Todos somos filhos do Dia D

Hoje faz 80 anos que nosso pai, Abraham Louis Klinger (1921-1990), desembarcou na Normandia. Foi uma bravura que contribuiu para libertar a França e a Europa do jugo nazista, porém marcou a sua vida cruelmente, deixando sinais indeléveis, é claro, também em seus filhos. Creio que foi com ele que aprendemos, sem jamais termos tido consciência disso, e mesmo sem sua presença, o que é a coragem e a retidão. No pouco tempo em que vivemos juntos, antes de sua partida definitiva do Brasil, ele nos passou o valor da ciência e cultura, assim como o amor pelo aprendizado. Nada do que aqui está contado em sua memória – neste aniversário do desembarque – é ficção. Foi o que vimos, vivemos, ouvimos de familiares e amigos, e há pouco confirmamos, graças a um pesquisador alemão da Baviera que conseguiu nos encontrar. Hoje, dia 6, se não tivesse falecido tão cedo, nosso pai, enquanto herói de guerra, estaria na homenagem franco-americana em Colleville-sur-Mer, ao lado dos demais veteranos. Cerimônia comovente, simbólica e altamente política nesse momento mundial, com um discurso inesquecível do presidente Joe Biden (sem papel), 21 tiros de canhão e um lindo desfile da aviação americana. Na parte da tarde, a homenagem foi ainda mais emocionante, com vários chefes de Estado, entre os quais o presidente Volodymyr Zelensky, na qual o discurso do presidente Macron – justo quando falava no apoio à Ucrânia – foi coroado pelas cores lançadas pelos aviões da patrulha da França. “Todos nós somos filhos do desembarque”, disse ele sob aplausos.  A frase continua ecoando em nossas cabeças e em todas as rádios e televisões francesas.  

Joe e Jill Biden, Emmanuel e Brigitte Macron, entre centenas de personalidades e convidados, na cerimônia do 80° aniversário do Desembarque dos aliados na Normandia, no “Dia D”, durante a Segunda Guerra Mundial. A primeira parte da comovente homenagem aconteceu no Cemitério e Memorial Americano em Colleville-sur-Mer, com vista para a Praia de Omaha. (Foto de SAUL LOEB / AFP)

Como nosso pai, aos 21 anos, engajou-se no exército americano, tornou-se oficial participando da invasão dos Aliados durante a Segunda Guerra Mundial? Como chegou a ser governador militar de Wasserburg am Inn, na Baviera e, posteriormente, reconhecido como herói de guerra? Como é que este literário que interrompeu seus estudos (retomando-os na Universidade de Nova York, aonde retornou como professor de linguística), comunista na juventude, um dos fundadores do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) e da Casa do Povo em São Paulo, colaborador do Suplemento literário do Estadão, pintor herdeiro do Realismo social na maturidade, foi parar no Brasil e encontrou nossa mãe?

Papai nasceu numa família judaica de origem austro-húngara que, como tantas outras, depois da Primeira Grande Guerra imigrou para os Estados Unidos instalando-se no Brooklyn, em Nova York. Rochelle Dreyfuss, emérita professora de Direito da Universidade de Nova York, prima irmã querida que esteve aqui há alguns meses, contou-me os percalços romanescos dessa expatriação. Trocamos também muitas informações sobre o seu tio, nosso pai.

Nossos avós paternos tiveram três filhos, nesta ordem: Dorothy (mãe de Rochelle), Harold e Abraham Louis. O falecido tio Harold não teve filhos. Foi um médico e biólogo “nobelizábel”, PhD, professor de Genética Molecular e Pediatria no Albert Einstein College of Medicine, editor-chefe de uma revista científica importante e fundador da Sociedade Internacional de Citogenética e Genoma. Tia Dorothy, também falecida, era psicanalista. Meu pai, com a eclosão da Segunda Grande Guerra foi chamado e interrompeu seus estudos para, como outros milhares de jovens, servir no exército americano, alistando-se no dia 2 de julho de 1942.

Cinco meses antes do desembarque, ele já participava da preparação (Operação Netuno) da chamada Operação Overlord – uma das maiores de toda a História militar – o Dia D que marcou o primeiro dia da batalha da Normandia entre as forças alemães da Wehrmacht que a ocupavam e as tropas aliadas do SHAEF (Quartel General Supremo das Forças Expedicionárias Aliadas). Com a função de Major, posto de oficial (imediatamente acima de Capitão) da 4ª Divisão de infantaria, tendo atingido o grau de ajudante direto de ordens do general Dwight D. Eisenhower, papai desembarcou na Praia de Utah, no dia 6 de junho de 1944.

