Duas histórias e a mesma saga familiar

  • Telefonar, pedir notícias ou planejar uma visita à sua mãe, desencadeia em você apreensão, ansiedade ou nervosismo?  
  • Você se força a telefonar ou a ir ver a sua mãe?
  • Surpreende-se, por vezes, desejando que ela não fique muito tempo neste mundo? 
  • Quando sai de uma refeição com a sua mãe, em família ou em tête-à-tête, sente-se esgotado(a), exausto(a), repleto(a) de más energias ou em estado de tensão interna inexplicável?
  • Irrita-se facilmente com os assuntos, ideias ou atitudes de sua mãe?
  • Já aconteceu você se dizer “esta é a última vez que a verei”?
  • Fica preocupado(a) com seus filhos ou pessoas próximas que estão em contato com ela?
  • Sente que a sua vida adulta poderia ter sido muito mais plena e gratificante se tivesse uma mãe diferente?
  • Pensa que ela lhe transmitiu medos, neuroses, crenças tóxicas dos quais está tentando se desapegar?
  • Fica particularmente triste quando sua mãe estraga a alegria de momentos que são importantes para você?
  • Por mais que se esforce, não consegue lembrar-se de momentos em que ela lhe trouxe felicidade?
  • Os atos ou palavras dela machucam você com frequencia?
  • Tem a sensação de que ela ainda tenta controlá-lo(a), para lhe impor a sua visão de vida?
  • Costuma se preocupar com a reação de sua mãe, quando precisa contar um acontecimento ou uma mudança em sua vida?
  • Ela é extremamente maledicente, sempre fala mal dos outros pelas costas, fazendo de você a sua cúmplice para que a apoie em seus julgamentos?
  • Você tem a sensação de voltar a ser aquela criança ferida, quando está perto dela?
  • Por mais que faça, tem a impressão de que o que faz nunca é suficiente para a sua mãe?
  • Frequentemente ela faz você se sentir responsável por sua felicidade (ou infelicidade)?
  • Por mais que queira mantê-la à distância, a presença dela continua lhe pesando?
  • Você está convencido(a) de que sua mãe pode evoluir e faz tudo que é possível para que isto aconteça? 

Este é um quiz onde, se preferir, você pode substituir “mãe” por “pai”. De todo modo, se respondeu “não” a tudo, considere-se uma pessoa muito sortuda. No entanto, se já respondeu “sim” ou “mais ou menos” apenas à metade das questões, é muito provável que esteja mantendo um relacionamento tóxico com algum deles, ou com os dois. O que pode causar imensos danos colaterais, alterar profundamente a sua qualidade de vida, influenciar a sua esfera emocional, e talvez até mesmo a de seus filhos e esposa (ou marido).

Não há margem de manobra para modificar comportamentos tóxicos de outrém

Ninguém tem o poder de fazer a mãe ou o pai mudar. Com muitos anos de vida, crenças e hábitos errôneos, neuroses, insegurança, traumas transgeracionais, etc – tudo isso fica enraizado para sempre. Ninguém tem margem de manobra para modificar comportamentos tóxicos de outrém. Além disso, infelizmente, o assunto é tabu, porque na nossa civilização e cultura, a figura materna ainda é “sagrada”. Nem fica bem socialmente. Ninguém ousa comentar… Quantos sofrem e não conseguem se liberar!

Contudo, o reconhecimento desta realidade – com força e trabalho interior perseverantes – assim como a identificação do mal que a pessoa nos causa, permitem-nos vislumbrar o caminho da liberdade e adquirir, aos poucos, autonomia e independência totais. Ou seja, levam-nos a nunca mais depender de seu olhar, julgamento, aprovação, consideração ou opinião. Nem mesmo de seu amor ou desamor.

Eis  o que significa “matar um progenitor”: separar o genitor verdadeiro daquele que foi contruído em nossa cabeça, alma e coração. Uma construção à qual fomos obrigados, por neurose, conveniência e necessidade, porém, da qual, finalmente, estamos livres. E, só assim, prontos a ter uma excelente relação, sem sofrimento, com aquele ou aquela que nos gerou.

Livro a ser indicado, talvez, por psicólogos e psicanalistas

Como Matei minha Mãe é o título de meu romance. Duas histórias compõem a mesma saga familiar. Trata-se de uma humorada obra de ficção a partir da realidade, que – penso eu – prende o leitor até seu inesperado final. É a resposta sobre o bem estar individual e o símbolo da luta #MeTooMãeTóxica que poderia, talvez, ser indicada por psicólogos e psicanalistas a vários de seus pacientes.

