Parabéns, soberana!

Nunca escondi a minha simpatia pela Rainha do Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e de seus outros Reinos e Territórios – Chefe da Commonwealth – que, no dia 6, aos 95 anos, completou 70 de reinado. A ponto de me perguntar se sou monarquista.

Elizabeth II, 2001© Lucian Freud

Mesmo assistindo à uma série demolidora na TV e lendo maldosos gossips de tabloide, nunca consegui deixar de ser fã de Isabel II (Elizabeth II, para o seu povo). Aprecio até mesmo as suas roupas!

No aniversário de 90 anos, lembra? Ela estava vestida com um tailleur “fluo” verde limão. “Fluo” é apócope da palavra “fluorescência”, sendo que esta é a capacidade de uma substância de emitir luz. Foi ousadia fashionable da grande dama? Excentricidade britânica? Mau gosto palaciano?

Nada disso! Not at all!

Se as cores das roupas da rainha da Inglaterra não tivessem um sentido, claro, seriam impensáveis. Como imaginar Sua Majestade Britânica e estilistas escolhendo “verde limão” apenas por cromatismo? Seria negar todo o alcance simbólico das tonalidades pictóricas na história dos mestres ingleses.

Elizabeth II, na comemoração de seus 90 anos.

Verde fluo, para mim, queria dizer que a rainha reinava e – emitindo luz sobre o que é obscuro – garantia a constituição e a democracia, a unidade nacional e a integridade territorial. Enquanto símbolo da continuidade histórica do Estado, continua a representar e assegurar os interesses internacionais. Tudo o que não vemos, há tempos, acontecer no Brasil.

‘Ela e eu vamos ao toalete como todo mundo’

Vi a rainha em carne e osso, de muito longe, quando ela inaugurou o Museu de Arte de São Paulo, na avenida Paulista, em 1968. Na comemoração, ao contrário da minha família, eu me encontrava no meio da massa, de onde enxergava quase que apenas o príncipe Philip e alguns dos amigos dos Leirner. Já um dos meus tios, há até mesmo foto dele fazendo uma pequena reverência no beija-mão de Elizabeth II, que foi madrinha do evento.

Minha avó Felícia, que me confessava não sentir nenhuma diferença entre ela e a rainha da Inglaterra “pois, afinal, ambas iam ao toalete como todo mundo”, naquela época pensava que a pessoa certa para mim seria o príncipe Charles. Verdade que estávamos com idade idêntica, mas, por mais que a minha avó estivesse brincando, era difícil me imaginar na corte inglesa uma vez que eu sempre escolhia o lado da plebe…

Rainha Elizabeth II é recebida para a inauguração do Masp, em 1968.
Nelson Leirner, no beija-mão da rainha Elizabeth II, madrinha da inauguração do Museu de Arte de São Paulo – Divulgação/MASP
Elizabeth II conhecendo Tomie Ohtake – Divulgação/MASP

Sempre gostei de coisas feitas e ditas por Elizabeth II, que soube se manter impecável dentro de seu papel e atribuições. Só não gostei de uma que não foi feita, quando Lucien Freud pintou o seu retrato e a monarca, magnânima e majestosamente, não o “mandou para a torre”. Que retrato horrível!

Até a próxima, que agora é hoje e Long Live the Queen!

Elizabeth II, retratada por Lucian Freud em 2001.

Nota: “Mandar para a torre” (“send to the tower”) é uma expressão inglesa que quer dizer “enviar à prisão”. Lugar ao qual, por exemplo, muitos brasileiros gostariam de mandar também o seu presidente atual.

Qual a idade da ‘Grande Tela’?

A análise faz parte do imenso processo de glaciação dos sentidos. A ajuda das teorias é totalmente secundária.(Jean Baudrillard, Cool memories I, Ed. Galilée, p.19)

Alguns a chamavam de “Grande Parede”, outros de “Corredor” e outros ainda de “Paredón”. Dos bastidores e do nascimento daquela experiência, há muito o que contar. O mais importante, porém, é que neste seu aniversário, A Grande Tela na 18a Bienal Internacional de São Paulo (1985)  possa servir ainda para uma reflexão contemporânea sobre a arte e as formas de expô-la por meio de uma crítica tetradimensional, ou seja, por meio de uma metáfora que seja fiel aos valores nos quais a própria arte se origina.

A Grande Tela nasceu da náusea e da fascinação. Durante um período no qual mais enjoativo do que o cheiro e a textura da tinta em excesso, era a saturação de imagens. Em 1985, como se sabe, a pintura renascia de todas as maneiras. Os seus filhotes cresciam como cogumelos, chegavam às centenas e se acumulavam de uma forma assustadora no Pavilhão da Bienal. Muitos deles com a tinta ainda fresca. Tal fenômeno de multiplicação de imagens impedia quase a visão individual e propunha uma abordagem radicalmente coletiva. O que era tanto mais possível quanto maior fosse a noção de que um verdadeiro crítico pode (e deve) ser também um artista e de que uma Bienal não é um museu. De que uma Bienal é a plataforma da mais absoluta liberdade crítica e do mais íntegro e categórico compromisso com o público.

