Onde estava eu no dia 20 de julho de 1969?

Paris. A mesma cidade onde, 50 anos depois dos primeiros passos do Homem sobre o nosso único satélite natural, está a gigantesca exposição ‘A Lua. Da viagem real às viagens imaginárias’, no Grand Palais até o dia 22. Desde documentos, objetos científicos, reproduções de artefatos usados pelos astronautas, até peças de civilizações africanas, árabes e do Extremo Oriente, trata-se de um apanhado também e principalmente artístico. Da antiguidade à arte contemporânea, algumas obras foram realizadas especialmente para a mostra. São mais de 190 trabalhos de Marc Chagall, Man Ray, François Morellet, Joan Miró, Auguste Rodin, Félix Vallotton, além de artistas brasileiros como Angela Detanico e Rafael Lain. Embora o tema deixe a desejar em termos de ‘critério estético’, juntando obras não por analogia interna mas por assunto (o que, do ponto de vista artístico, não dá certo), as obras – examinadas não em conjunto mas ‘uma a uma’ – incorporam as visões diversas, a fascinação e os sentimentos que a lua inspirou através dos séculos.

Onde estava eu naquele dia? Depois do pequeno relato, vídeos e imagens da exposição no Grand Palais completam este texto.

 

Onde estava eu no dia em que o Homem pisou na Lua?*

Paris. Quando minha mãe decidiu ir embora de vez após uma longa estadia, eu que estava lá só para visitá-la, acabei por ficar. Apenas alguns meses depois da minha chegada, ela devolveu a bela casa alugada ao proprietário e me colocou num pequeno hotel ali mesmo, perto da Cidade Universitária. Deste modo, segundo ela, “eu teria algum tempo para achar um quarto de estudante ou um estúdio para alugar”. Deixou-me umas louças, panelas, o carrinho que na época as pessoas chamavam de “pote de iogurte” e se foi.

Era o segundo trimestre de 1969. Lembro-me até hoje quando eu, com a minha recém-tirada carta brasileira de habilitação, voltava do aeroporto de Orly aonde a tinha levado assim como a todas as malas dela. Quase não conseguia enxergar o caminho de tanto que as lágrimas corriam pelo meu rosto. Estava sozinha no mundo pela primeira vez. Hoje, os jovens não querem mais sair da casa dos pais. Para meu irmão, que veio em seguida estudar em Londres, e para mim, isso era uma questão de “honra”. Por isso ficamos independentes tão cedo.

Maravilha da vida!

Ainda tentava me adaptar à nova situação, quando soube que a minha mãe esquecera de pagar a conta do telefone. O pouco dinheiro que eu recebia e depois também ganhava arrumando o consultório de um médico, não dava para cobrir os telefonemas todos que ela tinha feito ao Brasil. E o proprietário não era qualquer um. Tratava-se do irmão de Bóris Vian, o poeta. Por sorte, ela encontrou uma maneira de me mandar a soma e lá fui eu com o envelope à casa de M. Vian que, pelo visto, devia ser escritor.

Era 20 de julho. Mal imaginava eu em que dia estávamos! Toquei a campainha e M. Vian respondeu mal-humorado: “Agora não posso, volte mais tarde”. Ao ver a minha decepção deve ter ficado penalizado pois mudou de ideia: “Bem, pode entrar. Mas aguarde um pouco, pois estamos muito ocupados”. Do hall eu via a televisão ligada e o sofá onde ele e a mulher sentavam-se. Penso que se sentiram constrangidos em me deixar ali plantada pois logo foram me convidando para sentar também. As imagens eram impressionantes e me deixaram muito emocionada. Foi assim, num gasto sofá de veludo vermelho, entre monsieur e madame Vian, com o envelope do pagamento da conta do telefone no colo, que eu vi – “maravilha da vida”! – Neil Armstrong, Michael Collins e Buzz Aldrin pisarem na Lua pela primeira vez.

Tudo ‘mixugui’…

Mas foi também naquele exato instante, do outro lado do oceano, que minha mãe, minha avó e a querida Madalena, católica praticante, nossa caseira há quarenta anos, arregalaram os olhos diante da televisão na biblioteca aquecida da Casa do Telhado Verde, em Campos do Jordão. Pela janela avistava-se o jardim ainda coberto pela geada matinal. Faltava pouco mais de uma semana para que as férias de inverno na montanha terminassem. Madalena fez menção de sair, dizendo que aquilo era invenção.

“Venha aqui, Madalena! chamou a minha avó. É verdade, sim. Olha aqui eles pisando na Lua! Estão até espetando a bandeira dos Estados Unidos! Está vendo?

