovsky (Phoenix, Arizona).

“Compreender o mundo, para um homem, é reduzi-lo ao humano.”
Albert Camus, em O Mito de Sísifo

Fui apresentada por um amigo em comum, o pintor Avigdor Arikha (1929-2010). “Entrevista? Não, eu não dou entrevistas. Você pode fazer uma crítica do meu trabalho, se quiser, mas não me interessa o lado anedótico das entrevistas.”

Como expliquei que a nossa conversa seria reportagem de capa do Estadão e constaria na seção Encontros Notáveis do Caderno 2, o grande fotógrafo francês respondeu: “Já falei tudo que tinha para falar, porém, como não se trata da França e sim do Brasil, talvez eu esteja de acordo, vamos ver…”

Logo depois, me telefonou. Não consegui marcar nosso encontro para a semana seguinte. “Vivo o dia a dia, prefiro que nos vejamos hoje mesmo”, ele disse. Vício profissional do momentâneo ou ansiedade? Hoje entendo melhor que, com uma certa idade, preferimos não postergar compromissos.

A fotografia é um pequeno métier

Os livros e catálogos sobre a sua obra gráfica e pictórica, que Cartier-Bresson trouxe pontualmente consigo, talvez fossem a confirmação de que ele queria evitar qualquer discussão sobre fotografia. Com relação ao interesse do público pela “prática do instante”, já havia comentado por telefone: “É, eu sei, as pessoas gostam, mas a fotografia é um pequeno métier.”

Essa não seria a opinião de autores como Walter Benjamin, Susan Sontag ou Roland Barthes. “Susan Sontag? Nunca li”, confessou. “E não sei se ela é muito visual, mas é uma senhora gentil que fotografei”, disse. “Benjamin, Barthes, a mesma coisa, não me interesso por teorias sobre a fotografia.”

Contudo, quando se tratava de Henri Cartier-Bresson, era possível que a minimização do métier de fotógrafo – e a valorização da arte que ele teria gostado de dominar “como os grandes” – não fosse apenas uma questão de modéstia e sim de ambição. Me perguntei se isso era sinal de sabedoria ou juvenilidade…

O Henri não tem talento para o desenho

Altivo e certamente mimado pelo “grande mundo” das artes e da alta sociedade que não decepcionou, ele colocava o desenho (e a pintura) em oposição à fotografia. O que, segundo Avigdor Arikha, nosso amigo, nada mais era do que uma ideia fixa. “O Henri está convencido de que é desenhista e pintor” dizia Arikha, “ele tem um olho extraordinário para a fotografia, da mesma forma como certas pessoas possuem o raríssimo ouvido absoluto para a música, mas é simplesmente desajeitado, não tem mão, não tem talento para o desenho.”

Penso que essa era uma opinião um tanto exagerada. Talvez até mesmo animada por uma ponta de ciúme do artista, cujo ateliê ficava em Montparnasse e havia sido frequentado pelo “grupo do bairro”, do qual faziam parte Cartier-Bresson, mas também Pierre Rosenberg, diretor do Louvre casado com uma Rothschild, Samuel Beckett e Alberto Giacometti, entre outros. É verdade que a “mão e o talento” quase acadêmicos de Arikha dificilmente poderiam ser igualados, mas há no trabalho pictórico e, sobretudo, gráfico de Cartier-Bresson, antigo aluno de André Lothe, a qualidade comovente de um artista “desarmado”, como dizia Jean Clair², “cujo olhar nu, toda arma deposta, é ainda mais despido sem a proteção da sua máquina fotográfica”.

Suas paisagens e retratos, seus fragmentos eleitos e enquadrados pelo mesmo olhar extraordinário do Cartier-Bresson fotógrafo, são dissecados e acariciados pelo lápis e pincel que lhes revelam a sua forma subjetiva, o seu caráter mais profundo. Com a dificuldade e a procura que às vezes nos faz até mesmo lembrar Giacometti.

Alberto Giacometti rue d’Alésia, Paris, 1961 © Henri Cartier-Bresson/Magnum Photos/Courtesy Fondation Henri Cartier-Bresson
Autorretrato de Avidor Arikha (1929-2010), no estúdio de Montparnasse que frequentei desde que mudei para Paris , em 1991.

