Antonio Dias e seus ricos jogos ilusionistas

Alusão, ilusão, dissonância e misticismo. Ao sair do figurativismo e das imagens políticas do início, que vimos há três anos  em “The World Goes Pop”, na Tate Modern (Londres), a arte de Antonio Dias, que nos deixou ontem, quarta-feira, aos 74 anos, é o resultado dessa soma.

Imagem:  Antonio Dias (1944-2018), “Sem título”, 1985.

Trata-se de uma arte que continua a representar mais uma das investidas da linguagem pictórica contemporânea aos limites estéticos paradoxalmente também criados pelo abstracionismo, informalismo, construtivismo e expressionismo. A obra de quase seis décadas de Dias tornou-se, com o passar do tempo, um “ataque” à crescente e atemorizante bola de neve que levava críticos, artistas e audiência a entender a arte de forma cada vez mais fechada, com expectativas absolutamente definidas em relação às “premissas” e sobretudo ao resultado da criação.

Não que os seus desenhos ou pinturas recorressem ao “terrorismo” ou à “guerrilha” de métodos não-formalistas. Ao contrário. A concepção do artista também baseava-se em opções plásticas, jogos visuais de efeito premeditado e recursos de requinte e bom gosto bastante amenos e convencionais. Sem dúvida, os privilégios do material que pesquisava e utilizava, como o papel artesanal do Nepal, aliados às vezes aos tons pastéis e tintas metálicas, mais a habilidade manual e a sofisticação plástica do artista só podiam confirmar esse lado formalista.

Alusões ao arcaico

Contudo, a riqueza da movimentação interna daqueles jogos, as relações mentais que os originavam e sobretudo a dissonância entre o que são (formal e materialmente), representam (na temática e nas alusões), ou levam o espectador a formar, é o que desvia definitivamente os trabalhos da sua aparente superficialidade, tornando-os realmente interessantes.

No início dos anos 1980, por exemplo, Antonio Dias fazia alusões ao arcaico e seus desenhos não raro assemelham-se a diagramas e plantas arquitetônicas de templos astecas de iniciação. Seus signos e símbolos sopram também o mistério, o esoterismo e a musicalidade de uma linguagem pré-colombiana que incorpora um espiritualismo muito mais afeito ao misticismo oriental do que às influências ocidentais. Como se os trabalhos fossem ao mesmo tempo uma destilação das memórias do tempo que o artista passou no Oriente, dos sentimentos autobiográficos, do conhecimento real e de ilações metafísicas ancestrais.

Jogos ilusionistas

Se, por um lado, portanto, havia sempre a alusão a um tema e ao material virtual que era o pergaminho do “registro”, da “indicação”, por outro, havia a sensibilidade, o ritualismo técnico, o uso de cor e o conceitualismo alimentados e aprimorados pelas experiências ocidentais. Antonio Dias brincava com a virtualidade do espaço e da matéria, compondo jogos ilusionistas em que tanto um como outro adquiriam constantemente novas conotações.

A partir daí, até o final, sempre estabeleceu-se em suas obras uma ambiguidade que interrompe a linearidade de qualquer leitura. Os recortes, sobreposições, apagamentos, máscaras, etc., fogem muitas vezes às suas próprias características, tornando-se contingências da dualidade. Negativo/positivo, matéria/transparência, finito/infinito, textura/opacidade, não são mais do que qualidades circunstanciais, agindo como eficientes armadilhas para os olhos. Armadilhas que levam o espectador a formar as próprias alternativas visuais, consciente, entretanto, de que elas não tinham para o autor apenas o objetivo da pura vida das formas ou da pura vida dos sentimentos e do raciocínio, e sim de uma controlada dissonância…

Até a próxima, que agora é hoje e descanse em paz, Antonio Dias!

Antonio Dias com o trabalho “Nota Sobre a Morte Imprevista”, 1964. Obra presente na mostra “The World Goes Pop”, na Tate Modern, em 2015.

 

Antonio Dias, “Nota Sobre a Morte Imprevista”, 1964. Obra presente na mostra “The World Goes Pop”, na Tate Modern, em 2015.

 

 

Uma heroína de todos os tempos

Hoje a minha heroína completa 113 anos. Não fez lifting, não pôs botox e não ganhou nenhuma ruga!

 

No dia 2 de fevereiro de 1905, a pequena criada bretã apareceu pela primeira vez na revista de meninas bem-comportadas, “La Semaine de Suzette”. Personagem que nasceu, às pressas, das mãos do ilustrador Émile-Joseph Porphyre Pinchon apenas para encher uma página em branco e se tornou uma das mais famosas da França!

Pioneira da mulher ativa e moderna

Nariz em forma de ervilha, tamancos nos pés e guarda-chuva embaixo do braço, lá foi a ingênua e provinciana Becassine, tal qual “Candide” de Voltaire, viver a sua aventura no grande mundo. Hoje existem vários estudos sobre ela. O fato é que Becassine é a pioneira da mulher ativa e moderna, aquela que multiplica profissões, pratica esportes, faz fotografia, pilota automóveis, trens, aviões e milita nos programas humanitários. Inscreveu-se até mesmo na Cruz-Vermelha!

Para as suas comemorações, costureiros a vestem e desvestem, os Correios editam selos, álbuns são lançados. Enfim, tamanha celebridade poderia lhe subir à cabeça. Mas quem a conhece, sabe que não é do tipo que vai andar de nariz empinado.

Até a próxima, que agora é hoje e a minha heroína é uma “feminista natural” sem perturbações de ordem psicológica e emocional, um modelo a seguir… Feliz aniversário Bécassine!


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