Despede-se Ai Weiwei, o artista que põe em xeque a ordem social

Não deixa de ser simbólico que o célebre contestatário chinês, artista crítico que põe em cheque a ordem social, deixe o nosso país praticamente no momento em que se inicia um governo oposto a tudo que representa a sua arte. Um governo conservador, ‘quimicamente puro’ (como afirma a historiadora Armelle Enders), ultranacionalista, antiglobalização, anti-multilateralismo, anti-clima. É possível que Ai Weiwei, depois de passar pelas agruras do regime totalitário de seu país, possa até mesmo achar ‘coerente’ que o ministro brasileiro das Relações Exteriores defenda e corteje o modelo chinês. Hoje, 20, é o último dia de ‘Raiz Weiwei’, exposição de 70 trabalhos na Oca (Parque Ibirapuera).

Imagem: “Straight”, impressionante instalação de Ai Weiwei realizada com restos de escolas destruídas por um terremoto em Sichuan. © Nelson Almeida / AFP

Mas quem é Ai Weiwei realmente?

Em 1980 ele descobriu Nova York. A sua formação artística havia terminado na China, país onde dominava o realismo socialista importado da União Soviética nos anos 50. Evidentemente, tornou-se bulímico de tudo que lhe havia sido proibido. Frequentou o mundo da arte e cultura ocidental e assimilou, com voracidade imensa, obras e artistas americanos e europeus de toda a metade do século 20. Não contente com isso, voltou à China e publicou três livros sobre arte contemporânea para compartilhar com os seus compatriotas tudo o que havia aprendido em 13 anos.

Entre as suas descobertas estava um artista ao qual ele prestou, e presta ainda, homenagens explícitas: Marcel Duchamp (1887-1968). Impossível entender Ai Weiwei sem pensar nos ready-made – aqueles objetos tirados do contexto que viravam arte – nas atitudes provocantes, declarações enigmáticas e satíricas, e também no tom geral de insolência e liberdade do artista francês. Entre Ai Weiwei e Duchamp, a relação é evidente – até mesmo no caso das fotos do artista chinês com as jovens nuas.

Por outro lado, Duchamp sempre afirmou ser indiferente à política. E aí é que eles se distanciam. Ai Weiwei declarou numa entrevista ao jornal Libération: “Não sou mais verdadeiramente eu, mas uma mídia carregada de mensagem”. Diz ele: “Vim para a arte pois quis escapar de outros limites da sociedade. A sociedade inteira é tão política que a ironia é que a minha arte se torna cada vez mais política.”

Não me admiraria se Ai Weiwei se inspirasse em ‘Brasil acima de tudo, Deus acima de todos’

O artista quer que as suas obras sejam compreendidas como alusões ou alegorias. A sua arte é crítica. Põe em xeque a ordem social. Reinventa Duchamp, usando-o de maneira política e, portanto, simbólica. E nisso, aproxima-se de muitos outros artistas e dos cyber ativistas igualmente. Os seus censores sentiram isso muito bem, tanto que ele continuou a ser reprimido por muito tempo, até deixar o seu país.

Há menos de uma década se insurgiu contra a contínua vigilância que lhe era imposta. Com a criatividade que lhe é peculiar e os meios que possuía, este “dissidente” sediado em Pequim, respondeu com 4 webcam em lugares estratégicos, na mais estrita intimidade do seu apartamento. Mas esta “instalação” ligada à Internet – metáfora do poder chinês, mestre da censura do Web e dos internautas – não durou muito. Em poucos dias, as autoridades chinesas o obrigaram a desligar as câmeras.

Dentro de um quadro análogo, no mesmo período, o Twitter chinês (Weibo) também foi censurado pela polícia do Net. Assustado com o espectro da primavera árabe – alimentada pelas redes sociais e Internet – o PCC aumentava a pressão. Os comentários eram triados e o site corria o risco de ser fechado definitivamente. Mil pessoas foram presas, 16 sites Internet eliminados e os dois mais populares entre eles, Sina e Tencent, não podiam mais receber comentários. Aquela nova “violação da liberdade de expressão” provocou a mobilização dos cyber ativistas.

Não dá para não lembrar, por exemplo, da escultura que o artista italiano Maurizio Cattelan colocou na frente da Bolsa em Milão, das suas figuras de Hitler rezando ou de João Paulo II esmagado por um meteorito. Ele, tanto quanto outros, Ai Weiwei inclusive, usam objetos simples para cometer “sacrilégios”. Não me admiraria se ele se inspirar um dia na frase  “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”, sabendo que esta é uma referência assumida ao Deutschland über alles (“Alemanha acima de todos”), o hino nazista. É possível também que Ai Weiwei, depois de passar pelas agruras do regime totalitário de seu país, possa até mesmo achar coerente que o ministro brasileiro das Relações Exteriores defenda e corteje o modelo chinês.

Escultura de Catellan na frente da Bolsa de Milão – Reuters
Ai Weiwei, “Estudo de perspectiva: tiananmen, 1995-2003”

Pode parecer estranho, mas Ai Weiwei também não está muito longe de Jeff Koons. De forma análoga, alguns ready-made deste último – aspiradores de luxo, joguinhos de praia, etc. – podem igualmente ser vistos como uma crítica à sociedade de consumo. O artista chinês fotografa-se em situações escandalosas da mesma forma como Koons apareceu nu nas fotos e na escultura policromática “Made in Heaven” ao lado da ex-mulher Cicciolina, aliás Ilona Anna Staller atriz de filmes pornô que tive a honra de conhecer no Aperto 90 da Bienal de Veneza, há algumas décadas.