Foto é ação imediata; desenho, é contemplação

Para Cartier-Bresson, a fotografia era a impulsão espontânea de uma atenção visual perpétua, que segue o instante e a sua eternidade. “O desenho, por sua grafologia, elabora aquilo que a nossa consciência procurou deste instante”, dizia. “A foto é uma ação imediata; o desenho, uma contemplação.” Era difícil não perceber nessas palavras uma posição orientalista que dá valor à unidade absoluta entre o corpo e o espírito que nos situa no mundo cósmico, na vacuidade que não é o vazio, onde todos os fenômenos são interdependentes (o mundo da contemplação), em detrimento da “ação” ocidental.

No entanto, foi justamente essa sua obsessão e rapidez dos sentidos e do olhar, aliados a uma extrema sensibilidade para a imagem, e não exatamente a contemplação, que lhe trouxeram a celebridade.

Se a celebridade o incomodava, como ele me confessou, pois tirava a sua liberdade, era sem dúvida apenas no pequeno caderno de croqui que carregava no bolso interno do seu colete que ele encontrava o prazer da “atitude libertária” que o forçava a se “colocar em questão, assim como a sociedade”. Num pequeno texto no qual sustentava que em cada um de nós há uma parcela de Buda a cumprir, Cartier-Bresson contou que, após uma entrevista com o dalai-lama, sua mulher – a famosa Martine Franck, fotógrafa trinta anos mais jovem do que o marido – concluiu que ele era “um aprendiz budista em turbulência”.

© Tous droits réservés / Henri Cartier-Bresson

Nos encontramos num café da rue de Rivoli, a alguns metros da estátua equestre dourada e monumento à Joana d’Arc, que hoje ninguém mais consegue dissociar do partido da extrema direita francesa pois é lá, no dia da santa, que o Front National (FN, hoje RN – Rassemblement National) se reúne uma vez por ano. Ele já tinha escolhido uma mesa perto da janela e estava sentado, enfiado em seu colete cáqui cheio de bolsos, com a famosa bengala encostada numa cadeira. “Você está vendo este bastão? Ele se abre e vira um banquinho que eu posso usar durante mais de meia hora para observar e desenhar no Louvre…” explicou ao perceber o meu olhar sobre o estranho objeto.

O que Cartier-Bresson não podia explicar era o meu olhar sobre ele, os ralos cabelos brancos e o rosto que, mesmo marcado, não denotava jamais a sua idade avançada. A primeira vez que o tinha visto, fora há quase três décadas, época em que eu ainda estudava em Paris e ele a fotografava. Quando o reconhecera, acompanhei-o sem nenhuma vergonha pelas calçadas até que percebeu a minha presença e sumiu. Foi a primeira vez que assisti alguém fotografar daquela forma rápida e contínua, um clique atrás do outro, como já contei. Talvez por timidez não comentei nada disso em nosso encontro.

Ele devia sentir que eu o perscrutava com curiosidade. Só não sei se desconfiou que eu o estava achando distante, seco e cortante como os contornos de algumas de suas fotografias. De quando em quando, uma pequena arrogância se desenhava numa expressão, um pequeno desprezo em outra, uma indiferença em outra mais, um dissimulado esnobismo aparecia numa frase e finalmente um gesto blasé afivelava uma asserção. A figura nem sempre combinava com a imagem de “aprendiz budista” que ele queria passar… Ora, ele tinha o calor, a generosidade e o colorido de uma fotografia em branco e preto. O que eu estava esperando?

É apenas uma tese, não é importante

Em 1996 havia mais de trinta livros publicados sobre a obra do mestre, sendo que o último, de Jean-Pierre Montier, L’Art Sans L’Art d’Henry Cartier-Bresson, fora lançado no começo daquele ano pela editora Flammarion. Grande parte das sensações que eu desenvolvia vendo e ouvindo o fotógrafo, sentada à sua frente, foram confirmadas quando Cartier-Bresson, levando uma xícara de café aos lábios, disparou sobre o trabalho de Montier: “É apenas uma tese”, disse ele, “não é importante.”

O fotógrafo tinha colocado a pilha de livros e catálogos da sua obra gráfica e pictórica sobre a mesa. Eu teria preferido que ele não os tivesse trazido. Não pelo peso ou trabalho de levá-los e ter que devolvê-los mais tarde já em seu apartamento, na mesma rue de Rivoli. Mas porque o pouco do encanto que me restou do nosso encontro – quase que inteiramente envenenado por um mal-estar indizível da parte dele em relação à fotografia – foi dissipado de vez quando Martine Franck, uma semana depois, veio me abrir a porta.

