Finalmente, uma bienal sem arte

Recebi o “projeto curatorial” por e-mail. Deixei a “pérola” escrita pelo “coletivo de curadores” da 35ª edição da Bienal de São Paulo dormindo quatro dias para ver se acordava melhor, quando o molusco abrisse a concha. Acordou pior.
Hoje, ao tentar explicar em um artigo “os principais conceitos e movimentos da próxima Bienal de São Paulo, que acontece no segundo semestre de 2023”, comecei pedindo ao leitor para que não confundisse “coletivo de curadores” com “veículo para transporte coletivo de curadores”. Elucidei que, como a moda é “coletivo de artistas”, curadores têm que correr atrás. Só isso.

Depois, tive que esclarecer o título: Coreografias do Impossível. Leitores são inteligentes. Sabem que coreografia é a arte de inventar passos e movimentos para compor uma dança. E que, por maior que seja a licença poética, o que não pode ser, existir ou acontecer, simplesmente não é. Nem curadoria surrealista é capaz de fazer nascer um cavalo de uma galinha…

Retrato do “coletivo de curadores” da 35a Bienal de São Paulo © Levi Fanan / Fundação Bienal de São Paulo

E, no entanto, os mocinhos do “coletivo” – bem vestidos e penteados na foto para representar seus identitarismos e nacionalidades diversas – explicam que “trata-se de um convite às imaginações radicais a respeito do desconhecido, ou mesmo do que se figura no marco das im/possibilidades.”

Não entendi, e duvido que alguém entendeu…

No texto cometido, os(as) garotos(as) coletivos(as) usam direitinho o dicionário para explicar o que é coreografia e escrevem que o que os(as) interessa são “os ritmos, as ferramentas, as estratégias, tecnologias e procedimentos simbólicos, econômicos e jurídicos que saberes extradisciplinares são capazes de fomentar, e assim produzir a fuga, a recusa e seus exercícios poéticos.”

Uma curadora (ou crítica de arte) novinha bastante “branchée”, como se diz na França, ou descolada, ligada e moderna como diria o público mais “artsy” de língua portuguesa, comentou no Facebook:

“É bem oportuno esse ‘coletivo’. É a tendência…”

Seria muito bom se a garota estivesse ironizando. Não estava. Então, respondi, evidentemente, que “tendência” não é critério para nada. Só se sabe se alguma coisa é “oportuna” vendo o resultado. Se o resultado for como este “projeto” – ou seja, vago, demagógico e ignorante, que não se fundamenta em nada, só papagueia “tendências” justamente – o resultado vai ser não só medíocre como, ele sim, totalmente inoportuno.

Abaixo, colocarei o link para a pérola, de forma que o leitor  julgue por si mesmo.  Há frases muito estranhas, não se assuste. E, estranhamente também, há palavras apenas no feminino quando se trata de “pensadores, artistas, pesquisadores, ativistas, curadores, poetas” etc.

De resto, procurei e não achei, juro. A palavra “arte” não aparece nunca, em nenhum momento, neste texto absconso que não diz absolutamente nada.

Até a próxima, que agora é hoje e desisti do artigo. Mas, não desisti de amar a Bienal!

“Biennale de São Paulo, 1961”, foto de Marcel Gautherot (1910-1996).

Se tiver tempo e paciência clique 👇

E se quiser ler mais sobre o assunto,
hoje (dia 11/09) 
saiu matéria minha no 👇

Ilustríssima (Folha de S. Paulo)

 

15 comentários em “Finalmente, uma bienal sem arte

  1. Olá, Sheila.
    Concordo totalmente com sua crítica muito bem argumentada.
    Aliás, se me permite um comentário, estive na Documenta deste ano (2022) e senti que nela também há, por parte das “novas curadorias coletivas” uma necessidade tão exacerbada de “engajamento” que seus discursos parecem esquecer de incluir na sua tese a questão estética (arte) que, aliás, é exatamente o mote da existência tanto da Documenta quanto das Bienais.
    O exagero na dose do “politicamente correto” e no exagero de engajar os “engajados” e seus vazios existenciais tem se transformado em dogma. Dogma que não admite crítica, como essa sua, de alguém, que curou a 19º Bienal Internacional de São Paulo, talvez uma das mais extraordinárias edições.
    Meus cumprimentos pela sua coragem, Sheila.

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    1. Obrigada, Dante. E obrigada pela citação à 19a edição da Bienal. Espero que se lembre igualmente da 18a 🙂 Sim, há uma praga que atinge as artes plásticas. É aquela dos dogmas ideológicos (externos à arte), disseminada por certos “terroristas” que, como todos os terroristas, são verdadeiros imbecis. Na Documenta 15, além das manifestações antissemitas, houve, por exemplo um debate ignóbil organizado pelos participantes, alimentado pelo ódio e por clichês “wokistas”, “anti-colonialistas”, “identitaristas” etc, contra Marina Abramovic. Penso que tudo isso faz parte da nossa época, evidentemente decadente. Abs

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      1. Sem dúvida, Sheila, perfeito.
        Ótimo tê-la com coragem e força para questionar essa “tendéncia” (a troca do acento é de propósito para imitar a pronúncia do pessoal).
        Eu me referi à 19º Bienal porque me marcou bastante, especialmente, se não me engano, com as Paralelas de Marcel Duchamp e Em busca de sentido (??? desculpa se me esqueço do nome correto).
        Abraço, Sheila.

