‘Decolonial’: novo chique, novo woke ou novilíngua?

No Brasil, trata-se da imitação de mais uma doutrina radical que reduz a realidade humana; da invenção ideológica de mais um (nem tão) novo sectarismo, e de uma injustiça epistêmica. Com a arrogante ambição de “desconstruir” as humanidades artísticas, universitários militantes (e professores anuentes, talvez porque queiram agradar à jovem plateia que lhes prodiga ‘likes’, talvez por covardia, medo de represálias ou, talvez, porque adotaram, de fato, a ideologia) travam uma batalha intelectual como se certas obras e artistas de grupos sociais tivessem sido ‘injustiçados pela cultura ocidental’. Como se os povos originários e sua extraordinária cultura e luta, pessoas negras, mulheres, estivessem sendo, em pleno século 21, ‘silenciados’ pela história, a ‘alta cultura’, e agora devam ‘se empoderar’ (para usar a palavra da moda) e ‘concorrer’ com ela.

Também, como se existisse ‘norma universal’. Como se na arte – que é livre – haja ‘padrões’ que pudessem ter sido ‘condicionados’ pela colonialidade. Como se Picasso, para dar apenas um exemplo, não tivesse, ao contrário, reverenciado a arte africana e se inspirado nela. Como se o Ocidente não tivesse se debruçado sobre a arte da Oceania, do arquipélago Malaio, da América e das terras árticas, para aprender com elas.

Como se ‘primitivo’ e ‘naif’ fossem apenas uma ‘construção’ ou uma ‘solução encontrada pela hegemônica experiência europeia’, e já não existissem por si, independentes das conquistas de povos ‘cultos e civilizados’. Como se – na continuação desse raciocínio paranoico woke – tivesse havido uma lógica em ‘categorizar’ essa arte original, para que ela não ‘ameaçasse’ a arte moderna. A história prova o contrário. Todos sabemos, e Dubuffet demonstrou perfeitamente, que a ‘art brut’ junto a tantas outras, influenciou profundamente (jamais ameaçou) o modernismo. Menos ainda, a arte contemporânea. 

Mas, depois de ler os parcos sofismas moralistas que sustentam essa loucura nas universidades brasileiras, olhemos mais de perto o resultado do que se defende. Possui essa suposta ‘nova’ arte decolonial, estatura de ‘adversária’? Revoluciona alguma coisa? Mobiliza-se em projeto? Não é o que se constata nos inconvincentes e absconsos exemplos que costumam nos trazer.

Esse “neopós-modernismo” mutante, que se esforça tanto para se auto justificar, repete constantemente seus quatro temas-chave: indefinição de fronteiras, poder à linguagem, relativismo cultural e até mesmo evicção da noção do indivíduo e do universal. O gênero ficou mais importante do que o corpo, a raça mais relevante do que o homem, a vitimização decolonial tomou o lugar da política de convergência, a noção de “dominante e dominado” e seu emprego em discursos anticientíficos, beira o fanatismo. Qual a sua real contribuição e alcance?

Iván Argote, série “Turistas”.
“Eles mantêm a sua querela, porque não se mantêm senão por ela.”
René Girard (1923-2015), em ‘O Bode Expiatório’ (1982)

Arte “decolonial: novo chique, novo woke, ou novilíngua? O início dos anos 2010 viu o surgimento de um fenômeno que se autodenominou “woke”. Ser “woke” significava estar “acordado”. Tratava-se, em princípio, de permanecer vigilante diante das injustiças sofridas pelas minorias nos países ocidentais. Mas, como era de se prever, o movimento desbordou.

Em 2020, os diretores da National Gallery of Art de Washington, Tate Modern de Londres, do Museum of Fine Arts de Boston e Museum of Fine Arts de Houston cometeram o absurdo paranoico de “adiar para 2024” uma retrospectiva dedicada a Philip Guston, grande mestre da pintura americana do século 20, porque algumas de suas pinturas retratam figuras encapuzadas da Ku Klux Klan. Anunciaram que esperariam “até o momento em que” (eles acharem que) “a poderosa mensagem de justiça social e racial que está no centro da obra possa ser interpretada mais claramente”.