Monsieur Bresson está?

Era uma bela mulher. Elegante, fria como o marido e tão apressada que podia fazer um ministro e um entregador de pizza sentirem o mesmo grau de intrusão. “Boa tarde, vim trazer os livros e catálogos de monsieur Cartier-Bresson… ele está?” “Não está, você pode deixar esse material que eu me encarrego de entregar.” Pela porta entreaberta, vi ao longe o corpo magro do fotógrafo vestido com o seu indefectível colete cáqui.

A luz do dia refletia-se na sua cabeça quase calva, enquanto ele apoiava-se na janela para olhar o Jardim das Tulherias. Fiz um gesto, indicando que ainda gostaria de falar com ele sobre mais algumas coisas. Tentei argumentar, mas ela arrancou os livros de minha mão e praticamente fechou a porta na minha cara sem esperar resposta: “Au revoir!”

Desci as escadas arrependida. Nunca deveria ter devolvido aqueles malditos livros e catálogos… Depois, pensei: até a próxima, que agora é hoje e não há mito que resista à própria humanidade!

Henri Cartier-Bresson desenha o autorretrato com um espelho, em frente à janela de seu apartamento, na rue de Rivoli, a alguns metros da estátua de Joana d’Arc, na Place des Pyramides. Foto © Martine Franck, Fundação Cartier-Bresson, 1992.
Estátua de Joana d’Arc, na Place des Pyramides, na rue de Rivoli, em Paris © Maxppp

¹ Este texto consta, em parte, do livro Direi Tudo, e um pouco mais , Editora Perspectiva, coleção Paralelos (dirigida por J. Guinsburg), 2017.

² Jean Clair: pseudônimo de Gérard Régnier, curador e historiador, hoje membro da Academia Francesa de Letras.

Que país é este?

Que país é este, onde poucos souberam ler o artigo de Lilia Moritz Schwarcz sobre o novo filme/álbum visual de Beyoncé, e concluir que ele não tem absolutamente nada de racista ou ofensivo contra os negros?

Que país é este, onde uma intelectual como ela – branca ou não – não tem o direito e a liberdade de criticar uma artista negra por imagens de fato estereotipadas que criam uma África retrógrada, tão caricata e ilusória quanto ficou o museu do Louvre como cenário da sua bacanal narcisista com Jay-Z, no clipe brega de 2018?

Imagem: Beyoncé no trailer de ‘Black Is King’ (Reprodução). Deturpação cultural e arrogante vingança político-racial.

Que hipócritas são estes, que atacam, em nome do que seria “supostamente sem falha” ou de algum outro “lugar” imaginário “da palavra”, como se o ser humano não fosse ser humano em qualquer lugar?

Que enganadores são estes, que estimulam deturpação cultural e arrogante vingança político-racial, quando provocação hollywoodiana ambígua, luxuosa e artificial de fato jamais será verdadeira arma contra o odiento racismo, mas – ao contrário – pode ser até mesmo contraproducente como tudo que ostenta orgulho, insolência e  prepotência?

Que intelectual é Lilia Moritz Schwarcz – provavelmente mais uma “adepta honrada” dos eufemismos imbecis – que de “tão” política e paradoxalmente correta e antirracista, de “tanto” querer agradar, ensina (?!) no seu canal YouTube a censurar palavras ou expressões legítimas da língua brasileira que, segundo ela, possuem raízes e significados racistas, mesmo se já foram depuradas pelo tempo e pela história?

Que professora é Lilia Moritz Schwarcz, a mal compreendida e atacada, que pede desculpas no Twitter pelo que não fez, talvez apenas para escapar da “cultura do cancelamento” (tão em voga no Brasil e nos Estados Unidos) e ficar “de bem” com a numerosa galera que a segue? Ooooi pessoaaaaal !

Que vergonha do meu país!

Que vergonha do meu país e desta sua gente, certos intelectuais inclusive. Vergonha da mediocridade e maldade nas redes sociais. Eu que poderia ser mais uma vítima injusta do “cancelamento” pelo que escrevi no Estadão sobre o engodo Greta Thunberg, não sou. E não por concessão, patéticamente pedindo desculpas pelo que não fiz, como a professora.

Ao contrário, me felicito em cada um dos 10.585 dias dos 348 meses dos 29 anos deste autoexílio, por ter conseguido deixar – talvez agora, definitivamente – o meu Brasil.

Até a próxima, que agora é hoje!