Negacionismo às avessas

Assisti ao documentário O Sopro das Montanhas, sobre o artista e calígrafo japonês Akeji Sumiyoshi (1938-2018)  cuja vida, durante meio século, esteve em fusão absoluta com a natureza. Raras vezes um filme me emocionou tanto. Já faz quase uma semana, não paro de lembrar. E, no entanto, ainda há pretensiosos imbecis pensando que são os cientistas ocidentais os conhecedores e detentores dos mistérios e “verdades” do universo.

Nascido em Kyoto, Akeji foi criado por seu avô, que vivia no alto das montanhas de  Kuramayana, no vale do Himuro ao norte da antiga capital. Mestre em artes marciais e seguidor do xintoísmo, este lhe ensinou desde cedo as práticas xamânicas ancestrais e o introduziu ao manejo do sabre. Também o sensibilizou à arte do pincel e à importância do chá.

Durante a adolescência, Akeji peregrinou de santuários xintoístas a mosteiros budistas, o que lhe permitiu familiarizar-se com a farmacopeia tradicional. Logo depois, matriculou-se na Universidade de Kyoto para estudar direito e continuou seus estudos em química e ciências naturais na Universidade de Shimane.

Jovem diplomado, vivendo em sofisticado apartamento, Akeji ingressou em um “think tank” (grupo de experts) a pedido do então primeiro-ministro, Ichirô Hatoyama. Ao retornar de um período na Sorbonne, em Paris, deixou a política e se casou.

Aos 31 anos, com sua esposa Asako, Akeji Sumiyoshi decidiu morar em um refúgio na floresta no mesmo vale de Himuro, nas encostas do Monte Kuramayama de sua infância, cabana que se tornou seu eremitério por quase cinquenta anos.

 

Os espíritos da floresta

O cotidiano de Akeji era feito de orações para evocar os espíritos da floresta, rituais com o sabre, cerimônias do chá e colheitas. Sem telefone, Internet ou qualquer meio de comunicação, ele levava uma vida atemporal, dedicando-se à arte em constante diálogo com o seu entorno animal e vegetal. Uma vez ou outra recebiam visitas.

Em uma de suas raras entrevistas, disse: “Quando estou prestes a caligrafar, manipulo o papel antes de usá-lo de modo que ele faça barulho e minha alma penetre nele. Eu o venero, trato-o como se fosse um sabre. Tanto o Caminho da tinta quanto o Caminho do sabre, ambos precisam de movimento perpétuo em direção ao Infinito e retorno ao Centro.”

Seguindo o ritmo das estações (no Japão são 24, subdivididas em 72), o calígrafo, poeta, pintor e químico coletava sementes, frutos, flores, cascas e raízes. Extraía-lhes a matéria corante por dessecação, moagem, combustão ou fermentação, utilizando processos tradicionais. Como não tinha espaço na cabana, o seu ateliê era a floresta. A sua arte e vida desenvolviam-se em fusão absoluta com a natureza que jamais deixou de adorar.

Este personagem exercia uma fascinação tão grande que chegou a ser visitado por Jacques Lacan e pela família Matisse. O casal de cineastas franceses realizou o premiado documentário com muita dificuldade, Akeji não queria ser filmado. Conquistar a sua confiança levou mais de um ano e só se deu pela ajuda que Corentin Leconte e Mélanie Schaan prestaram quando Asako teve que ser hospitalizada em Kyoto.

Profundamente marcados por esse encontro, os jovens realizadores confessaram em entrevista, que o filme mudou a sua vida. Deixaram Paris para se estabelecer na natureza bretã. Contaram que foi extranatural testemunhar o vendaval que se levantava, invariavelmente, a cada vez que Akeji pegava no pincel ou orava à natureza. Depois de presenciar dezenas de vezes este fenômeno de sintonia com os espíritos da floresta,  o casal percebeu que não havia “coincidência” e deixou a tradição cartesiana para sempre.

“Quando estou prestes a caligrafar, manipulo o papel antes de usá-lo, de modo que ele faça barulho e minha alma penetre nele. Eu o venero, trato-o como se fosse um sabre. Tanto o Caminho da tinta quanto o Caminho do sabre, ambos precisam de movimento perpétuo em direção ao Infinito e retorno ao Centro.” (Foto Yutaka Sumiyoshi)

Negacionismo às avessas

Não conto tudo isso só porque me emociona. Conto também, porque li as imbecilidades escritas por alguém que antes eu julgava interessante por sua posição científica diante do negacionismo dos ignorantes da extrema-direita e a gestão criminosa da covid-19 no Brasil.

Hoje, a negacionista – tão extremista quanto os fundamentalistas evangélicos – é Natalia Pasternak. Negacionista de algumas experiências (não necessariamente científicas) da maior importância para a humanidade. Misturadora absurda de alhos com bugalhos que coloca na mesma panela astrologia, homeopatia, acupuntura, medicina tradicional chinesa, curas naturais, curas energéticas, dieta, paranormalidade, discos voadores, deuses astronautas, antroposofia, poder quântico e… psicanálise, “pseudociências e outros absurdos que não merecem ser levados a sério”, segundo ela. Como se a psicanálise, a homeopatia ou a medicina tradicional chinesa tivessem prentendido alguma vez terem sido “ciência”.

É preciso que alguém diga à essa bióloga pop-people-glamour, com seus preenchimentos labiais e bem depiladas sobrancelhas Nike, assim como ao outro pretensioso “culturocentrista”, cientificista, antropocentrista e etnocentrista que escreveu com ela esse desonesto, sensacionalista, arrogante, irresponsável, aliciante, comercial e apelativo Que bobagem!, que os seres humanos ainda estão muito longe de conhecer os mistérios e “verdades” do universo. Um pouco de modéstia, sabedoria e apuro oriental não lhes fariam mal.

