Deixa tirar uma foto?

Tive que ir ao Marais e, como uma conhecida recém-chegada do Brasil não estava longe e me havia convidado para um café, sugeri aquele bairro. Fazia frio, mas havia sol e ela me esperava já instalada e bem agasalhada, num terraço. Eu ainda atravessava a rua, quando vi que sacou rapidamente o telefone da bolsa e começou a me fotografar. Achei estranho, mas, como não sou nenhuma celebridade, imaginei que deve fazer isso com todos seus conhecidos.


Aproximei-me, ela se levantou e, na hora em que pensei que ia me dar um abraço, tirou outra foto. Depois, em vez de me cumprimentar da maneira como os seres humanos normalmente fazem ao se encontrar, disse:

“Deixa tirar uma foto?”

Não tive tempo de responder, nem me sentar. Ela deu um salto para trás procurando melhor ângulo. Porém, ao ver um garçom servindo ao lado, seus olhos brilharam e mudou de ideia. Puxou-o pela manga, colocou o celular na mão dele, a que estava sem bandeja, e ordenou:

“Tirez una fotô.”

Mais uma, mais uma!

Aí, sim, aproximou-se de mim e passou o braço por cima do meu ombro. O moço teve a infelicidade de acionar o disparador só uma vez. Então, ela gesticulou nervosamente como quem exclama “mais uma, mais uma!”

No mesmo instante em que o telefone lhe foi devolvido, ela dirigiu-se com tanta sede ao ícone “Fotos” para ver o resultado, que esqueceu de agradecer ao garçom. E, nem bem o coitado e sua bandeja haviam se afastado, recomeçou a metralhar.

Penso que, naquele momento, o seu aparelho deve ter ficado com um instantâneo das minhas costas. Foi quando voltei a atravessar a rua, para ir embora.

Até a próxima, que agora é hoje!


Depois do “conto sobre a vida contemporânea”, como um amigo classificou este texto, traduzo um pequeno artigo bastante esclarecedor, com a entrevista de um fotógrafo e um neuropsicólogo, sob o título Fotografia: celular mata a memória humana lentamente

“Tiramos muitas fotos, porém não tanto para documentar o que vemos: a maior parte das vezes, para dizer que estávamos lá, e é aí que surge o problema. É que documentamos nossa vida, especificamos nossa presença em um lugar particular, mas, no final das contas, aacabamos por atribuir muito pouca importância ao que vemos”, lamenta o fotógrafo Sébastien Raymond.

Já o neuropsicólogo Dave Ellembert, se pergunta sobre as repercussões do uso demasiado da foto, por meio de telefones celulares, na memória. “Acho que nossa memória está desaparecendo devido ao consumo excessivo de imagens. Não nos deixamos mais espaço para a tentativa de memória . Vamos querer o tempo todo uma prova fatual para poder rastrear um evento justamente”, observa Sébastien Raymond, referindo-se ao fato de que todos, hoje em dia, têm um telefone celular e inundam redes sociais como Facebook ou Instagram com fotografias de todos os tipos.

“Hoje, o problema é que só nos lembramos por prova visual. Apelamos menos à nossa memória ”, diz este fotógrafo, autor do livro ” Le temps d’une photo : réflexion sur la photographie à l’ère du numérique.” Dave Ellemberg pensa como Sébastien Raymond. O neuropsicólogo diz que “muitas pessoas que tiram fotos com seus telefones celulares revelam diminuição cognitiva.”

“As pessoas, ao tirar fotos, confiam (no fato) de que têm uma prótese. Elas dizem a si mesmas: ‘tenho menos necessidade de me envolver neste evento, porque acumulo minha enciclopédia, minha ajuda de memória.’ E assim, há um esforço muito menos importante investido (no evento).”

  • Citação de Dave Ellemberg, neuropsicólogo

É a tendência da nossa época incivilizada, estimulada pelas redes sociais e pelos aparelhinhos que fotografam tudo e qualquer coisa. E, agora, com a I.A. ficou ainda pior. A torto e a direito, pessoas publicam ilustrações sem reconhecer, por falta de cultura, quando são fake. E, portanto, sem nem mesmo informar seus leitores. Prejudicam o conhecimento, a Arte, a Cultura e desrespeitam pessoas.