“Tudo ‘mixugui’*… Claro que estou vendo! Vejo, mas não acredito.”

 

 

*Adaptação do 14° capítulo de meu livro “Direi Tudo e Um Pouco Mais”, Coleção Paralelos – Editora Perspectiva (2017)

**Meschuge ou meschugener, ídiche, lunático.


E a Lua é plana?

 

 

Álbum de fotos da exposição no Grand Palais, em Paris (clique para ver em slide show)

 


Os trailers da exposição

 

 

 

Até a próxima que agora é hoje e não deixe de visitar também “A Lua da Terra”, o site oficial da Nasa!

 

4 razões para amar o barro

Na arte, assim como na vida, costumamos celebrar muitos elementos e matérias, porém o barro é sempre esquecido, às vezes até mesmo desconhecido pelos artistas.

E, no entanto, esta amada mistura de argila  e água, é nela que também podemos pensar quando queremos ficar de bem com a existência. Não apenas porque o barro seja bíblico ou simbólico, como repositório divino do sopro da vida, mas porque “é” a própria vida.

Escuro, úmido, orgânico, sempre enigmático, nunca se sabe de que reserva, margem de rio ou manguezal, ele provém. Frio, liso, elástico, odorante, quando exala seu perfume mineral entre os dedos torna-se sensualidade pura. Fala aos sentidos, mas também à memória e à percepção da arte. Não admira que se tivesse feito amar por Rodin, minha avó e todas as crianças que, enquanto “pequenos Prometeus” como eu, tiveram a sorte de acariciá-lo para modelar figurinhas em seus “olimpos”, sendo que o meu “lugar paradisíaco de divindades” era o ateliê de escultura dela.

Para Didier Vermeiren (1951), artista belga que esteve na 18a Bienal de São Paulo (1985), “Rodin não é um talhador mas um modelador”. Vermeiren, que, no começo deste ano, visitava o Museu do mestre falando ao microfone da Radio France Culture, comentou: “nos fizeram acreditar que Rodin era um talhador, essa figura heroica do escultor que ataca um bloco de mármore. Não é verdade! Isso evidentemente é a figura de Michelangelo que ainda domina, ele que dizia que a verdadeira escultura era a pedra e não a argila. Para Michelangelo trabalhar a argila era como fazer pintura.”

Princípio básico, herdado de Brecheret

Só entendi o significado do barro, quando passei a fazer companhia à minha avó Felícia (1904-1996), enquanto ela trabalhava no ateliê envidraçado, no fundo da casa. Lá, ela me construia uma pequena armação de madeira e arame, geralmente com a forma de um homem. Depois, dirigia-se ao tanque, onde afastava os pedaços de pano encharcados de água que protegiam a argila do ressecamento, arrancava um bom pedaço daquele material e, após amassá-lo e transformá-lo em uma bola, mostrava-me como preencher com ele o homenzinho.

“Se não der certo”, dizia, “a gente desfaz e refaz a figura, tudo de novo!”. Mas, quando ela via o meu horror ao imaginar a destruição do boneco, tentava me acalmar afirmando com muita autoridade:

– “Um artista deve ter a coragem de destruir o que ele julga ruim. Não pode ter medo, não pode ter preguiça! Ele tem que refazer, refazer, refazer, até o momento em que achar que está bom de verdade!”

Sim, certamente. Embora eu não fosse artista e gostasse do meu homenzinho mesmo que ele saísse torto, entendi muito bem a lição. Assim, enquanto eu me aplicava em copiar os gestos dela, usando as mesmas espátulas de madeira com aros de ferro, Felícia dizia coisas sobre o ato de esculpir que associo hoje às palavras de Vermeiren quando ele fala de Rodin.

Ao invés do “ataque à matéria”, a minha avó, apesar da força de suas mãos, empregava toda a sua energia para manipular a forma na duração eterna e inquebrantável dos contornos. A mim, parecia mais uma carícia, do que um ataque. E era o princípio básico, herdado de Victor Brecheret (1894-1955), seu professor, que provavelmente também herdou de Rodin: perpetuar os volumes num só transcurso, sem interrupções na linha que os contorna, imprimindo às formas todo o seu significado.

Até a próxima que agora é hoje e, como está no Tao Te Ching, “do barro fazemos um pote, mas é o vazio interior que retêm o que queremos”. Viva esse material divino! Material que:

  1. representa a vida

  2. tem o dom de nos deixar de bem com o mundo.

  3. fala aos sentidos, mas também à memória e à percepção.

  4. imprime às formas todo o seu significado, num só transcurso.

Cenas de “Rodin”, filme biográfico de Jacques Doillon, interpretado por Vincent Lindon (foto), Izïa Higelin e Séverine Caneele.