Dia do Holocausto: onde estava o presidente do Brasil?

Hoje, enquanto Emmanuel Macron rememorava o aniversário de 77 anos da libertação do campo de concentração e extermínio de Auschwitz-Birkenau pelas tropas soviéticas, com uma homenagem às vítimas do Holocausto no Arco do Triunfo, junto a ministros e sobreviventes, o primeiro ministro francês Jean Castex se encontrava em Auschwitz para um discurso pungente. A luta contra o antissemitismo faz parte dos valores republicanos. Onde estava o presidente do Brasil, país no qual o número de grupos neonazistas cresceu 270,6 % em três anos do seu governo permeado por discursos de ódio?

Cartaz encontrado em uma das avenidas de Florianópolis, Santa Catarina. É na região sul do Brasil que se encontra a maioria das células neonazistas.

O negacionismo histórico que contesta o massacre de judeus e outras minorias nos campos de concentração alemães durante a Segunda Guerra Mundial, aproxima-se do negacionismo científico que rejeita a gravidade da Covid-19, a importância das medidas e gestos barreira e a eficácia das vacinas. Isto, sem falar na teoria terraplanista, no ceticismo climático e outras aberrações dos que se recusam a admitir as evidências, o rigor e a objetividade da ciência.

Líderes populistas serviram para repercutir teorias mentirosas e promover especulações que, como o Holocausto, foram responsáveis por milhões de mortos. Donald Trump, Jair Bolsonaro, Boris Johnson e Daniel Ortega, só para citar alguns, se equiparam aos negacionistas históricos que “negam Auschwitz porque” – segundo Primo Levi (1919-1987), escritor e sobrevivente – “estão dispostos a refazê-lo”.

Três anos de sinais inequívocos

Em janeiro de 2020, o então secretário Especial da Cultura, Roberto Alvim, divulgou um vídeo com falas quase idênticas ao discurso de Joseph Goebbels. Copiou o ministro de propaganda da Alemanha nazista para divulgar o Prêmio Nacional das Artes, em cenário também parecido.

No mesmo ano, a mensagem com críticas à imprensa no Twitter, publicada pela Secom, aproximava-se de um slogan do nazismo, que agredia a memória de vítimas do Holocausto e ofendia a sensibilidade de sobreviventes. A expressão usada, “o trabalho liberta”, estava inscrita na entrada de Auschwitz.

Este episódio ocorreu poucos dias após o ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, comparar a quarentena gerada pelo novo coronavírus aos campos de concentração.

O filho 01 das rachadinhas e o secretário da falta de Cultura, divulgaram um vídeo com trechos de A lista de Schindler e a frase ignóbil: “Não é a primeira vez que pessoas são classificadas em ‘essenciais’ e ‘não essenciais’”.

Em maio de 2020, ex-companheiros de armas de Bolsonaro foram até o Palácio do Planalto saudar o mandatário estendendo o braço direito para o alto com uma variação de “Heil Hitler” por meio do grito “Bolsonaro somos nós”.

Também em maio, o atroz tomou um copo de leite puro, durante uma transmissão ao vivo em seu perfil no Facebook. O gesto foi associado, com razão, a uma prática de movimentos neonazistas americanos, que passaram a tomar leite branco como símbolo da supremacia branca. Vários asseclas o imitaram.

Ainda em maio, uma fiel militante e apoiadora do presidente passou a usar o sobrenome “Winter” para homenagear uma inglesa nazista, integrante de associação fascista. A brasileira organizou um grupo que manteve acampamento na Esplanada dos Ministérios, carregando tochas e vestindo-se de branco à maneira da Ku Klux Klan dos supremacistas brancos americanos.

A visita do atroz brasileiro ao Museu do Holocausto em Israel para agradar a colônia judaica, ocasião na qual afirmou que “o nazismo deveria ser perdoado”, deu ensejo a várias gafes e quiproquós.

Um blogueiro bolsonarista afirmou: “Omitir o uso da cloroquina é o mesmo que deixar judeus na dúvida entre chuveiro e câmara de gás”.

Entre inúmeros outros sinais inequívocos, houve a recepção calorosa em Brasília à deputada de extrema direita Beatrix von Storch, neta de Lutz Graf von Krosigk, ministro de Finanças do governo de Adolf Hitler, e de Nikolaus von Oldenburg, membro do Partido Nazista e da SA (força paramilitar de Hitler).

Onde estava o presidente do Brasil?