Em seu novo ensaio, A Religião Woke, publicado há alguns meses pela Editora Grasset (recomendo que seja traduzido, urgentemente, no Brasil) Jean-François Braunstein, emérito professor de filosofia contemporânea, história da ciência, filosofia da medicina e ética médica, na Sorbonne, vê no wokismo “muito mais do que uma simples onda de ‘loucura passageira’ ou esnobismo intelectual”. “Trata-se”, para ele, “de um autêntico fanatismo: seus seguidores, profundamente intolerantes, disfarçam suas opiniões de ‘ciência’ e pensam que podem doutrinar. Inclusive crianças.”

O filósofo recorre a textos, teses, conferências e ensaios que ele explica longamente, para denunciar esta nova religião destruidora da liberdade. O objetivo dela é “desconstruir” toda a herança cultural e científica de um Ocidente acusado de ser “sistematicamente” machista, racista e colonialista. Segundo Braunstein, “é a primeira vez na história que uma religião nasce nas universidades.” Escreve: “Tudo está a postos para a instauração de uma ditadura em nome do “bem” e da “justiça social”.

Revisionistas e cancelistas

A questão é sempre mais política do que científica, e me surpreende que, com relação ao wokismo da arte decolonial, historiadores brasileiros possam aquiescer a propósitos de recriar a história, redundar particularidades, questionar a completude universal da cultura humanista, eliminar as fronteiras entre arte e artesanato, vitimizar grupos, distorcer formas sociais em relação a posições marginais, induzir à percepção errônea do real.

Me admira que cientistas que pesquisam eventos passados de povos, países, períodos e indivíduos, possam compactuar com a pobreza de uma ótica quase que unicamente “colonialista”, sob o ressentimento e ódio do conhecimento e da cultura secular da humanidade (ocidental ou não).

Isso, em nome do “politicamente correto” identitarista, etnicista, racialista; também do ideologismo de gênero, classe, de geopolítica, entre outros. E que estes cientistas possam julgar textos e obras, às vezes de há séculos, com olhos de hoje; atuar como revisionistas, quase cancelistas, à maneira da aberração chamada Marilene Felinto.

Fred Wilson: “Os antigos egípcios foram negros, brancos ou marrons?” (2012)

Sara é uma francesinha mestiça, habituada à diversidade, que, aos 15 anos, estuda numa escola de periferia. Seus colegas são brancos, negros, asiáticos, magrebinos, judeus etc. “Nos entendíamos bem, havia solidariedade, respeito e benevolência entre todos”, conta ela. “O curso de ‘educação cívica’ chamado Existe racismo antibranco? mudou a nossa vida. A partir das aulas da professora (que depois foi despedida), muitos começaram a se ver como vítimas e a só falar nisso. O WhatsApp da classe virou um campo de batalha com dois campos se enfrentando: os brancos, acusados de racismo, escravidão, colonialismo, desigualdade.” E Sara explica, com maturidade: “O curso não ajudou a refletir. Apenas instalou um clima de ódio, inimizades e transformou em vítimas alguns de meus colegas que, antes, iam tão bem.”

O discurso woke oferece poder de denúncia e boa consciência aos novos e arrogantes prescritores ideológicos. Alguns artistas defendidos por eles, como Jota Mombaça (1991, Natal, RN) – mesmo mimicando intenções na sua entrevista absconsa para a 34a Bienal (vídeo mais abaixo) – não parecem se mobilizar em projeto. Uns e outros, fundam-se sobretudo em pensadores conhecidos, embromando teorias, mascarando o vazio de seu pensamento com discursos ininteligíveis, queimando as pistas, criando listas de suspeitos de um lado, e apologizados de outro.

A luta política sempre produziu uma retórica bem provada: as ideias do adversário são contraditórias, suas paixões interessadas, seus valores imorais. Mas o movimento woke segue uma lógica mais inquisitorial e pessoal: desmascarar culpados, desconstruir estereótipos e álibis dominantes, revelar suas pulsões. E tudo em nome do “sofrimento” que os inimigos infligem, e das “identidades que estes esmagam”. Queixas – de sexo, gênero, raça, natureza, colonialidade – tornam-se motores da História. A utopia do mundo de reconstruir é substituída pelo imperativo do mal menor: não ofender/estigmatizar um grupo, indignar-se, arrepender-se, lamentar-se sempre. Viva a nova Inquisição!

Mas, vejamos quem é que possui pulsões, álibis dominantes e estereótipos.

Quem é o ‘opressor’?

