A aberração revisionista e cancelista chamada Marilene Felinto

Para Marilene Felinto – no texto de ontem, dia 6, com o título Complexo de ‘Negrinha’ na Folha de S. Paulo – “é importante que haja revisão e alteração da aberração racista chamada Monteiro Lobato”. Para mim, é importante que haja revisão e alteração da aberração revisionista e cancelista chamada Marilene Felinto, cujas ideias resultam da mistura do velho revisionismo histórico com a cultura contemporânea do cancelamento.

Tia Anastácia, personagem adorável do “Sítio do Pica-pau Amarelo” de Monteiro Lobato. Foi de suas mãos que surgiu a boneca Emília.

O revisionismo histórico, já conhecemos. Hoje está até mesmo no negacionismo. A cultura do cancelamento, importada dos Estados Unidos, consiste em anular, denunciar, boicotar, excluir do debate, do espaço público, profissional ou cultural, toda pessoa de hoje ou de ontem, julgada inaceitável por suas opiniões, por seu comportamento ou simplesmente por ser considerada “refratária à moral dos novos tempos”.

Trata-se de exercer uma vigilância (woke) para denunciar os crimes da “branquitude” (parafraseando “negritude”), sobretudo a heterossexual, capitalista e normativa. Mesmo que esses “crimes” tenham se dado no passado, em outras culturas e entendimentos da realidade.

Seu móbil: o ressentimento, a sede de vingança. Sua ponta de lança: as redes sociais. E, agora, também os jornais. Os cancelistas podem literalmente decretar a morte social de um indivíduo ou de uma instituição. A influência desses linchadores na imprensa, na cultura e no seio da universidade não para de crescer. É uma verdadeira praga, e como todas as pragas, injusta e peçonhenta.

Na cultura do cancelamento, não se trata apenas de denunciar as ações ou os argumentos de alguém, mas de impedir qualquer pessoa de defender o seu direito à liberdade de expressão. O objetivo não é somente obstruir a palavra contraditória, mas estimular cada um a ser agente desta mesma cultura do ostracismo. Quem não entrar nessa, será rapidamente designado como cúmplice. Assim, o medo impera.

O linchamento às vezes leva à morte

Nos Estados Unidos, a cultura do cancelamento faz e desfaz carreiras. Bret Weinstein, professor da Evergreen State (Washington), teve que renunciar ao cargo após uma campanha viral, apenas porque se opôs à organização do “dia sem brancos” na universidade. O linchamento às vezes leva à morte: Mike Adams, professor de criminologia da Universidade da Carolina do Norte, polemista com ideias “não politicamente corretas” (com as quais pode-se até mesmo não concordar) foi tão assediado e ameaçado no Twitter que acabou suicidando-se em julho passado.

O diretor do MoMA de São Francisco foi demitido em julho de 2020, porque disse que continuaria a comprar artistas brancos para não entrar em uma “discriminação inversa”. Esta expressão é agora proibida pelo discurso antirracista. O emérito conservador do Metropolitan Museum de Nova York precisou se desculpar por ter perguntado em seu Instagram: “Quantas grandes obras de arte foram perdidas por causa do desejo de jogar no lixo um passado que não se aprova?”

Na França, a cultura do cancelamento ganha cada vez mais espaço. A filósofa Sylviane Agacinski foi impedida de falar na faculdade de Bordeaux devido à sua oposição à RMA (reprodução medicamente assistida). O jornalista e escritor Mohamed Sifaoui foi banido injustamente da Sorbonne por “islamofobia” porque realiza enquetes sobre os islamistas do crime organizado. A apresentação da peça As Suplicantes de Ésquilo foi cancelada, acusada de retratar uma blackface* racista. Recentemente, Alexander Neef, diretor da Ópera de Paris, referindo-se aos balés cult de Nureyev, disse que “algumas obras vão, sem dúvida, desaparecer do repertório”, pela mesma razão.

Como no Brasil, aqui o título O Caso dos Dez Negrinhos de Agatha Christie desapareceu. O livro foi ridiculamente rebatizado como Eles eram Dez.  No mundo da música, alguns sugerem o recrutamento de músicos não mais por mérito, mas por cotas.

Quando os tribunais intervêm, às vezes corrigem certos excessos. A inventora do #Balancetonporc (o #MeToo francês) foi condenada em 2019 por difamar o homem que ela acusou de assédio. O tribunal decidiu que a moça “ultrapassara os limites permitidos da liberdade de expressão”. Muito bom, mas tarde demais. A vida do acusado já fora destruída.

Blackface: cartaz do espetáculo de menestrel do americano William H. West (1853 – 1902), em 1900.

Muitos professores se calam e se adaptam por receio de “desaparecer”. Alguns aderem ao “cancelismo” com entusiasmo: uma universitária de Massachusetts ficou “super orgulhosa” de retirar a Odisseia de Homero de seu programa de ensino. Outros sofrem. Uma jornalista do New York Times teve que provar aos seus superiores a equidade no número de negros, brancos, mulheres e homens que serviram como “fonte” em sua reportagem.

 “Fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer” (Roland Barthes)

O politicamente correto substituiu a antiga censura. Quer instaurar o pensamento único. É, de novo, o mesmo totalitarismo que torna o debate impossível. Céline, tanto quanto Monteiro Lobato, pode e deve ser lido sem qualquer alteração. Apenas com explicação. Em literatura não se toca! Só a educação nos permite distinguir o certo do errado.

