Paul Klee: a ironia, a sátira e o humor de um gênio raro do século 20

Há 139 anos exatos, como bem marcou o Doodle na página inicial de Google, nascia Paul Klee (1879 -1940), artista que o Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) apresentará aos brasileiros no início de 2019. Com a retrospectiva do gênio alemão no Grand Palais em Paris, no final dos anos 1960, quando eu ainda era estudante, vivi uma aventura grandiosa e jubilatória da qual jamais esqueci. Há dois anos, uma nova retrospectiva organizada pelo Centro Pompidou foi ainda além: ver Klee, mais de um século depois, de uma maneira totalmente inédita e muito mais completa, confirmou definitivamente – e não só para mim – que ele é um dos raros artistas verdadeiramente fundamentais do século 20. Uma grandeza só equiparável talvez a Picasso ou a Duchamp dentro, é claro, dos domínios específicos de cada um. Nem Malevitch, nem Kandinsky, Miró, Morandi, nem os surrealistas, ninguém chega à altura de Paul Klee.
Imagem: Uma visitante observa “Insula Dulcamara”, trabalho de 1938. Foto tirada durante a visita para a imprensa no Centro Georges Pompidou – no dia 5 de abril de 2016 – na qual também estive. AFP/ FRANÇOIS GUILLOT.

Dentre sua obra colossal de 5 mil desenhos e 10 mil pinturas, serão apresentadas no Brasil  100 peças de Paul Klee entre pinturas, desenhos, documentos, gravuras, fantoches e objetos pessoais, de modo a fazer o público brasileiro descobrir o artista (depois de São Paulo, a mostra  vai percorrer outras cidades como Rio de Janeiro e  Belo Horizonte). Contudo, se esta exposição inédita chamada Paul Klee – Equilíbrio Instável tiver as mesmas qualidades da última exposição francesa, ela revelará além do mais os ângulos inimagináveis da sua obra.

São raras as mostras que modificam o nosso olhar sobre um artista. Paul Klee, Ironia à Obra, exibida há dois anos no Centro Pompidou foi uma delas. A retrospectiva não apenas oferecia ao espectador uma aventura como a do Grand Palais, em 1969. Os 230 trabalhos revelavam uma prática que antes não se percebia forçosamente e que, no entanto, perpassa de fato todo o caminho de Klee: a ironia, a sátira e o humor, advindos já do primeiro romantismo alemão e sua “zombaria transcendental”.

Um Klee nunca se parece a outro Klee

Tratava-se, segundo a curadora Angela Lampe, “de desvelar como Klee, em todos os períodos, denuncia os dogmas, a doxa e as normas estabelecidas por seus contemporâneos”. O que, na verdade, penso ter sido também um esforço no sentido de nos devolver a dimensão “terrena” e a humanidade de um artista diante do qual ficamos sempre suspensos, em estado de leveza, voo e elevação. Duchamp dizia que Klee tinha tanto a dizer que “um Klee nunca se parece a outro Klee”. Eu diria que cada porção de cada trabalho também não se parece, transformando uma só peça em caleidoscópio infinito de traços, formas, espaços, superfícies, profundidades, perspectivas e cores.

A sua obra feita com inteligência e criatividade espaciais infinitas, os seus espaços múltiplos e complexos, a sua sensibilidade ilimitada, a facilidade e abundância de seus exercícios gráficos, tudo isso sempre nos pareceu quase impalpável, feito apenas de poesia, sonho e espiritualidade. E de música, principalmente. Sabemos que ele, nascido em família de músicos e violinista aos 7 anos numa orquestra de Berna, hesitou bastante tempo entre as notas musicais e o pincel.

Ver Paul Klee dessa maneira, inédita e muito mais completa, confirmava o fato de que ele é um dos raros artistas verdadeiramente fundamentais do século 20. Uma grandeza só equiparável talvez a Picasso ou a Duchamp dentro, é claro, dos domínios específicos de cada um. Nem Malevitch, nem Kandinsky, Miró, Morandi, nem os surrealistas, ninguém chega à altura de Paul Klee.

Dois monstros sagrados, Klee e Picasso

O percurso foi exultante! Sete formidáveis seções temáticas, que se percorria de maneira fluida: Os Começos Satíricos, primeiros anos solitários nos quais ele zombava da sociedade burguesa e depravada de Berna; Klee e o Cubismo, que mostrava a sua insubordinação à ortodoxia cubista; Teatro Mecânico, quando a sua obra, influenciada pela Bauhaus, onde lecionava, entra em uníssono com Dada, o Surrealismo e particularmente com o trabalho de Oskar Schlemmer; Klee e os Construtivismos, em que ele também passa transversalmente pelas doutrinas; Olhares ao Passado, o confronto discreto no qual ele opõe o seu ceticismo e ironia às certezas e ao proselitismo de seus colegas, durante os anos 1930; Klee e Picasso tratava do efeito causado pela sua visita à retrospectiva de Picasso em Zurique, em 1932; e, finalmente, Os Anos de Crise, período sombrio no qual o artista trabalha apesar da política nazista (que define a sua arte como “degenerada”), da guerra e da doença.