Conversas e reflexões perderam o interesse. O que importa no presente são só imagens. Incluindo aqui imagens de propaganda, utilizadas tanto por tiranos, quanto por terroristas, como os do Hamas. Mas esse é outro assunto, que fica para outra vez.

Em relação à fotografia, enquanto utilização deletéria para o nosso cérebro, Jean Baudrillard, muito saudoso, já tinha previsto seu crescimento assustador e catastrófico – como “cogumelos” – cobrindo tudo. Nota-se que pessoas que fotografam demais, apenas para registrar ocorrências, desaprendem de escrever. Não conseguem mais se exprimir corretamente, escrevendo. É preocupante.

A verdadeira e original criação, como sempre, em todas as suas formas, é a nossa salvação individual e, também, da humanidade.

Segundo o neuropsicólogo Dave Ellemberg, tirar foto não é necessariamente o melhor meio de se lembrar de uma experiência. PHOTO : iStock / gilaxia ©YOAN VALAT/EPA/MAXPPP


Faz 6 anos que Paris não é mais uma festa

O ateliê de Romain Naufle situava-se a alguns passos de onde moro, a 2 km do Bataclan, casa de show em Paris. Desde que o lugar abriu, tomei o hábito de parar em frente de sua vitrina durante alguns minutos, apenas para vê-lo trabalhar. Eu não era a única. Romain, reparador e vendedor de instrumentos musicais de corda, foi um jovem luthier querido por todos no bairro e a sua butique, um espaço vivo, modesto e acolhedor.

À esquerda ficavam os violões, guitarras e violinos pendurados na parede. À direita, numa espécie de banco de lenho cor de mel, ele colocava as ferramentas que se pareciam com aquelas usadas pelos marceneiros. Os passantes detinham-se fascinados pelos pedaços de madeira, alinhados atrás da vitrine, que um dia seriam os braços de algum instrumento de corda. Ele costumava contar, entre outras coisas, que uma certa “madeira africana era excelente para tocar blues”.

Hoje, nas ruas de Paris, exceto os sapateiros, é muito raro ver um artesão trabalhar. De fora, podia-se observar o crânio de Romain, precocemente calvo, sempre encurvado sobre um destes instrumentos. Nunca se incomodava com interrupções. Ao contrário, acolhia  qualquer pessoa que adentrasse o seu pequeno templo, com um grande sorriso. Em 2015 ele não tinha mais do que 31 anos, mas trabalhava com a serenidade de um homem de experiência.

Amor à música e à liberdade

Romain Naufle, o apaixonado “médico dos violões”, como era chamado, estava no Bataclan para festejar com amigos e morreu no dia 13 de novembro de 2015, uma sexta-feira, há exatamente seis anos, crivado de balas dos terroristas que ensanguentaram Paris. O julgamento deles neste momento, e do covarde que restou, nos revolta e apazigua ao mesmo tempo. Acompanhamos, pela imprensa, cada momento do processo.

Desde que a porta de ferro de sua lojinha permaneceu cerrada e cobriu-se de flores e mensagens, a nossa vida não é mais a mesma. As crianças colaram ali palavras ternas e pungentes: “obrigada pelo violão”, escreveu Candice; “você é meu companheiro”, assinou Paul.

Ainda não posso passar pelo número 18 daquela rua sem me lembrar que durante semanas a sua calçada transformou-se numa capela ardente.

Lembro da figura de Romain e do que ela representava em termos de amor à música, ao seu ofício e à liberdade. Ele ficará em nossas memórias para nos defender do fanatismo e  obscurantismo, os dois maiores perigos da humanidade.

Até a próxima que agora é hoje, tantos ainda tentam ressuscitar o gosto pela festa no Bataclan e em toda a cidade, porém ninguém consegue trazer de volta a despreocupação e alegria do mundo do jovem luthier!

França começa a julgar acusados por atentados terroristas de 2015 em Paris

 

Lojinha de Romain Naufle. O luthier era um desses artesãos apaixonados que viviam da música, e pela música. Ele foi uma das 89 vítimas do Bataclan, há seis anos, dia 13 de novembro, sexta-feira. (Foto: Manuel DeCastro)
AFP PHOTO / BERTRAND GUAY
AFP PHOTO / KENZO TRIBOUILLARD
AFP PHOTO / PHILIPPE LOPEZ