Carta aberta à Associação Brasileira de Críticos de Arte

No final do ano passado recebi a proposta de renovação do Prêmio ABCA. Nos termos do documento a ser votado, encontrava-se esta pérola de “problema detectado”: a nomeação das categorias com nomes de críticos/as deveria “sanar algo muito importante: a presença majoritária de nomes de homens brancos nas nomenclaturas dos prêmios, à exceção de Mário de Andrade (que era negro) e Maria Eugênia Franco (que foi mulher).” Quando li essa “caricatura woke” e percebi que a nossa querida e respeitada Associação também começava a ficar subjugada pela imbecilidade das cotas e a ser pega na armadilha da paranoia universitária, resolvi me abster. O fato é que, em março de 2021, duas dessas universitárias associadas haviam apresentado uma proposta de ação institucional intitulada “Pluralidade Crítica”, com o objetivo de “contribuir para o enfrentamento à discriminação étnica, racial, geopolítica, de classe e gênero que (segundo elas) permeia as estruturas institucionais brasileiras”, discriminação da qual, até hoje, até conhecer as provas, ninguém nunca ouviu falar. Depois, imaginei que a chamada Comissão de Pluralidade Crítica, vinha se reunindo para “pensar propostas”. Porém, não passava pela minha cabeça que a sua verdadeira intenção, talvez, fosse relativizar o poder da presidência e direção da ABCA, criando uma espécie de “poder paralelo”, sob aura de “democracia”. E, no entanto, acabo de descobrir: a tal comissão constitui estratégia de domínio e controle, marketing e propaganda ideológica.

Para a arte, é muito grave. Arte é liberdade.


Se não, vejamos: ontem, todos os associados receberam, a pedido da soi-disant Comissão de Pluralidade da Associação, a ata de sua última reunião. Segundo a CPA, a sua pauta “tratou do fechamento de suas sugestões para o prêmio ABCA e seria muito importante (sic) uma divulgação rápida, uma vez que está próxima a data limite para as indicações gerais.”

Ora, os 15 membros do “poder paralelo” ou, se preferirmos, da “milícia de prescritores ideológicos”, revelam abertamente seus votos, só que no formato legitimado pela palavra “sugestões”. Ou seja, fazem descarada propaganda eleitoreira, sob o disfarce de “ata”.

Atente para o escândalo (e se possível ria, para não chorar): dos 15 membros da “Comissão de Pluralidade Crítica”, 8 foram indicados aos prêmios. Ou seja, foram “autoindicados”. Se não acredita no que leu, repito: mais da metade da Comissão sugeriu-se, a si mesma, para os prêmios mais importantes, enviando seus próprios nomes aos associados, para que estes, no caso de não saberem em quem votar, usem a sugestão. Entendo que os eleitoreiros estejam preocupados com uma “divulgação rápida” e, agora, aliviados que a votação foi prorrogada, certamente a seu próprio pedido. Publicidade curta não é eficiente.

Mas o escândalo não para aí. Para os colegas que não têm a minha paciência de contar, os números, mais ou menos exatos (esqueci, poderia ter consultado o ChatGPT), são estes:

14 prêmios – 41 pessoas indicadas individualmente, em grupos ou instituições – 11 brancos – 30 negros – 11 Instituições e/ou exposições com parti pris ideológico, identitarista, racialista ou outro – 1 Instituição sem partis pris.

Número de indicados, que foram justificados por portarem as seguintes questões (acumuladas ou não):

Decoloniais – 20
Feministas/racialistas – 19
Identitaristas – 18
Africanas, afro-brasileiras/ameríndias/étnicas – 14
De gênero/LGBTQIA + – 6
Sustentabilidade/diversidade/ambientalismo/ativismo – 5
Apenas artísticas/sem ideologia – 4

Como se vê no documento enviado (que não publicarei aqui, evidentemente), cumpre-se o intuito de “tornar a premiação (e a produção crítica) mais inclusiva”. Na teoria. Na prática, o resultado é sempre o mesmo: o gênero torna-se mais importante do que o corpo, a raça mais relevante do que o ser humano, o universal dá lugar ao particular precário, a magnanimidade cede o espaço ao mesquinho, a vitimização decolonial fica acima da política de convergência e a “inclusão” torna-se mais necessária do que valor cultural e qualidade estética.