Até a próxima, que agora é hoje e ciência não explica tudo. O nosso divino “artista do vento”, está aí para provar!

Dia do Holocausto: onde estava o presidente do Brasil?

Hoje, enquanto Emmanuel Macron rememorava o aniversário de 77 anos da libertação do campo de concentração e extermínio de Auschwitz-Birkenau pelas tropas soviéticas, com uma homenagem às vítimas do Holocausto no Arco do Triunfo, junto a ministros e sobreviventes, o primeiro ministro francês Jean Castex se encontrava em Auschwitz para um discurso pungente. A luta contra o antissemitismo faz parte dos valores republicanos. Onde estava o presidente do Brasil, país no qual o número de grupos neonazistas cresceu 270,6 % em três anos do seu governo permeado por discursos de ódio?

Cartaz encontrado em uma das avenidas de Florianópolis, Santa Catarina. É na região sul do Brasil que se encontra a maioria das células neonazistas.

O negacionismo histórico que contesta o massacre de judeus e outras minorias nos campos de concentração alemães durante a Segunda Guerra Mundial, aproxima-se do negacionismo científico que rejeita a gravidade da Covid-19, a importância das medidas e gestos barreira e a eficácia das vacinas. Isto, sem falar na teoria terraplanista, no ceticismo climático e outras aberrações dos que se recusam a admitir as evidências, o rigor e a objetividade da ciência.

Líderes populistas serviram para repercutir teorias mentirosas e promover especulações que, como o Holocausto, foram responsáveis por milhões de mortos. Donald Trump, Jair Bolsonaro, Boris Johnson e Daniel Ortega, só para citar alguns, se equiparam aos negacionistas históricos que “negam Auschwitz porque” – segundo Primo Levi (1919-1987), escritor e sobrevivente – “estão dispostos a refazê-lo”.

Três anos de sinais inequívocos

Em janeiro de 2020, o então secretário Especial da Cultura, Roberto Alvim, divulgou um vídeo com falas quase idênticas ao discurso de Joseph Goebbels. Copiou o ministro de propaganda da Alemanha nazista para divulgar o Prêmio Nacional das Artes, em cenário também parecido.

No mesmo ano, a mensagem com críticas à imprensa no Twitter, publicada pela Secom, aproximava-se de um slogan do nazismo, que agredia a memória de vítimas do Holocausto e ofendia a sensibilidade de sobreviventes. A expressão usada, “o trabalho liberta”, estava inscrita na entrada de Auschwitz.

Este episódio ocorreu poucos dias após o ex-ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, comparar a quarentena gerada pelo novo coronavírus aos campos de concentração.

O filho 01 das rachadinhas e o secretário da falta de Cultura, divulgaram um vídeo com trechos de A lista de Schindler e a frase ignóbil: “Não é a primeira vez que pessoas são classificadas em ‘essenciais’ e ‘não essenciais’”.

Em maio de 2020, ex-companheiros de armas de Bolsonaro foram até o Palácio do Planalto saudar o mandatário estendendo o braço direito para o alto com uma variação de “Heil Hitler” por meio do grito “Bolsonaro somos nós”.

Também em maio, o atroz tomou um copo de leite puro, durante uma transmissão ao vivo em seu perfil no Facebook. O gesto foi associado, com razão, a uma prática de movimentos neonazistas americanos, que passaram a tomar leite branco como símbolo da supremacia branca. Vários asseclas o imitaram.

Ainda em maio, uma fiel militante e apoiadora do presidente passou a usar o sobrenome “Winter” para homenagear uma inglesa nazista, integrante de associação fascista. A brasileira organizou um grupo que manteve acampamento na Esplanada dos Ministérios, carregando tochas e vestindo-se de branco à maneira da Ku Klux Klan dos supremacistas brancos americanos.

A visita do atroz brasileiro ao Museu do Holocausto em Israel para agradar a colônia judaica, ocasião na qual afirmou que “o nazismo deveria ser perdoado”, deu ensejo a várias gafes e quiproquós.

Um blogueiro bolsonarista afirmou: “Omitir o uso da cloroquina é o mesmo que deixar judeus na dúvida entre chuveiro e câmara de gás”.

Entre inúmeros outros sinais inequívocos, houve a recepção calorosa em Brasília à deputada de extrema direita Beatrix von Storch, neta de Lutz Graf von Krosigk, ministro de Finanças do governo de Adolf Hitler, e de Nikolaus von Oldenburg, membro do Partido Nazista e da SA (força paramilitar de Hitler).

Onde estava o presidente do Brasil?

No dia 27 de janeiro de 1945, as tropas soviéticas libertaram o campo de concentração e extermínio de Auschwitz-Birkenau, na Polônia. Hoje, dia 27 de janeiro – enquanto, pela primeira vez na historia o presidente do parlamento israelense discursava no parlamento alemão em hebraico, diante do Sidur (livro de orações), presente de bar mitzvah de um menino que morreu no holocausto; momento em que leu com emoção o Kadish, peça central da liturgia judaica dedicada aos mortos – onde estava o atroz que nos governa?

No aniversário do Dia Mundial das Vítimas do Holocausto, massacre de mais de seis milhões de judeus europeus, além de três milhões de outras vítimas, onde estava o presidente populista do Brasil que já declarou “paixão pelo Estado de Israel” e, há alguns dias, homenageou a memória do canalha  negacionista de Virgínia, sujeito ligado a Bannon, o diabo?

Até a próxima, que agora é hoje!