Não é todo mundo que tem o privilégio de acordar de um “pesadelo metafísico”. Eu tive. Acordei esta manhã com um medo desgraçado. Sonhei que estava numa praça deserta de Giorgio De Chirico, cercada de personagens estranhos e alcachofras gigantes. E, ainda por cima, o antipático pintor estava lá, em carne e osso, com aquele jeito arrogante e olhar desconfiado. Enquanto muitos, na manhã deste sábado, dia 27 de novembro, certamente assobiavam ou cantavam no chuveiro, pensando no Natal que se aproxima, eu me perguntava: será que as praças vazias pintadas por De Chirico prenunciam a arquitetura totalitária? O artista acompanhou o “retorno à ordem” de Mussolini?

Lembrei de uma cena que se passou nos anos 1970. O pintor concedeu uma entrevista a um jornalista francês. Este último, acreditando dizer a coisa certa e fazer um elogio, lembrou ao velho mestre que em 1911 as suas estranhas telas anunciavam a pintura surrealista, com dez anos de antecedência. “Sim, mas estou pouco ligando”, respondeu Giorgio De Chirico (1888-1978) .
Claro, a arte moderna nunca foi a sua “cup of tea”, e muito menos o seu combate. Mas este desprezo era recíproco. Em 1928, André Breton, justamente o mandachuva dos surrealistas, excomungou De Chirico por ter cometido um crime: voltar ao passado, abandonando os primeiros trabalhos, de 1911 a 1918. Ficaram para trás os espaços vazios e perturbadores, de onde emergia uma locomotiva; desapareceram para sempre aqueles enigmáticos manequins desarticulados com rostos sem olhar, que estavam no meu pesadelo. Adeus, pintura “metafísica”! De Chirico deixou de lado a revolução artística para pintar, com afinco e capricho, gladiadores de coxas cor-de-rosa e cavalos brancos galopando à beira-mar sob as nuvens. Virou neoclássico.
Percebi que algo imenso acontecia em mim
Acontece que o Giorgio De Chirico neoclássico, detestado por Breton, nascera de uma iluminação em Roma, em 1919. Em suas memórias, ele conta que fora motivado pela visão da famosa pintura, Amor sacro e amor profano, também chamada Vênus e a donzela. Escreve: “Foi na Galeria Borghese em Roma que, uma manhã, diante da tela de Ticiano, tive a revelação do que é uma grande pintura: na sala vi aparecerem línguas de fogo enquanto que, lá fora, através do espaço do céu totalmente claro acima da cidade, ecoava um ruído solene. […] percebi que algo imenso acontecia em mim.”

A partir deste momento, De Chirico se toma por – nada mais nada menos do que – Ticiano. Torna-se o “Ticiano Vecellio do século 20″. Cresce o seu desdém pela “grande bacanal da pintura moderna”, pela “ditadura dos marchands”, pelos julgamentos peremptórios dos “críticos mercenários” e pelo “esnobismo e estupidez” dos colecionadores americanos.
Mal-humorado e reacionário ele era
De Chirico, até que podia ter certa razão, porém mal-humorado e reacionário ele era. Hoje, ao fazer uma pesquisa para tentar responder à minha pergunta desta manhã, vi que, em 1983, durante a primeira retrospectiva consagrada à sua obra no Centro Pompidou, o crítico e historiador Pierre Cabanne (1921-2007), especialista de Picasso e autor da famosa entrevista com Marcel Duchamp, chegou a acusá-lo de ter sido “trombeteiro de Mussolini”.
Entre a pintura de De Chirico e o fascismo, exprimir-se-ia a mesma obsessão, a de um “retorno à ordem”. “Os atletas nus e musculosos, o gosto pelo greco-romano, a nostalgia pelo Renascimento, a obediência aos mestres e o culto à ‘bela obra’ correspondem perfeitamente às ambições de Mussolini”, escreveu o crítico. Além disso, De Chirico teria sido um dos protegidos de Margharita Sarfatti, “jewish mother fascista”, amante do Duce, crítica de arte e sacerdotisa do Novecento, movimento artístico tão passadista quanto nacionalista.
Certamente. Porém, em sua acusação, Pierre Cabanne deixou de lado um pequeno pormenor: De Chirico deixou a Itália em 1925 para se estabelecer na França. Foi quando, na Bienal de Veneza do mesmo ano, a imprensa já começava a ignorar o seu trabalho. E o pintor não parece ter guardado boas lembranças do período Mussolini, pois, em seus escritos rememora com horror “a chamada revolução fascista” de 1922, quando a milícia dos “camicie nere” (camisas negras), essa canalha formada por jovens, irrompia nos cinemas para forçar o público a ouvir hinos militares em pé. De Chirico só voltou ao seu país, depois da guerra.
É possível que Pierre Cabanne tenha errado ao chamar De Chirico de “trombeteiro de Mussolini”. No entanto, penso que ele se questionou corretamente sobre um ponto. Nem precisou estar debaixo do chuveiro para se perguntar, como eu esta manhã: “as cidades imóveis de pedra e mármore da ‘pintura metafísica’ não anunciam o urbanismo totalitário, a arquitetura massiva, as praças e perspectivas desproporcionais da estética fascista?”
Até a próxima, que agora é hoje e é verdade que ao ver as arcadas monumentais do Palácio das Artes de Milão (1933) ou o imponente cubo do Palazzo della Civiltà Italiana, em Roma (1940), pode-se jurar que os seus arquitetos se inspiraram em uma das telas do misantropo pintor. Assombradas pelo vazio e pela ausência, assombram até mesmo os nossos sonhos!

Imagem destacada no alto: retrato de Giorgio De Chirico, 1936.• Créditos : Carl Van Vechten / Donaldson Collection – Getty