14 de Julho: o preço da liberdade

É a 26ª vez que assisto in loco a comemoração da queda da Bastilha e hoje particularmente também do centenário da entrada do Tio Sam na 1ª Guerra. E é a 1ª vez que vejo o Brasil, minha pátria original, nesse estado.

Vendo os presidentes francês e americano lado a lado, tão diferentes e depois de o segundo ter se mostrado ferino com o primeiro, a palavra “magnanimidade” pairou nos meus pensamentos. Apesar de a França acordar a diplomacia que dormia até agora, e de precisar dos Estados Unidos para inúmeras questões, como a luta contra o terrorismo, os conflitos no Oriente médio, Síria e Iraque, a oposição foi contra o convite de Emmanuel Macron a Donald Trump, evidentemente. Assim como se opôs à visita de Vladimir Putin, já que este havia tentado desestabilizar as eleições, aprovando de certa maneira a candidata do FN (Frente Nacional), partido da extrema direita. Mas a oposição hoje, na França, representa a velharia intolerante e dogmática que ainda resta e este país não quer mais. Não têm estatura para saber que não leva a nada recusar o diálogo, e que a história é sempre maior do que qualquer governo.

Precisamos de indivíduos magnânimos e livres que saibam virar a página e esquecer o que deve ser esquecido. Uma pessoa assim é a generosa, aquela que perdoa com facilidade, mostra-se indulgente com o próximo. Alguém que, a despeito de todos os riscos e perigos, age ou pensa desinteressadamente, com vistas a servir os outros, um país ou a encarnar um ideal. Afinal, o mundo é uma passagem. Ele muda, os humanos se transformam e, com tal rapidez que, mesmo as coisas que foram ditas ou as ideias que tivemos na semana passada, hoje podem não valer mais nada.

Mesmo certos jovens brasileiros parecem pequenos velhos

Isto me fez concluir que a grande tragédia (e atraso) da minha primeira pátria hoje se deve, talvez, justamente, à falta deste olhar e desta grandeza. Vemos no Brasil engajamentos congelados em tempos que não existem mais, ideologias de direita e esquerda nas quais apenas os cegos ou os idiotas persistem.

O drama que os brasileiros vivem hoje não está apenas na corrupção e podridão de certas instituições. Ele se deve sobretudo ao espírito de ortodoxia e à mesquinhez ideológica de todos os tipos, fantasiados de uma artificial generosidade, ainda que em direção dos menos favorecidos. Mesmo muitos jovens brasileiros, tanto de esquerda quanto de direita, parecem pequenos velhos imutáveis dentro dessa conformidade absoluta com as normas ou padrões doutrinários.

Os menos favorecidos não carecem de ideologias. Os mais favorecidos, tampouco. Todos necessitam apenas de países fortes. E países fortes precisam apenas de ética, determinação, educação, cultura, eficiência, inteligência e… magnanimidade.

Até a próxima que agora é hoje e viva o 14 de julho!

Rasto deixado pela Patrulha Francesa, na comemoração da festa nacional, dia 14 de julho de 2017. Foto (zoom 10x) tirada de minha janela, às 10h40.

 

Claude Monet, “Festa Nacional na Rua Montorgueil” (1878)

 

 

Como ‘pôr ordem’ na cultura?

O perigoso programa cultural da candidata Marine Le Pen, que quer pôr “ordem na Cultura”, foi revelado há pouco. Segundo ele, que é a imagem mesma do fascismo, “todos os criadores devem se submeter a uma ‘arte oficial’, permitida pelo Estado”. Já faz um tempo que os eleitos da Frente Nacional, partido francês da extrema-direita que concorre às eleições presidenciais no próximo domingo, dia 7, excluem certos livros das bibliotecas públicas, vandalizam obras de arte, negam subvenções às associações culturais que julgam “politizadas ou comunitárias” e também àquelas que acolhem migrantes, rejeitam a arte contemporânea e, entre várias outras coisas, expulsam jornalistas indesejados dos meetings do seu partido.

 

Olivier de Sagazan, artista performático que, no dia 29 de abril, permaneceu horas “latindo” como protesto na praça da Défense, em Paris.