Até amanhã, que agora é hoje, o livro em papel encontra-se em pré-venda, com desconto (envios em 26/08/2022), na Editora Iluminuras e o e-book já está disponível na Amazon!

Book trailer

‘Mãe tóxica’, o assunto que ainda é tabu

Todos os pais têm defeitos. Uns mais, outros menos. Porém, quando as imperfeições tornam-se destrutivas, podemos defini-las como “tóxicas” mesmo que assumam formas diferentes. Em alguns, a toxicidade é óbvia, em outros é tão sutil que seus familiares quase não percebem. O fato é que todos vivem sob suas próprias regras, sem se colocar de fato no lugar dos filhos, e o sofrimento que provocam, sobretudo as mães, é algo de que raramente se fala. “Mãe tóxica” é tabu, porque na nossa civilização e cultura, a figura materna ainda é “sagrada”.

Imagem: Frederick Sandys (1829–1904), “Medéia”,  Birmingham Museum and Art Gallery.

“Sinto muito, senhor Newton, o centro de gravitação universal é a minha mãe.” (Anônimo)

Imagens e anedotas literárias não faltam. Até mesmo o narrador sofre, na Procura de Proust, quando a sua mãe vem dizer boa noite ao pé do leito, vestida para sair… A mãe Thénardier que humilha e brutaliza Cosette, abandonada pela mãe Fantine, em Os Miseráveis de Victor Hugo, é terrível. Mas a pior de todas, a mais maldosa, talvez, é a famosa Madame Lepic, mãe que detesta e maltrata o pequeno ruivo Cabeça de Cenoura, nome do magnífico romance autobiográfico de Jules Renard publicado em 1894.

Félix Vallotton (1865 – 1925), “Cabeça de Cenoura”, romance autobiográfico de Jules Renard, 1894.

A mãe de Marguerite Duras, em O Amante, é uma mulher monstruosa: prostitui a sua filha caçula. Já a célebre e perversa “Folcoche” que martiriza as crianças em De víbora na mão, o romance igualmente autobiográfico de Hervé Bazin, continua uma referência quando se trata de mães abusivas. Assim como a “Medéia” de Corneille que, apesar de ser personagem de ficção, não é menos abominável, matando os três filhos por vingança.

Folcoche, a mãe que martiriza as crianças em De víbora na mão, romance autobiográfico de Hervé Bazin.

Do mesmo modo, Thérèse Delombre em A Dor, de André de Richaud, se suicida, grávida, deixando o filho único, também sem pai, condenando-o a um destino inviável… E há Patrick Modiano, prêmio Nobel de literatura, em cujos livros a ausência da mãe é uma questão constante. De todas as mães indignas, porém, a que me marcou especialmente foi Emma Bovary, heroína de Flaubert, mãe psicologicamente ausente, eterna insatisfeita que quer ter um filho e é frustrada pelo nascimento da filha. Pouco preocupada com a felicidade da menina ela se mostra às vezes até mesmo cruel chamando-a de “feia” e, no final, com o suicídio, abandona-a egoisticamente à própria sorte.

Minha mãe jamais me deu uma alegria na vida

Ontem, segunda-feira, uma amiga que se encontra hospitalizada me ligou dizendo que descobriu, “apenas na maturidade e em ‘estado de suspensão psíquica’, que a sua mãe jamais lhe deu uma alegria na vida”. Disse que forçou a memória para encontrar algum momento de felicidade e … nada! Queixas, cobranças, chantagens, más notícias, mau humor, ressentimentos, até mesmo ameaças de suicídio. Tudo isto, e pouco de bom, ela foi obrigada a ouvir durante a sua existência. Ou, pelo menos, se houve alguma coisa positiva, deve ter perdido a sua importância. Foi esquecida diante de tanta “tragédia”.

A minha questão veio tão naturalmente quanto a das pessoas que conhecem as piadas e o assunto milenar: “A sua mãe é judia?”

“Não”, respondeu. “Ela é católica e bretã. Não possuo nenhum ascendente de origem judaica”.

“Je souffre” (“Eu sofro”), pintura de Ben Vautier (1935), artista do grupo Fluxus.

No momento fiquei sem resposta. E de todo modo não achei que era hora de lhe dar a explicação, a partir da reportagem que eu tinha assistido em horário nobre na televisão francesa e que foi de grande esclarecimento público. Vi, por exemplo, que a expressão “mãe tóxica” hoje, felizmente, ficou popular. Entrou no vocabulário científico (de psiquiatria, psicologia, sociologia, etc.). À medida que uma expressão entra em vigor, ela se torna consciente e quando envolve percepção e raciocínio, este é o primeiro passo para que todos se armem e defendam. Quem tem esse problema em casa, deve pedir ajuda.