Sem discutir o valor cultural e a qualidade estética destes “conselhos” (que, provavelmente, poucos pediram), devemos lembrar, por outro lado, que a “denúncia de discriminação” e a “fúria inclusiva”, podem ser formas inversas e perversas de marketing. Permitem autopromoção, como acabamos de ver, mas também colocam sob holofotes valores duvidosos, trabalhos considerados ruins (porque são ruins mesmo, e não necessariamente de uma ótica colonialista, branca, patriarcal ou eurocêntrica) ou que não são vistos e percebidos por si próprios (porque de fato não têm nada para chamar a atenção, nem mesmo um programa estético) e que por estas razões não vendem e não “se vendem”.

Uma vez que, segundo o regulamento, o voto é secreto, esse processo de influência nada mais é senão um método coercitivo. Lembra as antigas (e já condenadas) publicidades que certos indicados faziam de si, pedindo votos aos colegas por e-mail. Deveria ser terminantemente proibido aos membros ou grupo de membros da Associação Brasileira de Críticos de Arte, dar aos associados qualquer “instrução de voto”, por mais que caiba a uma comissão, a “construção de uma política plural”. Não é por imoralidade que se constrói moralidade.

Com todo respeito à presidente da Associação Brasileira de Críticos de Arte, cuja probidade e capacidade são inquestionáveis, e cujo dever democrático certamente a obriga a acolher esta “aberração infiltrada”, peço, urgentemente, a convocação da eminente Comissão de ética para se manifestar sobre essa disfunção que, na minha opinião, fere os nossos valores e a nossa ética.


APELO URGENTE AO MUNDO BRASILEIRO DA ARTE 

É a primeira vez na história que uma religião destruidora da liberdade nasce nas universidades. E não só no Brasil. Seu objetivo é “desconstruir” toda a herança cultural e científica de um Ocidente acusado sistematicamente de ser machista, racista e colonialista. A ABCA abre as suas portas para a instauração de uma outra ditadura. Aquela que se faz, em nome do “bem” e da “justiça social”, mas beira o fanatismo fundamentalista. E sempre esconde uma grande indigência e mediocridade intelectual. Acomete os universitários que não tem nenhuma capacidade de produzir e oferecer à sociedade algum valor intelectual autêntico e original.

Críticos de arte e historiadores, pesquisam eventos passados de povos, países, períodos e indivíduos. Não podem compactuar com essas tentativas de deformação da realidade, com a pobreza dessas óticas alimentadas por ressentimento e ódio do “politicamente correto” decolonial, identitarista, etnicista, racialista; também do ideologismo geopolítico, de gênero, classe, tantos outros. Não devem aceitar que pretensos intelectuais queiram mudar a história à sua conveniência, usar critérios externos à arte, julgando textos e obras, às vezes de há séculos, com olhos de hoje, atuando como revisionistas e cancelistas.

Até a próxima, que agora é hoje, e peço aos queridos colegas de todos os Estados brasileiros: nunca esqueçam a palavra “liberdade”, nunca hesitem em denunciar estratégias de poder e propaganda, e sempre ignorem quaisquer diretivas! Podemos e devemos indicar quem quisermos e, sobretudo, penso eu, jamais votar em críticos de arte que se “autoindicam”.

7 comentários em “Carta aberta à Associação Brasileira de Críticos de Arte

  1. Querida Sheila, Eu já havia escrito “ Maravilha”!!! Ao seu texto anterior. Porque concordo com ele em tudo. Acabo de chegar a Madrid. Estou em viagem de trabalho e uma parte lazer. Volto dia 29, mas já passei seu texto ao grupo da direção e te agradeço por sua visão crítica e sempre corajosa. Eu acho que praticamente mais nada escapa no mundo hoje desses enfrentamentos. Creio que você compreendeu bem as questões todas envolvidas. O cenário é complexo. São forças em jogo, sem dúvida com viés ideológico e assim professado pelo grupo. Trata- se de afirmação mesmo. E isso é assim exposto. Vou ver a possibilidade de atuação do comitê de ética, como você sugeriu. Porque essa conversa se faz necessária, a ponto de ter chamado sua atenção e de outra associada que também questionou as indicações. Mas nao sei como será recebido no âmbito “ plural” da abca e do mundo de hoje. Como você recebeu e-mails , deves ter acompanhado que para evitar pulverizações de nomes( pois inicialmente enviamos apenas os questionários para respostas individuais), Lisbeth E Maria Amélia, com suas experiências anteriores, sugeriram que se recomendassem reuniões, que as pessoas conversassem entre si, que elaborassem relações de nomes , atividades , etc relevantes. Ou seja, acabei acatando mas fiquei um pouco receosa. Até o momento, que eu saiba, outros não se mobilizaram dessa forma. Como dito no e-mail, os votos de indicações sao individuais e segretos. Mas assim como fiquei receosa em sugerir reuniões de debate , por outro lado poderia ser importante uma visão maior do que aconteceu em 2022, antes das indicações. Mas incorre nos problemas que você apontou. Certamente o melhor caminho é seguir o que havíamos feito no início. Obrigada por suas elogiosas e respeitosas palavras dirigidas a mim e à ABCA. Muito grata. Forte abraço Sandra makowiecky