É bom lembrar que a maioria da população, em qualquer país, está tão obcecada pela questão do colonialismo quanto pelo destino dos LGBT & Co. Ou seja, não está preocupada nem um pouco. E não é preciso dizer quais são os seus assuntos primordiais.

Ademais, neste momento deletério de policiamento ideológico identitário, a maioria dos que conhecem o assunto, encontra-se bastante irritada com todas as censuras e proibições dos “bem pensantes”. O woke obriga a se vigiar, se autocensurar, deformar seu discurso ou calar. A saia ficou cada vez mais justa. Viver, com tantas amarras, tornou-se extremamente desconfortável.

Um famoso conservador que conheço – e que não quis dar o seu nome numa entrevista a um jornal, por medo de represálias e manifestações em frente do seu museu – declarou: “Essa nova ordem moral que privilegia o indivíduo em detrimento da obra é um enorme retrocesso porque, por princípio, é incompatível com a arte que permanece inteiramente comandada pela liberdade”. “Nossa época está ávida de vítimas”, disse ele. “Esse sistema unívoco é aquele, excessivo e sem apelo, de supostos juízes revolucionários. Nem dá mais para contestar um ponto de vista, ter outra opinião. Até o uso de palavras torna-se fonte de conflito.” E conclui, com justeza: “Critérios morais prevalecem sobre critérios artísticos.”

Depois dessa declaração, pensemos juntos. Quem “silencia” quem?  Quem é o opressor?

Estratégia de mercado

“Arte decolonial” é uma invenção nociva, sustentada por sofismas facilmente desmontáveis, tanto quanto o identitarismo, onde mais esta forma de censura busca a sua legitimidade. Penso que a cultura woke, seja qual for, nega o livre arbítrio e a complexidade da moral, apenas para poder existir. “Mantêm a sua querela, porque não se mantêm senão por ela”, como está na epígrafe girardiana deste artigo. “É a inimiga da criatividade” (Seth Greenland).

Porém, a fantasiosa doutrina “decolonial” não é apenas uma maneira incorreta e desonesta de impor qualquer trabalho, seja ele artístico ou intelectual.

No site da 34a Bienal: “Jota Mombaça (1991, Natal, RN) define-se como “bicha não binária, nascida e criada no nordeste do Brasil”. Jota pesquisa as relações entre humanidade e monstruosidade, investiga a pertinência do queer como categoria no contexto brasileiro e tensiona a constituição de subjetividades e marginalidades nos centros e periferias do capitalismo. Em suas performances e escritos, seu corpo desafia a branquitude heterossexual cisgênero e masculina que se impõe como norma universal. Jota expõe as violentas políticas de morte e de invisibilidade às quais foram submetidos os corpos racializados ao longo da história colonial, que perduram atualmente sob a ficção da democracia racial.”(…)

Trata-se sobretudo de uma estratégia comercial: colocar sob holofotes trabalhos considerados ruins (porque são ruins mesmo, e não necessariamente de uma ótica colonialista, branca, patriarcal ou eurocêntrica) ou que não são vistos e percebidos por si próprios (porque de fato não têm nada para chamar a atenção, nem mesmo um programa estético) e que por estas razões não vendem e não “se vendem”.

Não me admira que um dos artistas (indígena aculturado), tão celebrado pelo “woke festivo” brasileiro, tenha formação publicitária. A sua arte (ou artesanato, para sermos mais exatos) nasce da vontade de aceitação pelo público, mostrando os melhores aspectos do seu “produto decolonial”. É publicidade pura. Está muito longe da arte.

Arte woke decolonial, é o culto absoluto do superego

Mensageiros woke adoram a palavra “narrativa”. Repetem bastante. Alguns não chegam a citar “arte”, mesmo quando é de arte que se trata. Não falta muito para sermão religioso. O woke artista e seu woke crítico se querem literalmente perfeitos, sem pecado. Arte woke decolonial é maniqueísta, culto absoluto do superego. Fogueira para os hereges e anti-modelos!

A questão é: fora das linchagens na imprensa e nas redes, e dos pequenos debates universitários estendidos às instituições em decadência, como a documenta de Kassel e a Bienal de São Paulo, pode o woke artístico mudar alguma coisa na vida cultural e política de um país? Pergunto, porque entre intelectuais mais evoluídos, vemos que o movimento encontra enorme resistência. Por enquanto, que se saiba, espécimes artísticos marginais do decolonial, só são pinçados pelas camadas urbanas e diplomadas, da moda.