No dia 27 de janeiro de 1945, as tropas soviéticas libertaram o campo de concentração e extermínio de Auschwitz-Birkenau, na Polônia. Hoje, dia 27 de janeiro – enquanto, pela primeira vez na historia o presidente do parlamento israelense discursava no parlamento alemão em hebraico, diante do Sidur (livro de orações), presente de bar mitzvah de um menino que morreu no holocausto; momento em que leu com emoção o Kadish, peça central da liturgia judaica dedicada aos mortos – onde estava o atroz que nos governa?

No aniversário do Dia Mundial das Vítimas do Holocausto, massacre de mais de seis milhões de judeus europeus, além de três milhões de outras vítimas, onde estava o presidente populista do Brasil que já declarou “paixão pelo Estado de Israel” e, há alguns dias, homenageou a memória do canalha  negacionista de Virgínia, sujeito ligado a Bannon, o diabo?

Até a próxima, que agora é hoje!


Minha vacinação contra a gripe

No dia anterior, com o papel do SUS francês que me dá vacina grátis, fui à farmácia mais próxima. O farmacêutico de olhos verdes e unhas sujas, demorou 5 minutos digitando no computador para, finalmente, me indicar a cortina que escondia uma salinha apertada com a imitação da cadeira Louis Ghost de  Philippe Starck, pia, gel alcoólico e prateleiras abarrotadas de caixas de remédio. Sentei-me e esperei um pouco constrangida pois o braço do Luís Fantasma tinha três manchas de sangue. 

“Louis Ghost” (Luís Fantasma), poltrona de Philippe Starck.

O farmacêutico não conseguiu entrar. Tive que sair, para que ele mudasse a posição da poltrona mal colocada. Entrou, já com a injeção na mão, pronto para furar.

“O senhor não vai passar álcool no meu braço, antes de picar?”

“Não é necessário”, respondeu, enquanto procurava, e não achava, álcool e algodão com a mão que restava, equilibrando a agulha com a outra.

“Também não é necessário descartar o primeiro líquido da seringa para tirar o ar e lavar as mãos antes de me vacinar?”

Antes que ele dissesse qualquer coisa, pulei da cadeira fantasma, pedi o meu papel de volta, uma caixinha fechada de vacina e fui embora, deixando o rapaz de unhas sujas com os olhos verdes esbugalhados e a injeção na mão.

No Centro

Para não ter que pagar consulta ao médico, que também vacina, e arruinar mais ainda a já tão devastada Securité Sociale francesa, que reembolsa tudo, fui diretamente ao centro público de vacinação Covid. Pensei: “Se picam para uma coisa devem picar para outra.”

Engano meu. Só picam contra a gripe se puderem picar também, ao mesmo tempo, contra a Covid. Expliquei que já tenho dia marcado para a 3ª dose, não quero misturar vacinas por uma simples razão: se tiver efeito secundário, quero conhecer a culpada.

Considero o meu argumento muito lógico, porém a “alta autoridade da saúde” fala mais alto, o pessoal é obediente e recebi um “não”. Fui a outra farmácia.

Lá, disseram que não tinham licença para me vacinar com material de caixinha vinda de farmácia que não fosse deles. Também, como o meu papel já estava carimbado, eu não tinha mais direito a outra caixinha.

Não desisti. Alguns quarteirões mais à frente encontrei a chamada Farmácia dos Pireneus. Informaram-me da existência de Madame Hamimi, “enfermeira especializada com formação em vacina, que é ótima na picada” e poderia, sem problema, cumprir esta missão com qualquer caixinha. Exultei! Mas Madame só viria no dia seguinte.

Farmácia dos Pireneus

Peguei o elevador no dia seguinte, pensando: “Hamimi deve ser nome japonês. Ou será que é africano?” Fui à farmácia. Na entrada, cumprimentei o segurança vietnamita mal-encarado e fiquei na fila. No fundo, uma senhora idosa sentada em banquinho, gesticulava e falava alto. Farmacêuticos circulavam em torno dela, com remédios e papéis. O ambiente parecia agitado.

Chegou a minha vez. Dirigi-me ao balcão envidraçado e vi que, do meu lado direito, estava uma jovem senhora vestida como uma típica “bobô” (burguesa boêmia), com expressão de poucos amigos, soltando bufa de minuto em minuto, como é de hábito entre os parisienses. Perguntei se eu tinha tomado o seu lugar.

“Não. Estou aqui esperando em pé há meia hora para ser vacinada, e a conversa ali não acaba mais”, respondeu, bufando mais uma vez e apontando a idosa no final da sala.