Como não desenvolver temas políticos dentro da categoria “Cultura”, se um e outro são indissolúveis? Esta semana, mais de mil personalidades do mundo da cultura se reuniram na Filarmônica de Paris e mais de uma centena assinou um manifesto contra Marine Le Pen e a extrema direita. Archie Shepp, Renaud, Jeanne Moreau, Annette Messager, Valeria Bruni Tedeschi, Christian Boltanski, Cécile de France, Zazie, Karin Viard, Zabou Breitman, Laura Smet, Alexandre Chemetoff, Georges Didi-Huberman, Romane Bohringer, Catherine Frot, entre outros, denunciaram o caráter racista, antissemita, xenófobo e nacionalista de um programa cultural que defende uma identidade imutável, voltada para si mesma, e uma arte que deve servir a uma ideologia de Estado.

O vandalismo já é a prática dos políticos eleitos que representam o FN. O prefeito de Hayange pintou em azul a fonte do escultor Alain Mila porque a cor original não o agradava e ele não conseguia chamá-la de “arte”. Maréchal-Le Pen, a sobrinha de Marine Le Pen, recusa-se a subvencionar arte contemporânea. O prefeito de Luc-en-Provence tirou da programação o filme de Lucas Belvaux, “Chez nous”, simplesmente porque “o incomoda”. O diretor da Frente Nacional, candidato à prefeitura de Reims, fala abertamente sobre obras importantes, para ele “pseudo-obras que poderiam ser feitas por crianças ou animais com um pincel no rabo”. A senhora Neveux, candidata à prefeitura de Roche-sur-Yon denuncia “criadores decadentes”, à maneira dos nazistas e do que eles chamavam de “arte degenerada”, quando ela se refere a nomes reconhecidos da arte moderna. E o senhor Gollnisch, ex-vice-presidente do FN, designa “todos” os artistas contemporâneos como “gozadores grotescos que tiram dinheiro dos franceses”, dizendo que gostaria que cedessem o lugar aos que “ele julga autênticos, talentosos e modernos”.

Os eleitos do Front National excluem certos livros das bibliotecas públicas, tiram as subvenções de associações culturais julgadas “politizadas ou comunitárias” e também aquelas que acolhem migrantes, expulsam jornalistas indesejados dos meetings do seu partido. Exprimem desprezo por cineastas, autores literários, artistas plásticos, intelectuais, universitários e jornalistas que não entendem ou com os quais não concordam.

Google de Estado

Marine Le Pen no meeting de Saint-Raphael, dia 15 de março. No cartaz: “Recolocar a França em ordem, em 5 anos”. REUTERS/Jean-Paul Pelissier

E não é tudo. Na resposta feita por um representante do FN a uma organização do setor cultural, apresentou-se um projeto estruturado e metódico: a criação de um motor de procura nacional, uma espécie de “Google de Estado”(sic), cujo uso seria obrigatório, substituindo-se ao Google, e cujos critérios de procura, hierarquizados e ordenados, seriam decididos pelo “ministério da cultura”.

Cereja sobre o bolo, Marine Le Pen quer instituir um “cartão profissional” para os artistas de todas as categorias. Ora, foi o regime de Vichy que criou, pela lei de 2 de outubro de 1940, um “cartão de identidade” para os profissionais do cinema, documento que devia ser renovado a cada três meses.

No campo audiovisual, a “ordem” de Marine Le Pen compreende uma sociedade de produção nacional financiada por doações públicas. O plano é criar um orçamento anual fixado pelo Estado a partir da “taxa cultural” que seria destinada apenas aos artistas com o tal do “cartão de identidade profissional”. O ministério da cultura possuiria uma “direção da cultura francesa no Exterior”!

Se se quer recriar uma “arte oficial”, deixar o Estado escolher os seus artistas, controlar a criação cultural e amordaçar a imprensa, a opção de voto para domingo está clara.

A cultura é a condição de acesso a um pensamento livre e crítico, fora do qual não existe real cidadania. É por isso que a liberdade absoluta de criação e expressão deve ser assegurada a todos os criadores, sem exceção. Até a próxima que agora é hoje e tomara possamos preservar a irreverência e a subversão da arte, condição e garantia de liberdade e democracia!

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