A Laurinha, minha amiga, é uma universitária muito séria. Subiu as escadas da carreira acotovelando muitos, passou por todas etapas “matando” alguns, foi indo, indo, até chegar ao ponto onde não tinha como subir mais e, então, se aposentou. Os alunos da Unicamp se livraram dela. Ela não se livrou da Unicamp. Conhecida como a maior especialista em bicho-papão da América Latina (ser imaginário que alguns chamam de “boitatá”, “mumuca” ou “manjaléu”), Laurinha continuou a pesquisa em sua área que é a literatura portuguesa, brasileira e da Península Ibérica. E iniciou a costura de todos os trabalhos que apresentou durante décadas em colóquios e encontros, no afã de publicá-los em livro, já que também teria tempo de sobra para a propaganda dele.
Devo dizer que a minha amiga é a pessoa mais organizada e minuciosa que conheço. Ela detesta desordem. Mesmo quando conversa, os assuntos são ordenados e nenhuma palavra pode estar fora de lugar. Isso combina com o seu egocentrismo que lhe confere falta de tato e também de empatia. O que condiz igualmente, penso eu, com o seu interesse desmesurado por bicho-papão. Mas o pior de tudo, é a falta de humor. Fora das coisas muito óbvias, nenhuma sutileza é capaz de fazer a Laurinha dar risada.
Aposentada, sem demora a minha amiga se inscreveu no Facebook. No início, achei que era para ter notícias dos amigos. Não. Ela se inscreveu para eles terem notícias dela. Um pouco como quem diz:
“Eiiii! Estou aqui! Me aposentei, mas não morri! O bicho-papão também não! Continuamos na ativa, ok?”
Assim, a Laurinha que passou a vida pensando nela mesma sem pensar nos outros – e que provavelmente está com carência de reconhecimento porque os outros retribuíram e também não pensam nela – entrou em frenesi de auto promoção na rede social. Publica um post atrás do outro, onde fala de seus sucessos e dela mesma, no passado e no presente, aqui e ali. Quando não exibe a sua brilhante carreira, faz suspense avisando que tem um livro no prelo ou mostra um pedacinho da capa. O pior é quando aparece assinando o tal do livro em alguma cidade do interior. São 14 fotos dela atrás de uma escrivaninha, rodeada por meia dúzia de gatos pingados que nunca ninguém viu.
Ontem, ela publicou a foto da fachada de uma das Livrarias de São Paulo agradecendo a mensagem da amiga que encontrou o livro lá. Disse estar “muito contente de ver o ‘seu bicho-papão’ (sic) em tão excelente lugar”. Eu que sou um pouco avessa a cabotinismo, cometi a besteira de comentar, fazendo piada, sobre um escritor francês ligado a extrema-direita que está em todos os jornais, acusado de pedofilia:
“Será que os livros do bicho-papão Matzneff”, perguntei, “também estão nesta excelente livraria?” Como de hábito, completei com um smiley risonho. Pra quê? Claro que ela não estava interessada em discutir alguém que não fosse ela mesma. Ainda menos um escritor que não é português, brasileiro ou da Península Ibérica. Foi aí que começou a ministrar o curso:
“O bicho-papão é ‘pedofágico’, Sheila, não pedófilo no sentido sexual. Ele não quer violar, penetrar, ele quer – ao contrário – incorporar, colocar no seu ventre. O bicho-papão é a personificação do medo. É um ser mutante que engole.”
“Do meu ponto de vista os pedófilos são bichos-papões, sim.”
Depois dessa, eu não tinha muito o que dizer. Mas, para continuar um pouco a minha piada, respondi:
“Obrigada pela aula, Laurinha. Mas se eu puder me permitir alargar um pouco o seu ponto de vista universitário, você sabe que quando uma pessoa quer dizer que teve relações sexuais com outra, ela diz que a ‘comeu’. Do meu ponto de vista, os pedófilos são bichos-papões, sim!”
E não é que ela respondeu com mais uma aula… falando dela mesma?
“Aqui você permanece nas generalidades. De minha parte, me interessei exclusivamente pelos bichos-papões das mitologias infantis portuguesa e brasileira, também no resto da Península Ibérica, como na Galiza, na Catalunha e nas Astúrias. O que me interessa é a conotação infantil do “papar” que revela a principal função do bicho: devorar crianças. E parece bastante evidente, quando examinamos de perto o que as crianças dizem, que esta figura de monstro dissimula aquela da Mãe arcaica (terrível, devoradora), tão dolorosa, senão mais ainda do que o do pedófilo. Aliás, em muitas histórias o agressor não é o bicho-papão, mas uma bruxa. Se você fizer questão de assimilar os bichos-papões aos pedófilos, seria preciso imaginar uma pedofilia feminina.”
Bem, devo confessar que diante deste discurso de especialista, a minha resposta foi tão sem graça que nem vou repeti-la aqui.
“Sheila, OK. De fato, pedofilia feminina existe. Mas acabemos com esta discussão inútil! Não nos interessamos pela mesma coisa. Eu não fiz pesquisa sobre pedofilia, tentei analisar histórias da tradição oral, não influenciadas pela cultura (e menos ainda pela psicologia ou psicanálise); histórias de gente simples onde a relação do bicho-papão com as crianças se funda numa dupla e complexa oralidade, a da comida e a da palavra. Onde se conta como se escapa da primeira, o devorar, pela segunda. O que é o mesmo que deixar de ser uma criança nos termos do psicanalista húngaro Sándor Ferenczi, ou seja, aquele bebê que ainda não fala. Eis a minha curiosidade atual.”
Mas eu não estava discutindo… aliás, não tinha afirmado ou perguntado nada do que ela estava explicando. De minha parte, era para ser apenas uma troca humorada. Pela simples razão de que o escritor que tive a infelicidade de citar está sendo chamado na imprensa de “o bicho-papão da atualidade”, só isso.
“Entendeu agora, Laurinha? Feliz Ano Novo, até…”
Moral da história: não brinque com universitário muito sério que, além do mais, se leva a sério. Até a próxima que agora é hoje e, eu e você que está me lendo, tivemos aula de bicho-papão… à nossa revelia!
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