Sabemos que no mundo virtual das GAFAM – Google (Alphabet Inc), Apple, Facebook (Meta), Amazon e Microsoft – qualquer sistema de pensamento promovido por jovens de origem menos humilde e com formação, está fadado a ganhar popularidade. E apenas nas classes altas. Mesmo quando o assunto trata de minorias e desfavorecidos. Não existe proletariado woke. Na França, os trabalhadores não sabem o que significa “decolonização”. Esse conceito é como “ópio dos intelectuais”, para usar a famosa fórmula de Raymond Aron sobre o marxismo.

Exemplo de “soft woke” ou “decolonial glamour” (essas palavras são invenções minhas). Retratos oficiais de Barack Obama por Kehinde Wiley, e de Michelle Obama por Amy Sherald, dois pintores afro-americanos. A primeira obra retrata o ex-presidente de terno, sentado em meio a folhas e flores típicas do Havaí, onde nasceu. Seu autor procurou “questionar a retórica usual de poder associada à elite masculina branca”. Já o retrato da ex-primeira-dama é inspirado em tecidos e estampas subsaarianos.

Também pergunto: crítico que defende a chamada arte decolonial, consegue analisar seus marginais prediletos de modo que critérios artísticos prevaleçam sobre critérios morais?  Ou, para ele, talvez, critérios históricos, sociológicos, psicológicos, psicanalíticos, econômicos, políticos, científicos, estéticos (filosóficos), enfim, tudo que igualmente diz respeito à crítica e à arte – depois de séculos – não existem mais?

O “woke capitalista”, como o que infestou até mesmo Walt Disney e as marcas de luxo; e o “soft woke”, “decolonial glamour” – expressões que inventei para designar o “woke comercial” de Kehinde Wiley e Amy Sherald (foto acima) – são melhores do que o universitário, porque pelo menos não se levam tão a sério. Mesmo os retratos oficiais de Obama e Michelle – à maneira do brega Romero Britto, que também pinta presidentes, de Dilma a Bolsonaro – são mais didáticos e colocam a codificação do poder americano de cabeça para baixo.

Não há uma só pessoa madura, que seja woke.

Também a idade, desempenha papel fundamental nesta praga. Não há uma só pessoa madura na França, por exemplo, que seja woke. Há pouco tempo, li que os adeptos do “wokismo decolonial”, neste país, geralmente têm entre 18 e 35 anos. Há um prognóstico ingênuo de que seriam remodelados pelo implacável mundo do trabalho. Não é bem assim.

O wokismo é uma epidemia. Trata-se, de fato, de um “vírus”, tanto a partir de Derrida quanto de certas feministas e decolonialistas. Precisa de virologistas.  É um grave perigo para o mundo do trabalho, suas relações sociais e a economia que dele depende, entre outras coisas.

Só nos Estados Unidos – onde a praga começou primeiro – encontra-se quarentões imaturos ou oportunistas, colados à ideologia. Curiosidade: segundo as estatísticas (Google confirma) muito mais mulheres são adeptas do wokismo (de todos os tipos) do que os homens. Não é muito difícil entender as razões.

A grande diferença entre os Estados Unidos, o Brasil que o imita (com bastante atraso) e a França, é que temos aqui uma esquerda anti-woke bastante forte. Ela está consciente e resiste ao modelo americano, por mais “politicamente correto” que possa ser. Por mais que o colonialismo seja, de fato, uma questão que lhe fale de perto. Grandes professores, especialistas no assunto, como o brilhante Pascal Blanchard, odeiam ideologias decoloniais. Sobretudo as que instrumentalizam os verdadeiros pensadores do colonialismo.

A teoria do filósofo e antropólogo René Girard (1923-2015) – cuja síntese figura no meu penúltimo livro (Direi Tudo, Ed. Perspectiva 2017), no capítulo O Inferno – explica bastante, creio eu, o mal-estar geral que presenciamos à nossa volta, e em toda parte.  Sinto que precisamos dela neste momento, mais ainda do que a discussão de Freud sobre o mal-estar na cultura, a pulsão de morte e a civilização. A questão girardiana do “desejo mimético” exige um pouquinho de esforço para acompanhar, mas vale a pena.