Naturalmente, a parte mais anedótica, e também a mais deliciosa da exposição, foi a do encontro cômico entre os dois monstros sagrados, Klee e Picasso que, na época, têm quase a mesma idade. Neste segmento, as humoradas telas e desenhos “à maneira de Picasso” são a pura e inteligente paródia do virtuosismo picassiano. Menos por provocação ou hostilidade do que para ver realmente como as deformações do mestre funcionavam por dentro, Klee se esbaldava em criar os seus pastiches. O fato é que, como ocorre com todos os grandes, o artista alemão não se levava a sério, possuía distância e desprendimento tanto em relação à vida quanto à arte.

Até a próxima, que agora é hoje, aniversário do gênio que, em 1906, dizia: “Ninguém precisa ironizar à minha custa. Eu me encarrego disso sozinho”!

 

Suíço naturalizado alemão, Paul Klee (18 de dezembro de 1879 – 29 de junho de 1940) nasceu em uma família de músicos, em Münchenbuchsee perto de Berna. Com formação em Munique, na Alemanha, conheceu artistas como Kandinsky e Franz Marc e com eles participou da segunda exposição do grupo Blaue Reiter (Cavaleiro Azul), em 1912. Também lecionou na Bauhaus entre 1921 e 1931; teve sua arte classificada como “degenerada” pelos nazistas; e morreu na Suíça.

 

Um visitante observa “Altos Espíritos”, pintura de 1939. Foto tirada durante a visita para a imprensa no Centro Georges Pompidou no dia 5 de abril de 2016. AFP/ FRANÇOIS GUILLOT.

 

 

“O espírito da Bauhaus” gera polêmica em museu

Desde outubro do ano passado (até 26 de fevereiro), o Museu de Artes Decorativas, em Paris, apresenta uma exposição sobre a Bauhaus, instituto fundado em 1901 pelo belga Henry Van de Velde, depois dirigido por Walter Gropius, que representa igualmente toda uma corrente artística relativa à modernidade na arquitetura, design, fotografia e dança. Quase no final do percurso desta mostra, um gráfico intitulado “A herança da Bauhaus” indica algumas realizações dos seus alunos, entre as quais, o campo de exterminação de Auschwitz. Isto é mencionado, sem nenhuma análise ou explicação, como se todas as indicações – estação de esqui, sede da Unesco, campus universitário etc. -, estivessem no mesmo plano, com o mesmo valor.

Museu de Artes Decorativas, em Paris
Gráfico “A herança da Bauhaus”, onde se vê o campo de exterminação de Auschwitz.

As filas diante deste museu vizinho ao Louvre, na rua de Rivoli, são imensas. No interior, os visitantes se acotovelam para admirar a extraordinária retrospectiva “O espírito da Bauhaus”, a primeira – desde 1969 – a retraçar a história desta escola artística inovadora de Weimar, na Alemanha, que estabeleceu as bases da reflexão sobre a arquitetura moderna, como a conhecemos hoje, e sobretudo do chamado “estilo internacional” que floresceu entre os anos 1920 e 1980 no mundo inteiro.

Admiramos os móveis, objetos do cotidiano, têxteis, fotos, desenhos. São mais de 700 peças que revelam a explosão criativa de um movimento que queria “dar vida ao habitat e à arquitetura por meio de uma síntese entre as artes plásticas, o artesanato e a indústria”. Cada pessoa que chega um pouco mais perto das peças, provoca alarmes que causam confusão com os seguranças. No entanto, é a outra instalação, o gráfico chamado “A herança da Bauhaus” que agora gera, e com razão, uma polêmica bem mais séria em torno desta exposição.

Ver Auschwitz como ‘herança da Bauhaus’, está longe de ser do gosto de todos

No gráfico está escrito: “Paris, 1953 : sede da Unesco por Marcel Breuer”, “Nigéria, 1961-1962, Arieh Sharon constrói o campus da universidade do IFE (Instituto Francês de Educação), “Auschwitz, 1940: Fritz Ertl participa da concepção do campo de concentração”. Estudante na Bauhaus, de 1928 a 1931, Fritz Ertl que se tornou um SS durante a guerra, de fato desenhou as barracas horrendas e funestas do campo de exterminação na Polônia. Ver esta “realização” como “herança da Bauhaus”, certamente está longe de ser do gosto de todos.

“Não consigo entender o que pode levar um curador a mencionar e colocar a ‘criação’ de Auschwitz e o desenho dos fornos crematórios de Birkenau, no mesmo nível que as outras citadas e que realmente participaram da herança desta fabulosa escola por meio de obras magistrais”, declara um arquiteto francês que, indignado, contatou os jornais depois de ter ido visitar a exposição. Ele não foi o único, a questão circula agora entre os arquitetos do país e semeia espanto até mesmo nas associações de classe.