Soldados da 4ª Divisão de Infantaria (“Famous Fourth”, onde se encontrava nosso pai) desembarcam em Utah Beach, na costa da Normandia, em 6 de junho de 1944. Crédito: AFP/Arquivos

Hoje, compreendo cada vez melhor os seus relatos. Contou-nos a ansiedade que sentiu quando, no final, o desembarque foi adiado por causa do mau tempo. Dois dias antes, o gigantesco navio onde estava, saído do porto inglês, teve que dar meia-volta em mar cada vez mais revolto. Tarde da noite, Eisenhower anunciou finalmente que a decisão seria irrevogável: a desembarcação se daria no dia seguinte.

Poucas horas depois, Abraham Louis podia ver a armada, a mais extraordinária jamais composta, aproximar-se das costas francesas: 2 727 embarcações variadas carregando ou rebocando mais de 2 500 barcas menores para a saída dos soldados, escoltadas por 590 navios de guerra, entre os quais 23 cruzadores e 5 encouraçados. Ele nos poupou dos pormenores daqueles momentos cruciais e sangrentos, mas hoje eles estão em toda parte. Quantos livros, estudos e filmes documentaram a epopeia!

Soube apenas que, do navio, ele passou a uma barca e chegou são e salvo às areias normandas, quando foi atingido por estilhaços de granada nas costas, à altura da zona lombar. Acordou no hospital americano de campanha de Saint-Hilaire-Petitville, onde foi operado. Restabelecido, recusou-se a retornar aos Estados Unidos preferindo continuar o que tinha começado. Naquele momento, 3 400 americanos, 3 mil canadenses e igual número de civis tinham sido mortos ou estavam desaparecidos.

Assim, nosso pai atravessou a França, dirigiu-se à Baviera e, na jornada, matou vários alemães. Finalmente, tendo feito fuzilar um general, tomou Wasserburg am Inn, da qual tornou-se governador militar, aos 23 anos.

Wasserburg am Inn, na Baviera, cidade da qual meu pai foi governador militar no final da Segunda Guerra Mundial.

Estes fatos nos foram contados em parte por nosso pai e familiares, mas estão relatados nos estudos de Robert Obermayr, universitário que conseguiu nos encontrar há dois anos para obter informações. Ele pesquisa a resistência alemã, o período de ocupação dos americanos, a desnazificação e a reconstrução das estruturas democráticas em Wasserburg, liderada por seu prefeito Josef Estermann, um comunista bávaro. O projeto do pesquisador é retratar a relação de amizade entre Estermann e Abraham Louis que, segundo Obermayr (nós não sabíamos, nosso pai jamais nos contou) “falava o alemão perfeitamente”.

Num artigo que encontrou, assinado pelo padre de Wasserburg e publicado pelo jornal local em 1946, está escrito: “Particularmente notável foi o jovem e ativo oficial Abraham Louis Klinger que, como governador militar, organizou a administração com um trabalho preciso e rigoroso desde janeiro de 1946. Muitos de seus decretos serviram para restaurar a lei e a ordem e foram bem recebidos pela população. Outros, como a restrição da natação na piscina pública das 12h00 às 13h30 e das 19h00 em diante, não foram compreendidos, embora o governador os justificasse referindo-se a um trabalho ‘mais enérgico’. A medida mais drástica tomada pelo governo militar foi, sem dúvida, a de enfrentar a limpeza política de forma clara e decisiva.”

A proibição do uso da piscina de Wasserburg am Inn ninguém entendeu, mas estou persuadida de que meu pai reservara aquelas horas apenas para os americanos. Inteligente como era, por motivo de segurança evidentemente não teria querido que as pessoas das forças americanas de ocupação nadassem, condição na qual estariam desarmadas, e, portanto, expostas, próximas dos ex-súditos do Terceiro Reich.

Ainda segundo o universitário, Abraham Louis trabalhou ao lado do prefeito de Wasserburg por muito tempo e mais tarde testemunhou a seu favor, quando se suspeitou que Estermann fazia espionagem para a Gestapo. Foi o que ajudou o amigo de papai a ser absolvido no final. Na pesquisa dele há também uma outra história sobre Abraham, relatada por um escritor local, a respeito de sua busca por um novo administrador distrital depois que Estermann foi demitido. Espero ansiosamente o momento de ter acesso a ela.