O antropólogo francês René Girard em junho de 2008. LINDA CICERO/STANFORD NEWS SERVICE

Arte (e virada) decolonial não existe

Realmente, não existe. Arte é arte tout court.

Totalmente de acordo com o que diz o presidente Emmanuel Macron: “Na colonização existiu o horror e também a emergência de Estados e riquezas. É a realidade da colonização: elementos de civilização e de barbárie.” Demonizar, sem relativizar, é wokismo burro (perdão pela redundância). A mim, dá muita pena de historiadores e intelectuais que sigam este caminho.

Acabaram essas relações de poder

Nos anos 1970, militava-se pela “arte latino-americana”, como no famoso Simpósio de Austin. Do colóquio equivocado “El artista Latinoamericano y su identidad” (que já tratava – e mal – de colonialismo), participaram até mesmo críticos como Damián Bayón, Aracy Amaral, Juan Acha, Frederico de Morais, Octavio Paz e Marta Traba. Obviamente, Walter Zanini e outros que tinham uma visão universalista e mais aberta da arte, não entraram na onda.

Com as nossas bienais, nos anos 1985 e 1987 – e já antes de nós, com as formidáveis edições de Walter Zanini – eliminamos fronteiras geopolíticas e apontamos a mundialização. Faz muito tempo que não existe mais relação de poder entre Europa e colônias. Faz muito tempo que o mundo, apesar de suas diversidades, é um só. O planeta inteiro se comunica. Todas as formas de arte, em toda parte, na Austrália como no Brasil, têm o seu lugar e as suas trocas.

Hoje, o homem volta-se ao universo, a lugares jamais explorados. Externos ao planeta Terra.

Há sete anos, já na 32a Bienal, sem o advento woke, mas, dentro do mesmo espírito, “trabalhos eram usados para criar uma estratégia de decepção”, segundo Rosalinda Fumarola, crítica de arte ítalo-brasileira inventada por mim, em mais uma entrevista imaginária ao jornal Valor Elevado, também inventado por mim.

“A história universal é a de um só homem.”

Por causa das diversidades, e graças às suas particularidades, sim, a arte é universal. Assim como o nosso planeta, que pertence ao Universo. J. L. Borges dizia: “A história universal é a de um só homem.”

Não penso que a novilíngua identitária triunfará. Mesmo se, com as redes, arrebanha incautos carneirinhos. Mesmo se, meio século depois, os pseudoativistas simulem raciocínio lógico, com estrutura aparentemente consistente e correta, produzindo a ilusão de uma “verdade”. Qualquer herdeiro de Austin, só pode involuir. Além de que, qualquer estratégia, mesmo e sobretudo as de mercado, sempre tem curta duração.

É necessário coragem para dizer “não” a este mundo orwelliano que nos é prometido. Não precisamos nos calar e deixar o populismo prosperar.

Até a próxima, que agora é hoje e, se o destino for venturoso com as futuras gerações, essa “virada” fictícia, de ícones chiques e tendência, será lembrada apenas como outra veleidade que passou!

Detalhe da instalação “The American Library”, do artista anglo-nigeriano Yinka Shonibare, 2019. Foto ©️Carol Ann Dixon.

Minhocas da pesquisa

Fui procurada por um “coordenador de pesquisa e difusão” da Fundação Bienal de São Paulo, orientando universitário de uma pessoa de quem gosto, o que me colocou em confiança.

O rapaz (com mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo) – graças às celebrações dos 70 anos da Bienal e, no ano que vem, dos 60 anos da Fundação – recebera o comissionamento de um artigo sobre a história da Instituição. Queria obter um depoimento meu, como “parte de suas fontes para a elaboração do texto”.

O tema dele é o Conselho de Arte e Cultura (CAC) que funcionou bastante tempo e do qual fiz parte como crítica e depois como curadora-geral. Porisso, enviou 8 questões, sendo que a última sai do assunto, com a pretensão de julgar o papel e a vocação da bienal, mostrando bem a imaturidade, rigidez e preconceito, tipicamente acadêmicos, desses garotos.

Mas é claro que o ajudei. Depois de ter gastado o meu tempo – penso que é o mínimo que devemos à história cultural do nosso país – enviei as respostas por e-mail, com a maior boa vontade. O rapaz agradeceu, disse que o material é “valioso” e respondeu:

“Caso algum trecho de suas respostas seja citado ou mencionado, entraremos em contato.”