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  2. Il n’y a pas qu’au Brésil que le phénomène woke ronge la société. De la presse à l’enseignement, de l’art à l’entreprise, la pensée woke et son excroissance, la cancel culture, s’imposent partout dans le monde. Lorsqu’il devient “dictature intellectuelle et morale”, le wokisme infecte les rapports humains et sociaux, lézarde le fonctionnement de la démocratie, fracture davantage une société déjà copieusement fragmentée. Et au final, disqualifie l’objet même qu’il est censé poursuivre : révéler et réparer les oppressions subies par les minorités, faire profiter la civilisation des trésors que recensent la singularité et la communauté. Il faut réagir à cette plaie – Merci Sheila ! Sinon, nous allons droit à l’effondrement de la civilisation !

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  3. Sandra querida, muito obrigada por sua mensagem. Esclarece muita coisa. E como lhe entendo! Fico grata que você amplie o debate, devemos resistir e avançar. No Brasil e no mundo.

    Não acredito em âmbito “plural” que seja “específico” como este da ABCA e da atualidade. O pluralismo e a diversidade sempre foram universais. Entendi a questão da evitação de pulverizações de nomes, muito justamente levantados por Lisbeth e Maria Amélia, com suas experiências. Creio, entretanto, que essas boas intenções foram desviadas e aproveitadas, em uma “manipulação” inaceitável. Você teve toda razão de ficar receosa.

    Espero, sinceramente, que outros colegas se mobilizem. Deixou de ser uma questão apenas associativa, para constituir um verdadeiro problema cultural e de sociedade. Concordo com você, penso igualmente que o melhor caminho é seguir o que havia sido feito no início. Para salvaguardar a liberdade e a democracia.

    Boa e profícua estadia em Madrid, e toda minha admiração por seu trabalho e abertura crítica e intelectual! Forte abraço 💐

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  4. Querida Sheila, Certamente pensei em tudo que vc escreveu. Eu li ontem cedo, enviei para a diretoria toda, mas tsmbem para Maria Amélia e Lisbeth. Pois a sugestão de fazer reuniões, envio de sugestões para não pulverizar muito as indicações, vieram delas. Eu prefiro o simples questionário individual, como havia enviado antes e cada qual fosse se informando. A comissão pluralidade viu nisso uma oportunidade.

    Mas as indicações auto referentes foram desastrosas. Ocasionaram essa percepção com a qual concordo. Nada está fácil. Li seu colega francês no seu Facebook, em sua publicação.

    A comissão quer mesmo marcar posição. Mas as coisas não estão pacíficas. Estou em viagem fora do brasil, espanha, cheguei ontem e isso tem dificultado minha comunicação. Estava entre aeroportos, aluguel de carro, instalar em hotel. Vamos ver o que fazer. Comunico que existem também muitos grandes desconfortos na própria abca, mas tudo isso faz parte do processo de construção coletiva. Para a comissão existe um objetivo forte. Existe uma União que outros não demonstram. São aguerridos. . Por outro lado, muitos entendem que o processo de abertura da abca já foi deflagrado e que deveria ser absorvido com mais naturalidade. De outros interlocutores, recebo a crítica calcada no exagero como estão tomando algumas posições nesses temas. Que possuem viés ideológico que as vezes paralisa qualquer aceno em contrário. Não existe a possibilidade de abrir debate, porque é bem mais simples defender a inclusão de toda forma do que colocar críticas, como você corajosamente fez. Eu concordo com muitos dos seus argumentos, senao todos. Os novos tempos de fato não estão facilitando.

    Não tenho condições de pensar adiante hoje, mas vou amadurecer ideias. Por fim, como está dito tanto por você., como no e-mail da abca, o voto é segredo e individual. Assim, resta a questão de indicações que alguns consideram inadequadas. Por certo, outros já se manifestaram. E conversar com o comitê de ética. Um Abraço, boa noite.

