O de-formador de opinião

A reprodução de “Lorette à la tasse de café” de 1917, extraordinária pintura de Henri Matisse (1869 – 1954) no mural de Facebook, provocou comentários interessantes.

Um soi-disant profissional da arte “achou” que o mestre “errou a proporção do braço esquerdo” da obra hoje pertencente ao Art Institute de Chicago e irmã gêmea daquela de corpo inteiro, doada em 2001 ao Museu Nacional de Arte Moderna do Centro Pompidou, em Paris. Afirmou: “Acho que (o braço) ficou pequeno demais… A menos que a modelo tivesse malformação congênita… Observe. Nem Picasso é infalível, claro.”

Uma artista concordou com o achismo e respondeu com mais um achismo: “Também achei!”

Parecia um pouco aquela citação chinesa onde o “sábio aponta a lua e o imbecil olha o dedo”. No caso, os imbecis olhavam o braço…

Imagem: “Lorette à la tasse de café”, Henri Matisse, 1917. Pintura doada em 2001 ao Museu Nacional de Arte Moderna do Centro Pompidou, em Paris.

Respeito opiniões diferentes e até mesmo achismos. Entretanto, quando li o comentário do profissional da arte (reduzi aqui, a tolice era bem mais longa) tive que reler. Me perguntei se estava entendendo errado ou se era isso mesmo e é o Brasil de hoje que contamina até mesmo pessoas respeitadas a pensarem com pouca altura. Algumas dão a impressão de terem voltado ao 3° ano primário.

O autor do post – que faz uma pesquisa sobre retratos e, de vez em quando, publica algum ótimo achado como este -, respondeu muito gentil e justamente que Matisse apenas “obedece à lógica da pintura” e não do objeto retratado. “O campo plástico estabelecido pelas formas que (Matisse) optou ali colocar”, escreveu ele, “e não à lógica anatômica”.

Hábito frívolo nas redes

Como se não bastasse, e como é hábito frívolo nas redes, o mesmo profissional da arte veio com a famigerada réplica: “Amo Matisse!” E acrescentou, como se o seu turismo cultural pudesse interessar alguém: “Uma das maiores emoções da minha vida foi ver retrospectiva dele no MoMA em Nova York. Ponto altíssimo de toda minha viagem aos Estados Unidos. Mas aquele braço… ”

Depois disso, alguns dos que comentavam no post já ficaram à vontade para se sentir – com a mesma frivolidade – “incomodados” com a imagem de Lorette e seu café. Sendo que ela era modelo profissional privilegiado com quem o artista trabalhou intensivamente durante muitos anos e com quem realizou pelo menos 40 telas, em sequências ricas de questionamentos e hesitações. Sabe-se que Lorette foi a primeira encarnação do tema da odalisca, mas nesta pintura com a taça de café, como na maioria das telas para as quais posou (sem nenhuma “malformação”) Lorette é novamente uma referência a Manet e aos seus retratos sensuais.

Quer dizer, o achista deformador de opinião (que se considera “formador”, pois sempre se leva demasiadamente a sério, é bastante assertivo e raras vezes tem alguma dúvida), rapidamente prestou um baita desserviço à História e à Crítica de Arte.

Apreciação de arte não é “opinião”

Eu não precisaria desenhar para o meu leitor, mas vá lá. Existem dois tipos de olhar: o olhar simplório e realista que aponta o óbvio que todos veem, no caso a decalagem da escala do tal braço, procurando por uma tola “harmonia” para a qual Matisse nunca deu a menor bola (justo ele, o mais sofrido e o mais complexo de todos em sua aparente leveza).

E há o olhar crítico que apreende a relação entre todas as formas presentes e o “programa estético” do torturado mestre do “repentir”(arrependimento) e da hesitação, artista que pintava e repintava por cima dos seus temas, febrilmente, o tempo todo. Um olhar que compreende, em todos os níveis, intelectual e subjetivo também, como a escala e o resto não entram mais em questão e por isso não têm como “incomodar”. Simples.

Não basta “amaaaar Matisse”. Aliás, desconfie de quem diz “aaaamo Matisse”. A apreciação da arte não é “opinião”, é raciocínio. Um recurso da inteligência que depende da abertura, experiência e sensibilidade crítica de cada um.  Até a próxima, que agora é hoje!