Como escreveu J. Roberto Whitaker Penteado, autor de Os Filhos de Lobato (Ed. Globo), em matéria especial para o Estadão, há um ano, “não se deve censurar ou mexer em uma vírgula sequer dos mais de 50 livros e quase 100 traduções que Monteiro Lobato publicou, entre 1914 e 1948”. “Reescrever qualquer parte da obra dele”, diz o escritor, “seria como reformar Brasília, transformar a Asa Branca em Asa Negra ou fechar o abraço do Cristo Redentor.”

Leia Felinto, em 1998, quando escreve sobre Spielberg. Ela, que quer “revisão e alteração” da literatura da nossa infância, aparece apontando teorias de conspiração, em plena histeria antissemita.

Até a próxima, que agora é hoje e não temos nada a ver com a “não leitura de Monteiro Lobato” por Marilene Felinto, mas temos tudo a ver com a verdadeira luta contra TODOS os racismos!

Nota: *Blackface (rosto negro) refere-se à prática teatral de atores que se coloriam com carvão para representar personagens afro-americanos de forma exagerada, geralmente em espetáculos de menestréis norte-americanos.

Fim do diálogo?

Ando consternada com a queda de nível de alguns intelectuais e escritores brasileiros, antes respeitados. Não sei se pelo contato com o lodo das redes ou com as asneiras diárias que chovem do alto do governo, vejo pessoas, que julgava sensíveis por sua obra, despejarem ressentimentos, preconceitos e insultos ad hominem em discussões que deveriam ser impessoais.

Imagem: “Homem e Papagaio”, Cláudio Tozzi, 1969. Gravura.

Alguns que se destacavam por sua escrita literária ou na imprensa, não conseguem mais escrever. No Facebook, balbuciam palavras, engolem outras. Como perderam a capacidade de dialogar, rabiscam três vocábulos para dizer “discordo” ou copiam e colam preguiçosamente links de matérias saídas na imprensa (órgãos nem sempre imparciais), como se isso fosse uma resposta aos seus interlocutores. Talvez pensem que nas redes tudo é permitido, o rigor seja desnecessário.

Outros não fazem o mínimo esforço para verificar se as suas asserções são corretas, como, nos últimos dias, confundir “status internacional da Amazônia” com “zona internacional” ou “internacionalização”, coisas que nada têm a ver. A possibilidade de o presidente Macron pedir “status internacional” para a floresta se os governos (não só o do Brasil) desobedecerem as regras de preservação, é certíssimo. Este “status” permite que haja controle geral para a preservação da biodiversidade, um pouco como o Tratado da Antártica do qual o Brasil é membro, e que serve para a proteção da região.

Além disso, estas criaturas repetem o cúmulo da ignorância proferido pelo presidente brasileiro, de que a França “possui colônias”. Há quase um século que essas regiões são totalmente integradas ao Estado central francês, hoje fazem parte da União Europeia. São ultraperiféricas, ou seja, territórios da UE situados fora do continente europeu. Os habitantes das regiões ultraperiféricas são cidadãos franceses com todos os direitos e deveres inerentes. A história de cada região conta que eles nem sempre preferiram continuar como parte da França por motivos econômicos ou incapacidade militar, mas por compartilharem os mesmos valores republicanos e por sentirem orgulho de pertencer a este grande país.

As mesmas pessoas que não fazem esforço, também são capazes de estigmatizar ou caricaturar personalidades. Dizer, por exemplo que “o presidente Macron é da direita financeira” quando este político – pragmático, sem “ideologia de esquerda” ou “de direita”  –  sempre pertenceu (de maneira independente) ao partido socialista, foi ministro (independente) de um governo de esquerda, criou um partido (independente) e está efetuando uma reforma baseada sobretudo em projeto social. Reforma, aliás, que já diminuiu o desemprego a uma taxa jamais vista na história desta República. O preconceito substitui a verdade, porque a incultura impera.

Outros, ainda, usam a velha técnica de má-fé dos que nos governam. Ao responder, por exemplo, sobre a questão ambiental da Amazônia, falam do “incêndio da Notre Dame” ou da “poluição de Paris”. Esse tipo de perfídia que eu chamo de “paralelismo desonesto”, sempre usada tanto pelos petistas quanto pelos bolsonaristas, já não cola.

Jogar raciocínio no lixo, me entristece demais

Jogar raciocínio no lixo, cultivar a desinformação, influenciar errado as pessoas e criar mais ignorantes, toda essa irresponsabilidade me entristece demais.

Anteontem, dia 27, a coluna de jornal de um escritor e jornalista que sempre admirei na juventude, me consternou igualmente. Considero uma lástima que o correspondente francês em Paris de uma importante publicação brasileira denigra a França como jamais e “como um papagaio”, repetindo uma mistura de clichês e opiniões superficiais e infundadas. Agora usa argumentos, evidentemente, não apenas anti-Macron, como sobretudo anti-franceses, quase anti-republicanos.

A minha vontade foi pedir que ele tirasse o colete amarelo ou a máscara de black bloc antes de escrever mas, depois, lembrei que, com a idade em que está, creio que 93, certos sentimentos e ressentimentos –  apesar da sua enorme experiência e cultura – podem impedir uma reflexão objetiva, ponderada e, consequentemente, sábia.

Até a próxima, que agora é hoje e, por este motivo, talvez eu pare de escrever e me esconda do leitor, bem antes!