Outros visitantes enviaram cartas inflamadas à direção do museu e se manifestaram nas redes sociais apontando a “monstruosidade”. Um deles, cujo pai foi aluno na Bauhaus, acusou os curadores de “imorais”. Anne Monier e Olivier Gabet, os dois responsáveis pela exposição se dizem chocados com a polêmica e se defendem dizendo que foi apenas uma “falta de jeito”. Eu diria que a ausência de análise sobre o assunto constituiu negligência e/ou falta de competência.

A Bauhaus foi proibida pelo poder nazi e não raro mostrada, ao contrário, como símbolo da resistência. A verdade é que alguns de seus membros se acomodaram ao novo regime e outros o apoiaram francamente (veja “a lista dos 11”, no final deste post). Símbolo do modernismo, entretanto, esta escola foi considerada pelos nazistas como um abrigo à subversão “judaica-bolchevique” e eles a fecharam em 1933.  Em seguida aceitaram reabri-la com a condição de que se expulsasse alguns de seus professores, entre os quais Kandinsky, o que Ludwig Mies van der Rohe, o diretor na época, se recusou a fazer.

Inúmeros membros da Bauhaus foram, então, proibidos de trabalhar ou tiveram que deixar a Alemanha. Por isso é tão chocante e difícil de entender que outros tenham contornado ou sustentado o regime fascista, pensando que a “modernidade” das formas (em escala humana), fosse compatível com a estética monumental, aterradora e glacial do nacional-socialismo. Coisa que não é bastante discutida, talvez, na história da arquitetura, mas felizmente volta à tona com polêmicas como esta.

Até a próxima que agora é hoje!

A lista dos 11

Alfred Arndt (1896-1976)
Arquiteto da Bauhaus que adere ao partido nacional-socialista nazista em 1937. Trabalha ativamente, inclusive como chefe de propaganda nazista para o regime.

Herbert Bayer (1900-1985)
Grafista. Cria documentos e cartazes de propaganda para o regime nacional-socialista, no estilo Bauhaus.

Friedrich Engemann (1898-1970)
Estudante e depois professor na Bauhaus de 1927 à 1933, ano em que adere ao partido nacional-socialista.

Fritz Ertl (1908-1982)
Austríaco, estuda arquitetura na Bauhaus de 1928 à 1931. Torna-se SS e desenha os projetos para o campo de exterminação de Auschwitz-Birkenau.

Walter Gropius (1883-1969)
Arquiteto, fundador da Bauhaus em 1919, adere à Câmara da Cultura do Reich fundada por Goebbels e participa do concurso da Reichsbank organizada pelo novo poder nacional-socialista. A sua correspondência revela que Gropius era antissemita.

Ludwig Mies van der Rohe (1886-1969)
Arquiteto, diretor da Bauhaus de 1930 a 1933. Expulsa, com a ajuda da polícia, os estudantes comunistas. Negocia com os nazistas para conseguir a reabertura da Bauhaus. Assina uma declaração de apoio a Hitler e adere à “Câmara da Cultura” do Reich.

Ernst Neufert (1900-1986)
Adjunto de Gropius, ensina na Bauhaus. Fascinado por Le Corbusier (outro arquiteto controvertido), escreve a ele para recomendar um aluno que deseja fazer estágio em Paris. Publica o “Guia da Racionalização da Arquitetura”, utilizado até hoje. De 1938 a 1945 Colabora com Albert Speer, o arquiteto oficial do 3° Reich. Seu modelo de referência para o “sistema de medida modular” (à maneira de Le Corbusier) é um homem loiro de 1,75m. Esta foi a “norma” adotada para acelerar as construções nos territórios conquistados pelos nazistas.

Lilly Reich (1885-1947)
Colaboradora de Mies van der Rohe. Em 1934 ela organiza a exposição “Povo alemão – Trabalho alemão”.

Hinnerk Schepper (1897-1957)
Estuda na Bauhaus de 1919 a 1922 e é nomeado diretor do ateliê de pintura mural. Pinta afrescos de propaganda nazista.
Hermann Göring lhe encomenda murais para a sua mansão.

Oskar Schlemmer (1888-1943)
Coreógrafo, diretor de teatro e professor, de 1923 à 1929. Rejeitado por seus colegas em razão de sua simpatia declarada pelo nacional-socialismo, deixa a Bauhaus para ensinar em Breslau. Adere à “Câmara de cultura” do Reich. Realiza para concurso, um afresco com multidão fazendo a saudação nazista. Segundo o historiador Eric Michaud (de quem assisti a notável defesa de tese), Schlemmer escreveu a Goebbels para assegurar o seu apoio ao nacional-socialismo. Mesmo assim, foi considerado “artista degenerado” e proibido de exercer.

Lothar Schreyer (1886-1966)
Predecessor de Oskar Schlemmer na Bauhaus. Em 1933 assina uma declaração de obediência e apoio a Hitler. Mesmo assim, em 1937 também foi classificado “artista degenerado” e proibido de exercer.