O fato é que, quando a minhoca universitária pediu o meu “depoimento”, não avisou que era para “tirar um trecho” e menos ainda que a minha contribuição “poderia não ser usada”. Claro. Se tivesse avisado, não teria conseguido me usar.

Não é a primeira vez que tenho desgosto com estes desonestos e mal-educados oligoquetas brasileiros, escavadores de túnel. Vários deles me usaram bastante para os seus trabalhinhos de mestrado e doutorado e sumiram, sem jamais me agradecer ou enviar o resultado. Quantas vezes descobri os seus biscates online e, ao lê-los, fiquei de cabelo em pé…

Até a próxima, que agora é hoje e se eu juntar os erros, os absurdos e mentiras que estão na maior parte das teses universitárias sobre a Bienal de São Paulo ou a crítica de arte, eu mesma posso defender uma tese!

Como foi o processo que levou à sua participação no Comitê de Arte e Cultura da 17ª Bienal?

Eu escrevia como crítica de arte no Estadão, desde 1975. Visitava e analisava várias bienais e eventos nacionais e internacionais. Com meus artigos e publicações, penso que trouxe ao país bastante do que aconteceu de importante nos anos 1970 e 1980. Cheguei a despertar interesse pela Documenta de Kassel, evento que o meio artístico brasileiro desconhecia totalmente, mas, a partir de meus artigos, em 1977, passou a frequentar.

Além disso, entrei em contato com as ideias (e as pessoas) de grandes conservadores ou curadores como Christos M. Joachimides e Norman Rosenthal (cuja exposição Zeitgeist, eu visitara em Berlim, um ano antes da 17a Bienal), Harald Szeemann, Manfred Schneckenburger, Pontus Hultén, Rudi Fuchs, entre muitos outros. E criticava bastante as formas atrasadas com que certos diretores de museus, como o professor Bardi, encaravam as instituições e exposições.

Apontei várias vezes a maneira obsoleta como expunham a arte em nosso país. Isto me valeu vários inimigos, entre eles o próprio professor Bardi. Por outro lado, penso que foi justamente por estas mesmas razões que o presidente da Bienal, Luiz Villares, e o curador, professor Walter Zanini, me convidaram para fazer parte da CAC. Mesmo porque, eu respeitava muito o trabalho de Zanini, um dos únicos intelectuais no Brasil que haviam realmente compreendido a evolução das artes plásticas e das instituições, naquela época.
No período em que fez parte do CAC, qual era o papel do Comitê dentro da estrutura da Fundação Bienal?

O Conselho, ou a Comissão, de Arte e Cultura, tinha um papel da maior importância. Funcionava como uma assessoria profissional especializada que, de um lado trazia sugestões, ideias, enriquecendo o trabalho do curador e, de outro, era um respaldo. Apoiava o seu trabalho, evitando que toda a responsabilidade de escolhas e decisões caíssem sobre os seus ombros. Dentro da estrutura hierárquica, vinha logo depois do curador. Nas bienais de 1985 e 1987, o CAC teve inclusive uma formidável participação na montagem.

O Professor Zanini e sua assistente Gabriela Wilder que participavam ativamente das reuniões, ela sempre redigindo as atas, lutaram para que esta fosse uma atividade remunerada, e conseguiram. O que foi muito justo pois era, de fato, um trabalho que exigia bastante de cada um.

É preciso assinalar que Gabriela continuou, depois, como minha assistente, e o seu trabalho foi de imensa valia para atuação do CAC, durante a maior parte de sua existência.

Tendo feito parte do CAC tanto como conselheira quanto na posição de curadora da mostra, poderia contar um pouco como era a relação do CAC com as curadorias e com as Diretorias da Fundação?

Essa relação foi um fenômeno típico, e muito raro, de sinergia. Em todos os níveis: humano, intelectual, profissional. A relação do CAC com as curadorias e com as diretorias da Fundação era sempre muito boa, cordial e extremamente frutífera por causa das contribuições de cada um. O presidente recebia as atas das reuniões. E existia, inclusive, uma ótima intermediação de João Marino, que fazia a ponte entre o CAC e a diretoria. Todas as partes estavam interligadas, cada um participava igualmente do processo, até mesmo os responsáveis pela administração.