Eu conduzia o meu carro, como todos os dias, pela avenida 23 de maio que leva ao Parque Ibirapuera, porém dominada pelas sensações que me causava aquela invasão pictórica plena de luz e de sombras. Como um desfilar de almas, dela emanavam energias mescladas, antagônicas, irredutíveis. Todas as problemáticas do mundo pareciam se espelhar naquela produção feérica. Não se podia compreendê-la ou exprimi-la espacialmente senão pela figura de um grande e único conjunto.

Olhei a avenida que percorria e imaginei o grande tecido esticado em chassi cujas imagens vistas em alta velocidade animavam-se em sua extensão. Esta “instalação” imaginária praticamente nomeou-se por si mesma: A Grande Tela. Em seguida, veio a visão do anel de Moebius que Lacan chamava de “Oito interior” e que nos mostra uma superfície para a qual as noções de lado direito e avesso não existem. Um anel infinito… A Grande Tela seria um anel infinito!

No início, as reações foram de entusiasmo e empatia. A Comissão de Arte e Cultura (CAC), para minha supresa, exultou! Creio que todos passávamos pelo mesmo processo sensorial correlacionado com aquele fenômeno do “renascimento da pintura”, o que nos permitia ir além do mero conhecimento e dos procedimentos tradicionais.

Mesmo quando houve choques externos, a CAC e o presidente Roberto Muylaert  demonstraram enorme firmeza e deram apoio absoluto ao trabalho da curadoria. Talvez eu tivesse desistido de lutar por minha ideia, se não fosse aquele apoio. Lembro-me até hoje das palavras de encorajamento de Renina Katz. Foi ela quem me aconselhou, mais tarde, a guardar a cópia de todos os arquivos de nossas bienais. Grande e querida Renina!

O arquiteto responsável pela organização espacial da 18ª Bienal, Haron Cohen, perguntou-me por que, ao invés do anel de Moebius que era de difícil execução, não poderíamos realizar um espaço contínuo, reto e horizontal – uma instalação que representasse uma grande tela real, na qual os trabalhos ficariam separados por alguns centímetros. Apenas o necessário para demarcar os limites de cada um.

Estava de volta a minha primeira quimera da avenida 23 de maio, desta vez porém em escala e velocidade mais humanas. Uma avenida que poderia ser transposta à pé e à qual o nosso formidável arquiteto finalmente dava forma.

Não me ocorreu que o binômio espaço/conteúdo levaria o espectador a atravessá-la mais rapidamente e talvez com menos atenção do que numa exposição labiríntica. Foi o que aconteceu e não posso julgar o resultado. Posso dizer apenas que este binômio foi engendrado e ditado indiretamente pelos próprios artistas, mesmo e talvez sobretudo pelos que o rejeitaram. E que não funcionamos – curador, equipe e arquitetos – senão como os intermediários que criam por sugestão, os médiuns psicógrafos de sua ação artística.

De todo modo, a idéia crescia junto com as concepções cenográficas de Felippe Crescenti. Foi ele quem sugeriu a dramaticidade das esculturas do artista inglês John Davies, da Grã-Bretanha, para representar “O Homem e a Vida”, título da 18a edição, arrematando A Grande Tela nos finais de seu corredor central.

Todos naquela Fundação estavam de acordo. E mais do que isto, empenhados na defesa de um conceito que eles consideravam revolucionário e incomum. Porém, feitos os cálculos, um só corredor não bastava. Eram necessários três. Idênticos! Era o começo de uma luta que não imaginávamos afrontar.

Durante a montagem o presidente da Bienal foi obrigado a pedir o fechamento circunstancial da área, para que pudéssemos trabalhar, e a colocar policiais e seguranças para impedir a desordem e os excessos. Não me lembro de ter sofrido em minha vida tantas pressões, agressões e tamanho estresse. Vi com muito espanto o quanto esta polêmica totalmente involuntária serviu também para atiçar o interesse do público e da mídia.

Com sinceridade, não sei de que forma ou se efetivamente o tumulto contribuiu para uma reflexão. Sei apenas que este espaço perturbador – esta zona de turbulência que, como escrevi na época, era análoga àquela que encontramos na arte contemporânea – marcou um retorno utópico ao Homem e à Vida. Noções que se haviam perdido nas décadas anteriores e que decidimos emblemar peremptóriamente por meio daquelas esculturas antropomórficas que remataram as passagens.

Hoje, século 21, o Homem e a Vida continuam, sob outras formas e em outros cenários. O que ficou da Grande Tela ? Ficou a imagem de uma réplica do universo das intervenções, ou melhor, um desdobramento completamente prospectivo e quase divinatório da grande teia em que ele acabou por se transformar com a mundialização e o verdadeiro emaranhado do Web. Se os artistas (e a sua arte) são os únicos a possuir a capacidade de prospecção, uma exposição que os tem como medida só poderia nos fazer ver adiante. E, ao longe, no futuro, hoje, graças à emoção que nos permitiu observar esta aptidão, A Grande Tela finalmente se materializa.

Sim, a maturidade começa quando nos contentamos em ter razão sem precisar provar que os outros estavam errados. Até a próxima, que agora é hoje, A Grande Tela faz 36 anos e são as demais experiências na crítica e na arte que a deixam sem idade e nenhuma ruga!

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