Fernand Léger (1881- 1955), “Adieu New York” (Adeus Nova York), 1946. Obra inspirada no caos norte-americano do pós-guerra. Tela pertencente ao MAM do Centro Pompidou, em Paris.

Quando Abraham Louis voltou da guerra, a América não era mais a mesma. Ele retomou seus estudos, porém no imediato pós-guerra propagava-se o desemprego, a miséria, o caos. A guerra fria, a caça aos comunistas, o macarthismo em seu início, tudo isso levou-o a procurar um primo industrial, fabricante de persianas, para lhe propor uma representação. Eldorado! Uma vez que a palavra Brasil lhe soava como se definisse a única terra pródiga restante no planeta, era para lá que ele iria como representante das tais persianas.

Não hesitou nem mesmo em deixar a namorada a quem dei o nome fictício de Ruta Flicker, bastante parecido com o verdadeiro que não vou revelar aqui, mas foi bastante comentado na minha infância. Nove anos mais velha do que nosso pai, a experiência que ela possuía, era com a Haganá, a força clandestina da autodefesa judaica que se tornou o mecanismo central do Movimento Sionista até a criação de Israel em 1948.

Ruta fazia parte da Hadassah, a famosa Organização Sionista Nacional das Mulheres da América em Nova York, que teve um papel preponderante na imigração para a Palestina. Como todas as mulheres daquela estirpe, seus objetivos certamente não eram o casamento, filhos e um lar. Amantes, sim. De preferência belos, mais jovens, muito brilhantes. E militantes, de esquerda. Exatamente como papai.

Nosso pai, judeu, foi governador militar na Baviera antes de voltar para o Brooklin levando um quadro, um cachorro e um baú. O quadro o representava como governador militar: era o seu retrato pintado sobre o do oficial nazi que ele tinha prendido e mandado fuzilar (no reverso da tela podia-se ver ainda uma cruz gamada). Nessa pintura, que imitava a academia alemã do século XIX, Abraham Louis vestia o uniforme de major e segurava o fuzil com aquela expressão “bonapartiana” que nos era familiar.

Nossos pais, nos anos 1950.

Do que lembro do quadro e de nosso pai, pelo que me foi descrito, pelas várias fotos que possuo e pelo que me é contado até hoje por alguns amigos da família, Abraham Louis, fisicamente, era um misto de Napoleão Bonaparte, Orson Welles e Marlon Brando. E ainda por cima o seu corpo avantajado exibia não uma tatuagem, mas as cicatrizes da granada que estourou em suas costas. Não me admira que Ruta, aos 32 anos e minha mãe, aos 18, tenham caído perdidamente apaixonadas.

Parece que Ruta o seguiu até mesmo ao Brasil. Imagino que, enquanto ela organizava reuniões de arrecadamento de fundos para o Estado hebreu nas principais capitais brasileiras, ele tentava se estabelecer em São Paulo. Sei que a comunidade judaica o recebeu de braços abertos por causa de seu passado heroico, sionismo, carisma pessoal, sua lábia e cultura. Meu primeiro editor, Jacó Guinsburg – o inesquecível e estimado fundador da Editora Perspectiva, em 1965 – o conheceu muito bem. Antes de falecer entregou-me os escritos de Abraham Louis sobre August Strindberg e contou-me bastante sobre essas lembranças.

Em todo caso, foi numa dessas reuniões militantes e sociais que minha mãe encontrou o seu príncipe. Não faltaria o uniforme de gala de oficial condecorado, a elegância, a postura, a verve e sobretudo o saber que as centenas de livros devorados a tinham feito admirar. Não faltaria a certeza de que nenhum daqueles moços milionários, feios e sem graça que lhe tinham sido apresentados chegava aos pés do preeminente americano. Noivaram e se casaram em três meses. Fui concebida na lua de mel.

Queria acreditar que meu pai era como os outros

Sempre associei as pessoas a pequenas particularidades que, se não tinham importância em si, deviam servir como referência simbólica à personalidade delas em relação a mim. Evidentemente, existem alguns destes pormenores que liguei a meu pai. O apelido dele era Abe, diminutivo americano de Abraham, provavelmente porque a minha avó teria gostado de dar-lhe um nome bíblico quando ele nasceu. No Brasil ninguém o chamava assim. Ele era Abe para os íntimos, Sr. Abe para os conhecidos e Seu Abe para os empregados, nome sempre pronunciado à maneira americana, “eibe”.