Também não podia entrar em pormenores, dizendo que nenhum de nós é perfeito, pais inclusive, mas que existe o ponto em que esta imperfeição torna-se destrutiva, substituindo o amor, calor e afeição que as crianças merecem, por algo horrível.

Não tinha ainda como explicar que todas as “mães tóxicas” se acham especiais, mais inteligentes, criativas e importantes do que as pessoas comuns. Que jamais se enganam ou reconhecem erros, que são sempre “vítimas queixosas, incompreendidas e maltratadas”. Eu não podia contar que vi (e li) que essas mães geralmente adotam comportamentos desagradáveis, são dominadoras, controladoras e manipuladoras, mostrando-se narcisistas, egocêntricas e vaidosas.

Émile Bayard (1886). Cosette na casa dos Thénardier, em “Os Miseráveis” de Victor Hugo.

Além disso, não podia relatar, por exemplo, que essas progenitoras vivem sob suas próprias regras, sem se incomodar com o bem-estar dos filhos, e o sofrimento que provocam é algo de que raramente se fala. Sim, porque “mãe tóxica”, apesar de ter se tornado expressão popular, ainda é tabu. A figura materna é sagrada em qualquer cultura e civilização do planeta.

Assim, disse à minha amiga apenas que ela não deveria mais levar isso em conta, pois a sua mãe certamente tinha feito o melhor que pôde, e o problema – por mais que a tivesse afetado – não lhe dizia mais respeito. Era neurose exclusiva da mãe dela. Penso que ficou contente. Quando nos despedimos estava com a voz mais alegre.

O melhor presente que uma mãe pode dar aos seus filhos é estar bem

Quem não ficou contente fui eu. Lembrei imediatamente de François Roustang, o novo Sócrates que nos deixou no ano retrasado. Ele dizia que “o melhor presente que uma mãe pode dar aos seus filhos é estar bem”. Ora, a mãe da minha amiga, lhe dava somente presentes envenenados. No fundo, cruel como é, considera-se o centro do mundo e pensa, é claro, como é típico de mães nocivas, que os filhos são responsáveis por sua felicidade. Pena que a minha amiga não fez uma terapia como é necessário nesses casos, por isso, amanhã, quando eu falar de novo com ela, que é inteligente e sensível, certamente lhe direi:

“Querida, já que você está no hospital para se curar e descobriu que, além de tudo, está intoxicada por alguém que jamais lhe deu alguma alegria na vida, aproveite para fazer a cura total. Invente um cemitério virtual e cometa um ASSASSINATO (HIGIENICAMENTE) SIMBÓLICO! Mesmo que a sua mãe tenha lhe dado a vida, mate esta pessoa tóxica dentro de você e ganhe uma nova, totalmente recomposta, em 2018! Só assim conseguirá ter uma excelente relação com ela, antes que desapareça de verdade.

Até a próxima que agora é hoje e lembre-se: jamais repita a toxicidade com os seus próprios filhos. Boa sorte!”

Charles-André van Loo (1705–1765), “Senhorita Clairon em Medéia”. Neues Palais in Potsdam.

 


LEIA TAMBÉM AS ANÁLISES:

 

François Roustang, o novo Sócrates que nos deixou

“Antigo jesuíta e psicanalista, François Roustang (1923-2016), também filósofo, dedicava-se à hipnoterapia e nos deixou com dados fundamentais sobre a cura. Por meio de sua transmissão, à qual provávelmente se dará ainda mais valor no futuro, conhecemos os efeitos nefastos da ‘transferência’ em psicanálise, as palavras desnecessárias em terapia, e também as particularidades do tempo de análise que, segundo ele, ‘não deve se eternizar’.”; análise de Sheila Leirner

Feminismo e machismo: lados da mesma moeda

“Vai demorar bastante ainda para que certas brasileirinhas, francesinhas e americaninhas que se julgam melhores do que as outras e querem impor sua vontade compreendam que o que elas acham e sentem não é necessariamente o que outras mulheres acham e sentem.”; análise de Sheila Leirner

Com nova exposição em Paris, René Magritte se consolida como filósofo da arte moderna

“Racionais e rigorosos – jamais fortuitos, aleatórios ou arbitrários – seus trabalhos são como fórmulas matemáticas com as suas soluções já embutidas nas imagens.”; análise de Sheila Leirner