    Obrigada por sua mensagem. Beijo

    Em sex., 17 de mar. de 2023 às 08:52, Sandra Makowiecky < sandra.makowiecky@gmail.com> escreveu:

    Querida Sheila, > Eu já havia escrito “ Maravilha”!!! Ao seu texto anterior. Porque concordo > com ele em tudo. > Acabo de chegar a Madrid. Estou em viagem de trabalho e uma parte lazer. > Volto dia 29, mas já passei seu texto ao grupo da direção e te agradeço > por sua visão crítica e sempre corajosa. Eu acho que praticamente mais nada > escapa no mundo hoje desses enfrentamentos. > Creio que você compreendeu bem as questões todas envolvidas. O cenário é > complexo. São forças em jogo, sem dúvida com viés ideológico e assim > professado pelo grupo. Trata- se de afirmação mesmo. E isso é assim > exposto. > Vou ver a possibilidade de atuação do comitê de ética, como você sugeriu. > Porque essa conversa se faz necessária, a ponto de ter chamado sua atenção > e de outra associada que também questionou as indicações. Mas nao sei como > será recebido no âmbito “ plural” da abca e do mundo de hoje. > Como você recebeu e-mails , deves ter acompanhado que para evitar > pulverizações de nomes( pois inicialmente enviamos apenas os > questionários para respostas individuais), Lisbeth E Maria Amélia, com > suas experiências anteriores, sugeriram que se recomendassem reuniões, que > as pessoas conversassem entre si, que elaborassem relações de nomes , > atividades , etc relevantes. Ou seja, acabei acatando mas fiquei um pouco > receosa. > Até o momento, que eu saiba, outros não se mobilizaram dessa forma. Como > dito no e-mail, os votos de indicações sao individuais e segretos. Mas > assim como fiquei receosa em sugerir reuniões de debate , por outro lado > poderia ser importante uma visão maior do que aconteceu em 2022, antes das > indicações. Mas incorre nos problemas que você apontou. Certamente o melhor > caminho é seguir o que havíamos feito no início. > Obrigada por suas elogiosas e respeitosas palavras dirigidas a mim e à > ABCA. > Muito grata. > Forte abraço > Sandra makowiecky > > > > > Em qui., 16 de mar. de 2023 às 22:54, Arte, aqui e agora <

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  5. Excelente, mais uma vez, Sheila.
    Mais um artigo de resistência (sem “aspas”) e sem o ranço do ativismo.

    Um libelo contra a decomposição que vem sofrendo as instituições invadidas por essa inversão empreendida sobre o juízo da qualidade do objeto (arte).

    Chama-me a atenção, especialmente no caso “de gênero”, a defesa intransigente dessas pessoas, para comporem a Comissão de Seleção e/ou para serem premiadas, segundo suas preferências sexuais.

    E ainda lembro com estranheza que, exatamente no universo da Arte e da Crítica, pessoas oriundas das mais diversas orientações sexuais sempre foram muito acolhidas e respeitadas pela qualidade de sua obra no mercado de arte, na produção crítica/teórica e nas Instituições.
    Este meio sempre repeliu o filtro de censura a qualquer orientação sexual de críticos e artistas que manifestavam abertamente suas preferências.

    Incrível como esse ranço, ungido por um lobby distorcido, quando entra em contato com a nossa consciência, logo surge o gosto acre, o cheiro desagradável e a penúria da substância.

    Continuo a agradecer a você, Sheila, por ser porta-voz dessa legítima resistência, a qual não discrimina aqueles que, por ventura, não estejam contemplados numa sigla de conveniência.

    Beijo do
    Dante Velloni

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  6. Muito obrigada, professor, por este comentário justo e bem pensado. Concordo plenamente. Jamais em minha atuação institucional (quatro bienais, duas, como membro do Conselho de Arte, e mais duas como curadora-geral) e em meu trabalho como crítica de arte – em constante contato com o mundo artístico brasileiro e internacional – jamais vi qualquer discriminação étnica, racial, sexual, social, geopolítica ou outra. Jamais testemunhei qualquer manifestação ou imposição colonial ou colonialista. Em plena “mundialização”, como poderia?

    Ao contrário, em várias décadas, presenciei apenas convergência e inclusão. O mundo da Crítica e da Arte em geral é, e sempre foi, o da liberdade justamente. Como você diz, “sempre repeliu o filtro da censura”. Usando o seu termo “lobby”, que é perfeito, Decolonial & Cia são puras invenções para que se possa formar um grupo de pressão em torno delas, controlando e dominando o mundo da arte, mercado inclusive. Basta olhar. Salvo raras exceções, a enxurrada de lixo defendida pelo woke, é constrangedora. Se não fosse por esse lobby vergonhoso, simplesmente não existiria. Não por discriminação. Apenas porque é muito ruim mesmo. Que bom que formamos uma resistência (sem aspas) contra a mediocridade deste ativismo! Beijo

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