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  2. Pois é, Sheila… concordo com você, nem vale a pena discutir o amontoado de besteiras que é a proposta dos tais curadores… mas leia esta minha história:

    Em 2002, após haver trazido uma exposição de Portugal (Robert Chester Smith: a investigação na história da arte, organizada e financiada pela Fundação Calouste Gulbenkian) para a Bienal de Arquitetura de 1999 (prêmios de melhor exposição e melhor curadoria), foi convidado e aceitei dirigir o Arquivo de arte Wanda Svevo da Bienal de São Paulo.
    Fiquei na direção dois anos, e aí chegou o Manuel Pires da Costa e me demitiu (e a vários outros membros de uma equipe que vínhamos trabalhando juntos há anos) de forma absolutamente truculenta sem nenhuma explicação: ninguém se manifestou, nem Conselho, nem ninguém: nem um pio, total falta de solidariedade, apenas uma corrida para ver quem ocupava os espaços vagos, na eterna dança das cadeiras que caracteriza as instituições culturais no Brasil.
    O Manuel Pires da Costa chegou à direção da Bienal por indicação do então presidente Carlos Bratke e teve a indicação aprovada em Conselho: o resultado foi a Bienal do Vazio, pois os cofres da instituição estavam vazios e a credibilidade da Bienal totalmente esvaziada.

    Ontem faleceu o Emanuel Araújo: estava na direção do Museu Afro desde 2004 (18 anos); Hugo Chávez foi presidente ditador da Venezuela por 14 anos; a Milu Vilela foi presidente do MAM por 23 anos, utilizando o mesmo procedimento: nomeando para o Conselho pessoas amigas e favoráveis que votavam pela reeleição.

    Como historiador da arte, insisto em que devemos entender como ocorreu tal processo de desmonte da Bienal de São Paulo: ou seja, reescrever a história da Bienal de um ponto de vista crítico para explicar como as coisas chegaram a este ponto, não só na Bienal, mas também em outras instituições culturais: por exemplo, a exposição do Aleijadinho que o Rodrigo Moura curou no MASP é um escândalo intelectual.
    Se você tiver tempo e interesse, eu explico porque.
    Eu adoro contar histórias.

    Com simpatia e admiração (gosto muito do que você escreve), Dalton Sala

    P.S: veja isto: Restauro da Casa do Pinhal

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    1. Caro Dalton, obrigada por seu depoimento e pelo vídeo. Conheço o seu trabalho e seriedade. Concordo plenamente que precisamos entender como ocorreu a decadência da Bienal de São Paulo. Sim, é preciso, eu nao diria reescrever inteiramente (coisa que já foi relativamente bem feita até 1987) mas pelo menos, dar continuidade a de um ponto de vista crítico, como você diz, “para explicar como as coisas chegaram a este ponto”. Com relação a outras instituições culturais, concordo igualmente. São vários os escândalos que deveriam vir à luz… Eu, e tenho certo que meus leitores também, temos muito interesse em ouvir as suas histórias. E por falar nisso, talvez você queira ler a carta aberta ao presidente da Bienal, que publiquei há cinco anos. Infelizmente, não é possível contestar todos equívocos responsáveis pela descadência desta instituição que nos é tão cara. Daí a importância de um trabalho histórico “de investigação” como este que você sugere. Um abraço!

      Carta aberta (2016): https://cultura.estadao.com.br/noticias/artes,ex-diretora-da-bienal-de-arte-de-sp-escreve-carta-aberta-ao-novo-presidente-da-fundacao-bienal,10000096075

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  3. Cheguei de viagem. E queria ver o q tinha perdido. Muito bom o texto, e pra lá de bom. Era preciso alguém, nada como v. Li erradamente. “Ha frases muito estranhas, não se ajuste , no lugar de não se assuste.” Coca Rodriguez

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      1. Bom dia, Sheila. Obrigada pelo texto completo. Completa! . Muuuito bom. Pra não forçar, mandando um clichê como, sempre haverá uma luz no fim do túnel… prefiro dizer, precisamos desta sua luz para reconstruir a arte. !!!!

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      2. Em qui., 6 de out. de 2022 às 07:33, Coca Rodriguez Coelho < cocarodriguezcoelho@gmail.com> escreveu:

        Bom dia, Sheila. Obrigada pelo texto completo. Completa! . Muuuito bom. > Pra não forçar, mandando um clichê como, sempre haverá uma luz no fim do > túnel… prefiro dizer, precisamos desta sua luz para reconstruir a arte. > !!!! > > Em sáb., 1 de out. de 2022 às 15:29, Arte, aqui e agora <

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