Para mim, que ainda queria acreditar que meu pai era como os outros, Abe diferenciava-se apenas por quatro coisas: as roupas, os óculos, o perfume e o automóvel. Quando estava em sua fazenda de café no Mato Grosso não sei, mas nos momentos em que se encontrava na cidade, como proprietário de indústria ou intelectual que ia entregar seus artigos para serem publicados no Suplemento literário do Estadão, andava invariavelmente de terno.

Dependendo da estação, estes eram em príncipe-de-gales, tweed ou pied-de-poule, elegantemente combinados com gravatas de crochê. Não me lembro de tê-lo visto uma só vez sem o lenço alvo e repassado que saía em ponta da algibeirinha do peito. Nunca vi homem mais elegante e sei que as mulheres da família e algumas da sociedade artística que nossos pais frequentavam também pensavam assim.

Eu, criança judia, tive cachorro de general nazista

O quadro, o cachorro e o baú para mim são inesquecíveis. Quando iam para a guerra, os simples soldados levavam uma mochila. Já os oficiais tinham o direito de portar um baú de metal. O baú de Abraham Louis, que ele trouxe de volta consigo (e todos vimos), continha as armas de fogo, espadas e uniformes dos soldados e oficiais de quem tirou a vida. Eram os seus troféus.

Wotan e eu

E o cachorro, um pastor alemão que se chamava Wotan, o deus-personagem do Anel dos Nibelungos de Wagner, foi o companheiro querido da minha infância. Eu, uma criança judia, vivendo entre duas famílias que escaparam do Holocausto, tive como amigo um cachorro de nome wagneriano, herdado de um general nazista morto pelo meu pai na Baviera. E isso, no Brasil.

Um cachorro, aliás, que Abraham Louis, penalizado, havia recolhido, pois o ainda pequeno Wotan, tendo perdido o mestre alemão, seguiu seu justiceiro executor até o trem que partia definitivamente a Munique, a fim de ele tomar o avião de volta a Nova York. Já no cais, meu pai agarrou o Wotan e upa! Ambos saltaram para dentro do vagão.

Abraham Louis faleceu aos 69 anos em Lisboa e está enterrado em um dos cemitérios nacionais militares do Estado de Nova York, na parte reservada aos heróis de guerra. A sua história “e muitas e muitas outras” me inspiraram algumas crônicas e, depois, um romance inteiro. Até a próxima, que agora é hoje, dia em que esta lembrança sai do âmbito pessoal para se inscrever numa experiência histórica. Razão para contá-la no 80º aniversário do Dia D!

Vídeo emocionante da cerimônia de hoje, 6 de junho.

 

Soldados americanos da 4ª Divisão de Infantaria desembarcam na Praia de Utah.

9 comentários em “Todos somos filhos do Dia D

    1. Obrigada, amado irmão! Às vezes leva muitos anos para recompor as pecinhas do puzzle. Mas vale a pena o trabalho de análise e investigação. Mesmo incompleta, toda restituição sempre acaba por nos fazer saber um pouco mais sobre nós mesmos. Pena que nosso pai morreu numa época em que não existiam ainda os festejos anuais de comemoração do Dia D. O presidente De Gaulle só reconhecia os resistentes francêses. Felizmente, essa falta foi reparada e a justiça é feita agora a cada ano. Se não ouviu, espero que você possa ouvir o discurso de Biden, presidente do seu país 🇺🇸🤓 Corajoso, lúcido e muito justo. E improvisado. Não leu uma linha! Não agradou o ditador Putin, os demais chefes de estados autocráticos e menos ainda Trump e sua relação mais do que ambígua com a Rússia. Com Trump, a Europa (filha do Dia D) estará em perigo. Viva a democracia! Beijos!

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  1. Hoje na Normandia, nas praias do “Dia D”, os Presidentes Biden e Macron proferiram discursos históricos que foram dirigidos não só aos europeus, mas a todo o mundo ! Esperemos que o chamado “Sul Global” ouça as lições de liberdade e democracia que vêm de um passado ao qual deve a sua existência…

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    1. Pura verdade! Mas duvido um pouco que a orelha dos “ideólogos” do Sul Global, aqueles que deixam a ideologia pensar por eles, funcione. Geralmente, os que advogam a “mudança da ordem mundial” como o presidente brasileiro, o russo e outros, são surdos 🤷‍♀️

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    1. I’m the one who thanks you for your words, dear cousin-sister! So happy you enjoyed the chronicle. Our surprising common family history is very rich, full of twists and turns. The mishaps of our grandparents’ expatriation, told us by you, could make a movie! We hope to see you and Robert again soon 💕

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