De fato, a senhora de cabelos brancos exigia faturas em dobro, mudava o pedido, conversava sobre o tempo, contava do filho, queixava-se de dores, “alugava” o pessoal sem pena, como se a farmácia fosse dela e estivesse vazia. Na fila, os clientes impacientavam-se.

Eu vi tudo!

Quando a enfermeira, com seu sotaque característico e sua cabeleira avermelhada, chamou a bufante para ser vacinada perto da porta, em uma salinha sem cortina, percebi que Hamimi não é nome japonês. Segui as duas e fiquei esperando, enquanto ouvia o segurança gritar, gesticulando muito, com um grande pote na mão:

“Eu vi tudo! Foi aquele sujeito! Olha aqui, ele abriu a tampa e quebrou o lacre pra cheirar!”

Duas clientes entraram na conversa e Madame Hamimi parou de vacinar a senhora bobô, que esperava com a manga arregaçada:

“É isso mesmo! Faça o sujeito pagar o produto!”, exclamou.

O “sujeito” do qual todo mundo falava era um morador de rua, enorme e musculoso, que já se encontrava perto da saída quando o mirrado vietnamita, com a metade de sua altura, se aproximou gritando e agitando o pote na cara dele:

“Não pode fazer isso!!!”

“Não pode por quê? Abriu é só fechar de novo!” berrou o homem, partindo para cima do segurança.

Pensei que ia presenciar um pugilato, mas o pessoal da farmácia acudiu, o morador de rua foi embora e a enfermeira voltou ao braço da bufadora.

Quero o atestado com o lote

Chegou a minha vez. Madame Hamimi não tinha lavado as mãos, mas havia passado álcool, descartado o primeiro líquido da seringa para tirar o ar e não me causar uma embolia, e estava prestes a me picar quando a bobô emburrada voltou.

“Quero o atestado com o lote da minha vacina.”

“Não tem!”

“Tem sim. Exijo o lote!”

As duas começaram a brigar. Desta vez era eu que esperava com a manga arregaçada. A enfermeira brandia a minha injeção e explicava, gritando:

“Agora tudo é automático. O lote já foi por computador direto à Securité Sociale! A senhora está por fora!”

A jovem senhora – que a estas alturas, já descabelara-se e ficara vermelha por trás da máscara – rodou os tornozelos, jogou a echarpe para trás, quase nos atingindo, e foi embora.

Respirei fundo. Finalmente, estávamos tête-à-tête, Madame Hamimi e eu. Mas, no exato instante em que ela virou a cabeça para saudar a idosa de cabelos brancos que também saía, a agulha encontrou a minha carne e a furou de um só golpe:

“Au revoir, Madame Goldschmidt!”

Eu fui a única a ver onde tomei a vacina. Enquanto vestia o casaco e voltava ao balcão, massageando o meu pobre braço, Madame Hamimi já se encontrava atrás do vidro, ao smartphone vermelho, cor de sangue, falando em língua magrebina:

“Salam! Kayfa halok ? Men fadlek, ayna nahn ?”

“Por favor, Madame, preciso de máscaras.”

“Aqui estão, pode escolher a cor.” E, voltando ao celular, “Chokran, chokran!”

“Ah, tem pretas… não, prefiro cor-de-rosa. É mais fresco.”

“É mais fresco. Aqui está uma caixa de cor-de-rosa com 50, custa 4 euros.” E continuou: “La chokra ala wajib. Laá. Estou dizendo ‘laá’, OK? Laá! Beijinho!”

Vai querer as pretas?

Paguei enquanto ela se despedia do seu interlocutor. Já estava perto da porta quando lembrei que meu marido certamente não iria usar. De volta para trocar, vi o farmacêutico num canto assoando o nariz em lenço de papel e limpando as mãos no avental. Chegamos juntos ao balcão, mas ele foi logo dizendo que não podia me atender, pelo que dei graças a Deus.

Veio a Madame, expliquei a questão da cor e ela retrucou, emburrada:

“Claro que cor-de-rosa homem não usa! Vai querer as pretas?”

Para não criar caso, e como o celular dela já estava tocando de novo, eu disse que compraria, então, mais uma caixa de máscaras, desta vez azuis, o que fez Madame Hamimi sorrir pela primeira vez.

Saí da farmácia com as duas caixas na mão, pois aqui ninguém oferece um saquinho se você não pedir, e uma só esperança:

“Até a próxima que agora é hoje… será que seremos confinados novamente?”