Não acredito que existam “influências” na arte contemporânea. Trata-se mais de fenômenos de geração e de um certo sincronismo. Quem nasceu entre 1955 e 1960, e teve contato com Duchamp como estes artistas, forçosamente apropriou-se dele, reativando-o segundo as próprias necessidades. Se hoje eles são ouvidos e discutidos não é porque têm em comum apenas a vontade de escandalizar. É porque desejam ser compreendidos pelo maior número de pessoas, fazendo-as pensar. Para os artistas ocidentais, praticamente não há risco. Na China, não é a mesma coisa.

Um documentarista obsessivo e fecundo

Esta, talvez, é uma das razões pelas quais um trabalho “ativista” (e heroico) desta ordem não combina com um espaço institucional. Certamente “respirou” e se adaptou perfeitamente ao Parque Ibirapuera. A sua última exposição no Jeu de Paume, em Paris, há sete anos, ficou pior do que a de Hélio Oiticica, quando foi pasteurizado por Catherine David no mesmo Jeu de Paume, bem antes de ele se tornar um espaço para a fotografia. O trabalho de documentação fotográfica de Ai Weiwei exibido ali naquele momento, apesar do esforço da montagem fica bom apenas onde ele acontece: Internet, blog, twitter, performance, etc. Ai Weiwei não é essencialmente fotógrafo, no sentido estético da fotografia. É mais um documentarista obsessivo e fecundo, escultor, “instalador”, arquiteto, curador, cineasta, crítico da cultura e da política, uma espécie de antropólogo ou sociólogo selvagem, cujas obras plásticas não se encontravam na exposição, mas felizmente estão em São Paulo.

Até a próxima, que agora é hoje e se ainda existisse o Museu do Homem em Paris (e não esse monumento da promiscuidade exótica que é o Museu do Quai Branly, chamado de Museu do Outro, para onde o antigo Museu do Homem foi deslocado) é lá que Ai Weiwei devia ser exposto!

Que vergonha, senhores!

O fechamento da exposição “Queermuseu – cartografias da diferença na arte brasileira” no Santander Cultural na capital gaúcha, é um dos raros casos no mundo da arte, em que todos – sem exceção – pisaram na bola.

“O tato é a imaginação do que os outros podem sentir.
O fato de ele nascer da imaginação explica porque é tão raro.”
Charles Dantzig

Todos pisaram na bola. A começar pelo curador Gaudêncio Fidelis que por ingenuidade, provocação, irresponsabilidade, falta de tato ou – como escrevi no meu post “O que é um curador?” – por se sentir mais real do que o rei, mais artista do que os artistas, exagerou em suas “obsessões, temas preferidos, subjetividade individual, possivelmente também integrando ao trabalho – como fazem outros curadores – a sua experiência pessoal”. Isso, porém, de maneira centrada, egoísta, arrogante e desrespeitosa. Como se o público, com as suas diferentes sensibilidades, muitas vezes com os seus às vezes inevitáveis e perfeitamente compreensíveis limites, não existisse.

Por mais pessoal que ela seja, uma exposição não é feita para si. Ela é destinada, antes de tudo, a um público de diferentes faixas etárias e sociais. Em qualquer exposição do mundo, em Paris, Nova York, Tóquio ou Berlim, as obras inadequadas a crianças ou que podem ferir o sentimento de certos adultos, são isoladas com um aviso. O público fica livre para escolher visitar estes “espaços reservados” ou não.

Na exposição de Jeff Koons, no Centro Pompidou em Paris, por exemplo, o curador teve este cuidado. Quando o público, depois de ler a comunicação, escolhe por sua própria vontade transpor as barreiras para ver algo que sabe que vai revoltá-lo, já não pode reclamar porque a escolha foi dele. É por esta razão que jamais se viu uma “exposição explícita” em países civilizados. Que vergonha, senhor curador!

Desrespeito de todos os lados…  Ninguém se salva nessa história.

O banco Santander pisou na bola. Depois de ter acolhido a mostra, cedeu à pressão das “críticas” e de seus cofres-fortes. Voltou atrás, numa atitude francamente covarde, contraditória e arbitrária (sem consultar o curador ou lhe dar a oportunidade de rever a montagem deslavada) “pedindo desculpas a todos os que se sentiram ofendidos”. Como se os banqueiros tivessem sabido no último minuto que algumas das obras da “Queermuseu” no Santander Cultural, feita com a captação de R$ 800 mil por meio da Lei Rouanet, “desrespeitavam símbolos, crenças e pessoas, o que não está em linha com a sua visão de mundo”. Que vergonha, banco Santander!

Parte do público também pisou na bola, com uma enorme violência, sobretudo nas redes sociais. Os germes da intolerância e preconceito subiram à tona como para nos lembrar que o conceito de “arte degenerada” não pertence apenas aos nazistas. O MBL pisou na bola gravemente. Comemorou a censura como uma “vitória da pressão popular”, alguns tecendo um amálgama oportunista, vil e demagógico entre manifestações artísticas livres, partidos e ideologias. O movimento pediu até mesmo que os correntistas do banco, encerrassem as suas contas. Trata-se de uma nova forma de macarthismo na “caça às bruxas”  ou de sovietismo na “caça aos burgueses”. Dá na mesma, caça é caça. Em  vídeo com mais de 400.000 visualizações, um representante primitivo desse retrocesso visita o centro cultural com insultos dignos dos fascistas nas piores ditaduras. Que vergonha, facção e minoria de pequenos déspotas!

Até a próxima que agora é hoje e, mesmo para mim que nunca fui nostálgica, o Brasil da minha infância parece um paraíso!

A exposição ‘Queermuseu’, no Santander Cultural, em Porto Alegre