Não lembro de nenhum momento em que transparecesse uma fração de “interesse pessoal”. Do que pude testemunhar, a Instituição Bienal esteve sempre em primeiro lugar na cabeça e no coração de todos os seus participantes. Não sei se este mesmo espírito teve continuidade nas bienais seguintes.

Você se lembra de situações em que houve divergências entre as partes que integravam o CAC? Como as divergências foram resolvidas?

As divergências nós resolvíamos de forma democrática e, na verdade, com o diálogo, tudo acabava em consenso. Nem precisávamos votar. Não me lembro de absolutamente nenhum conflito. Mesmo quando houve choques externos, por exemplo – com a demissão de Jürgen Harten e a recusa de artistas, na polêmica da Grande Tela – o CAC e o presidente Roberto Muylaert – demonstraram enorme firmeza e deram apoio absoluto ao trabalho da curadoria. Eu talvez tivesse desistido de lutar por minha ideia, se não fosse o apoio do CAC. Lembro-me até hoje das palavras de encorajamento de Renina Katz.

Sempre existiu uma relação de confiança e até mesmo de amizade entre todos. No final, formávamos – conselheiros, curadores, diretores, e os funcionários dos mais diferentes setores – “uma grande família”. Para o professor Zanini que tinha uma personalidade diferente, além de se mostrar bastante preocupado (com razão) com o bom encaminhamento do evento, eu não sei. Para mim, os encontros eram sempre muito alegres e cheios de entusiasmo, mesmo nos momentos mais preocupantes. Pessoalmente, tenho as melhores lembranças dessa relação, solidariedade e auxílio mútuo. Sinto muitas saudades daquela época.

O CAC se envolvia na deliberação sobre a escolha da equipe curatorial? Qual era o papel efetivo do CAC na escolha dos artistas brasileiros? Ele também se envolvia nas indicações para as representações estrangeiras?

Sim, o CAC se envolvia em tudo que pedisse o seu envolvimento. Não era um envolvimento sistemático. Quando havia necessidade, nós elaborávamos pautas a serem deliberadas. Nada era escondido. Se certas escolhas ou decisões da presidência ou da curadoria se apresentavam como definitivas e não necessitavam de discussão, elas eram apresentadas ao CAC para saber se existia alguma objeção.

Pelo menos nas 18a e 19a edições da Bienal, o papel do CAC foi fundamental para a escolha dos artistas brasileiros. Nenhum artista da representação oficial brasileira jamais foi escolhido por algum curador ou outro colegiado. O CAC foi responsável direto, tanto pelas sugestões, quanto pela seleção e aprovação dos artistas, mesmo se algumas propostas pudessem vir da curadoria ou de outros segmentos da equipe.

Quanto às representações estrangeiras, o Professor Zanini e eu, nas bienais seguintes às dele, nos ocupamos de sugerir nomes aos comissários ou organismos culturais estrangeiros, sem interferência do Conselho. Porém, eu estive sempre aberta a sugestões. Viajei várias vezes com esse intuito, sempre trazendo notícias ao CAC. No entanto, quando o assunto era o “convite da Bienal a artistas estrangeiros”, aí, sim, o Conselho se envolvia.

Aqui, eu gostaria de pedir a você para registrar nos arquivos Wanda Svevo, por favor, a inverdade que saiu no livro comemorativo do quinquagésimo aniversário da Bienal de São Paulo, publicado pela Fundação. Na página 219 (cuja imagem reproduzo abaixo), está escrito: “Nota de estranheza: dos 22 artistas selecionados, 10 faziam parte da CAC que os escolheu.”

Ora, basta comparar os membros do CAC e os artistas selecionados no catálogo daquela Bienal para ver que isto, se não é uma calúnia, é uma mentira deslavada, de responsabilidade, entre outros, do Sr. Agnaldo Farias que foi quem organizou a publicação. Publicação, aliás, cheia de erros e sem rigor algum.

Em alguns momentos de sua história, a Fundação Bienal se mostrou capaz de responder a mudanças nas práticas artísticas, como quando alterou seu regulamento, ainda na década de 1970, permitindo a inscrição de coletivos de artistas para participar da mostra. Durante sua experiência no CAC e na curadoria de duas Bienais, você acredita que a Fundação incorporou às mostras mudanças nas práticas artísticas e no campo artístico?