P.S. – Eu não “amo” Matisse. Estudo Matisse.

Antonio Dias e seus ricos jogos ilusionistas

Alusão, ilusão, dissonância e misticismo. Ao sair do figurativismo e das imagens políticas do início, que vimos há três anos  em “The World Goes Pop”, na Tate Modern (Londres), a arte de Antonio Dias, que nos deixou ontem, quarta-feira, aos 74 anos, é o resultado dessa soma.

Imagem:  Antonio Dias (1944-2018), “Sem título”, 1985.

Trata-se de uma arte que continua a representar mais uma das investidas da linguagem pictórica contemporânea aos limites estéticos paradoxalmente também criados pelo abstracionismo, informalismo, construtivismo e expressionismo. A obra de quase seis décadas de Dias tornou-se, com o passar do tempo, um “ataque” à crescente e atemorizante bola de neve que levava críticos, artistas e audiência a entender a arte de forma cada vez mais fechada, com expectativas absolutamente definidas em relação às “premissas” e sobretudo ao resultado da criação.

Não que os seus desenhos ou pinturas recorressem ao “terrorismo” ou à “guerrilha” de métodos não-formalistas. Ao contrário. A concepção do artista também baseava-se em opções plásticas, jogos visuais de efeito premeditado e recursos de requinte e bom gosto bastante amenos e convencionais. Sem dúvida, os privilégios do material que pesquisava e utilizava, como o papel artesanal do Nepal, aliados às vezes aos tons pastéis e tintas metálicas, mais a habilidade manual e a sofisticação plástica do artista só podiam confirmar esse lado formalista.

Alusões ao arcaico

Contudo, a riqueza da movimentação interna daqueles jogos, as relações mentais que os originavam e sobretudo a dissonância entre o que são (formal e materialmente), representam (na temática e nas alusões), ou levam o espectador a formar, é o que desvia definitivamente os trabalhos da sua aparente superficialidade, tornando-os realmente interessantes.

No início dos anos 1980, por exemplo, Antonio Dias fazia alusões ao arcaico e seus desenhos não raro assemelham-se a diagramas e plantas arquitetônicas de templos astecas de iniciação. Seus signos e símbolos sopram também o mistério, o esoterismo e a musicalidade de uma linguagem pré-colombiana que incorpora um espiritualismo muito mais afeito ao misticismo oriental do que às influências ocidentais. Como se os trabalhos fossem ao mesmo tempo uma destilação das memórias do tempo que o artista passou no Oriente, dos sentimentos autobiográficos, do conhecimento real e de ilações metafísicas ancestrais.

Jogos ilusionistas

Se, por um lado, portanto, havia sempre a alusão a um tema e ao material virtual que era o pergaminho do “registro”, da “indicação”, por outro, havia a sensibilidade, o ritualismo técnico, o uso de cor e o conceitualismo alimentados e aprimorados pelas experiências ocidentais. Antonio Dias brincava com a virtualidade do espaço e da matéria, compondo jogos ilusionistas em que tanto um como outro adquiriam constantemente novas conotações.

A partir daí, até o final, sempre estabeleceu-se em suas obras uma ambiguidade que interrompe a linearidade de qualquer leitura. Os recortes, sobreposições, apagamentos, máscaras, etc., fogem muitas vezes às suas próprias características, tornando-se contingências da dualidade. Negativo/positivo, matéria/transparência, finito/infinito, textura/opacidade, não são mais do que qualidades circunstanciais, agindo como eficientes armadilhas para os olhos. Armadilhas que levam o espectador a formar as próprias alternativas visuais, consciente, entretanto, de que elas não tinham para o autor apenas o objetivo da pura vida das formas ou da pura vida dos sentimentos e do raciocínio, e sim de uma controlada dissonância…

Até a próxima, que agora é hoje e descanse em paz, Antonio Dias!

Antonio Dias com o trabalho “Nota Sobre a Morte Imprevista”, 1964. Obra presente na mostra “The World Goes Pop”, na Tate Modern, em 2015.

 

Antonio Dias, “Nota Sobre a Morte Imprevista”, 1964. Obra presente na mostra “The World Goes Pop”, na Tate Modern, em 2015.