Certamente. Estávamos muito atentos a estas mudanças e em sintonia com o que ocorria no mundo. Introduzimos várias delas, porém, como não tenho tempo de fazer uma pesquisa em meus projetos e arquivos, prefiro não falar apenas de memória.

O que você pensa sobre a dissolução do CAC a partir da 21ª Bienal?

Como já lhe escrevi, concordo com você que o período CAC foi de fato um momento chave, não só porque a Fundação ficou atenta às mudanças que se processavam no campo artístico, mas por ela ter optado por um sistema democrático. Na verdade, representamos diversos segmentos da sociedade cultural (não apenas artística) da época. Penso que cada um de nós contribuiu muito para a visão amplificada, eu diria até mesmo “holística”, da cultura e de suas mudanças, sim.

Mais do que isso, vejo uma relação direta entre o declínio da Bienal e a falta desses interlocutores. Nunca entendi por que o Conselho foi eliminado. Se foi por questões financeiras, é uma lástima ainda maior, porque este orçamento era mínimo, perto dos gastos astronômicos das bienais seguintes.

A Bienal de 1985 custou apenas 2 milhões de dólares, é só comparar.

Deixo para o final uma questão mais ampla. Sinta-se à vontade para respondê-la ou não. Um dos argumentos que estou elaborando a respeito da história da Fundação Bienal é que, ao se desvincular do MAM, as Bienais perderam uma de suas principais funções iniciais, que era a constituição de um acervo nacional e internacional formado pelas premiações de cada edição. Esse acervo era o principal legado deixado pelas mostras. Quando param de deixar um legado material, as Bienais acabam se resumindo a ser apenas uma oportunidade de atualização, algo que, segundo algumas críticas, as teria tornado obsoletas com o surgimento da internet e com a ampliação da oferta de exposições de artistas contemporâneos por outras instituições de São Paulo e do país, sem falar nas galerias e feiras de arte. Nesse sentido, você acredita que o estabelecimento de um projeto institucional de médio a longo prazo (como teve o MAM nos anos 1950 e como aparentemente o CAC tentou estabelecer nos anos 1970-80), que definisse com clareza o sentido de seguir realizando a Bienal a cada dois anos, poderia devolver às mostras a relevância que tiveram no passado? Ou, em sua opinião, o formato chegou de fato a um esgotamento?

A Bienal não é um “formato”. O seu legado não é necessariamente material. Quando param de deixar um legado material, as bienais deixam um legado cultural e civilizador tão importante quanto um “acervo”. Mais ainda hoje, quando, tecnologicamente, é possível uma documentação extraordinária.

A Bienal não é uma instituição que produz “eventos artísticos”. Enquanto manifestação, igualmente não é um “evento artístico”. Apesar da sua aparente oficialidade, ela não é uma peça cultural de ostentação e sustentação de um indivíduo, um grupo ou uma sociedade. A Bienal também não é uma obra pronta, uma realização acabada e fechada que começa no Parque Ibirapuera numa data determinada e finda dois ou três meses depois. Ela é um acontecimento que transcende seu espaço físico, seu tempo de duração, sua organização interna, suas qualificações e categorias.

A Bienal deve ser vista como um momento, uma fração, o fragmento de uma totalidade que, circunstancialmente ou não, se equivale a essa totalidade. Um estado análogo ao estado das coisas que se dão nesse campo vastíssimo que é o da arte. Na Bienal não há apenas um apanhado concentrado de realizações múltiplas e esporádicas. Há uma representação dessas realizações, que forma o mito coletivo do fazer. Um “fazer” conjunto, simultâneo, que ocorre em vários pontos do mundo e que se equilibra, iguala, em necessidade, impulso e objetivos.

Usar a “arte como medida” é o único caminho de a Bienal resgatar aquele que, na minha opinião, é seu verdadeiro papel. Se a arte não se esgotar, não há como a Bienal sofrer esgotamento. Resta esperar apenas que a arte não se esgote e que no futuro existirão pessoas com visão para trazer ao público este “fragmento de totalidade”. Por enquanto, no presente, penso que a vida política no Brasil, assim como as ideologias, clichês e preconceitos, infelizmente contaminaram tudo, arruinando a cultura e até mesmo a inteligência e sensibilidade de seus atores culturais.

Vista geral da “Grande Coleção”, espaço coletivo na 19a Bienal de São Paulo, em 1987.