Philip Guston, Ku Klux Klan e a desinteligência da censura

Os jornais brasileiros não noticiam nem analisam, porém já há algum tempo cresce uma grande celeuma que movimenta artistas, críticos, curadores e outros profissionais do mundo da arte contra importantes museus de Washington, Londres, Boston e Houston que tomam o caminho covarde do “politicamente correto” e da censura. De fato, shame on them!

 

Imagem: “Riding Around”, pintura de Philip Guston, exposta em Frankfurt em 2013. Foto: Daniel Reinhardt. Picture Alliance. DPA

 

Depois de outras gafes, mais uma. Não está no comunicado de imprensa, mas o motivo é claro: quatro dos maiores museus do mundo decidiram de comum acordo adiar para 2024 uma retrospectiva dedicada a Philip Guston, grande mestre da pintura americana do século 20, porque algumas de suas pinturas retratam figuras encapuzadas da Ku Klux Klan.

Os diretores da National Gallery of Art de Washington, Tate Modern de Londres, do Museum of Fine Arts de Boston e Museum of Fine Arts de Houston anunciaram que a exposição seria adiada “até o momento em que” (eles acharem que) “a poderosa mensagem de justiça social e racial que está no centro da obra de Philip Guston possa ser interpretada mais claramente”.

Em suma, os covardes diretores temem que a dúzia de pinturas que mostram os homenzinhos do KKK sejam perturbadoras demais na época do movimento Black Lives Matter e causem protestos na frente de suas portas. Shame on them!

Philip Guston, entre o dilema de Beckett e o tormento de Kafka

Não é à toa que Philip Guston foi um dos artistas americanos que mais influenciou as novas gerações. A sua obra, que continua eternamente contemporânea, causa impacto pela singularidade extraordinária, mas misteriosamente ficou desconhecida muito tempo na Europa.

Este pintor americano, amigo de Pollock e de De Kooning, rompeu com o expressionismo abstrato em 1968 para voltar à figuração. A reconversão, encarada pela crítica da época como uma «traição», talvez explique o mistério.

Mesmo os brasileiros viram o trabalho de Guston quase vinte anos antes. Já em 1981, um ano depois da sua morte, Henry T. Hopkins, então diretor do MAM de São Francisco, trouxe à 16a. Bienal de São Paulo uma série de 31 telas importantes. Elas abarcavam a última década da produção deste artista da escola de Nova York que havia participado da mesma aventura dos discípulos do crítico Clement Greenberg, mas que havia retornado ao figurativismo com uma nítida influência do muralismo mexicano, Piero della Francesca, Giorgio de Chirico e da história em quadrinhos. E com que liberdade!

Segundo Hopkins, Guston se debatia entre o dilema beckettiano e o tormento kafkiano. A definição é perfeita, porém essa liberdade e virulência lhe valeram o ostracismo por muitos anos. Antes de influenciar artistas como Baselitz, Guston foi praticamente proscrito da cena americana como um «mau pintor». Apenas poucos, como o crítico Harold Rosenberg ou o escritor Philip Roth, adivinhavam a turbulência contida nessas pinturas. Segundo Roth, « Guston imprimiu as imagens populares de uma tal tristeza, de uma tal urgência artística, que ele deu forma à uma nova paisagem do terror específicamente americano». Afinal quem, senão Roth, poderia entender melhor uma visão do terror americano?

Philip Guston, além do mais, teve a grande qualidade de ser inclassificável, não pertencer a nenhuma categoria da arte. Foi de uma insolência jubilosa não apenas porque a sua obra não estava de acordo com as imagens esperadas da pintura americana, mas da pintura em geral. Não se parece com nada que tenhamos visto até agora.

“The Studio” pintura de Philip Guston. Foto: Genevieve Hanson/© The Estate of Philip Guston, courtesy Hauser & Wirth

Na última mostra que vi de seu trabalho, no ano 2000 no Centro Pompidou, em Paris, 50 trabalhos de 1947 a 1979 permitiam seguir o seu processo : do início figurativo influenciado por Max Beckmann à abstração; e da abstração novamente à imagem. O mais interessante é que, apesar das mudanças aparentes, o processo de Philip Guston é sempre o mesmo. Até a abstração que o desgostava tão profundamente, está impregnada da sua linguagem pessoal.

O que é esta linguagem pessoal ? É uma linguagem impura. Permeada da sua experiência de vida e da sua angústia, que são quase antiestéticas. A aventura desse imigrante judeu nascido no Canadá começa em Los Angeles, no começo dos anos 30, ao lado de Pollock com quem Guston fez amizade nos bancos de uma escola de arte. Há a tragédia pessoal do suicídio do pai, porém, mais do que por Pollock, ele foi marcado igualmente pela política, pela depressão, pela Ku Klux Klan, pelo realismo social de Ben Shan e pelo muralismo mexicano.

A sua linguagem é a da dúvida e da transição. As imagens, quer sejam abstratas ou figurativas, são obsessivas, rápidas, desfeitas em tramas cerradas de pinceladas entrecruzadas e sempre sangrentas. “Eu estava cansado de toda essa pureza. O que eu queria era contar histórias”, dizia ele, referindo-se à action painting que tratava de diminuir o tempo do gesto pictórico à maneira japonesa.

A partir de 1968, portanto, ele não fazia senão contar histórias. O resultado foram centenas de recapitulações das figuras emblemáticas de sua velha mitologia pessoal: solas de sapatos com pregos, o livro que se transforma em casa, a mão que segura o pincel e o cigarro, as cabeças cortadas, os encapuchados. Tudo isso dentro de um clima cada vez mais tenebroso, com o espaço da tela sempre dividido entre a terra e o céu. Todos os clássicos pertencem às suas figuras e composições. Professor de arte em grandes universidades, ele era um erudito que rimava metafísica com trivialidade, um “mandarim que se fazia de idiota” como dizia injustamente Hilton Kramer, crítico falecido do New York Times.

No século 21 pudemos compreender melhor esse artista marcado pela filosofia existencialista e pela leitura de Camus em particular. Tivemos mais possibilidades de olhar o rude manifesto de luto, de revolta e de desencanto de quem parou de acreditar no progresso e que, ao contrário dos artistas Pop, nunca teve confiança na sociedade de consumo. Agora temos a faculdade de entender que um verdadeiro sôco no estômago, enquanto arte, não contém necessáriamente a “visibilidade pura” de gestos estéticos como os de Barnett Newman ou de Mark Rothko. Goya está aí para provar.

Até a próxima que agora é hoje e sabemos que a trangressão é uma “outra” realidade vivida! No caso de Guston, trágicamente vivida também com o hediondo, o patético e o grotesco. A censura aqui, mais do que uma gafe, é uma desinteligência ética e estética.

O novo souvenir de Paris

O Centro Pompidou em Paris abriga o Museu Nacional de Arte Moderna, com uma coleção à altura do MoMA em Nova York ou da Tate em Londres. Suas exposições extraordinárias me inspiram sempre. E, no entanto, acabo de receber um press release propondo o hashtag #SOUVENIRSDEPARIS para “descobrir uma ação surpreendente que atrairá os turistas estrangeiros”. Com isso, a instituição quer alçar-se – segundo ela – à altura da Torre Eiffel, Basílica de Sacré Cœur, Catedral de Notre-Dame e do Arco do Triunfo. Pobres de nós e do que resta de nossa vida espiritual. Pobres artistas como Ad Reinhardt (1913-1967) para quem um museu devia ser “a tumba do silêncio”…

Quando um museu torna-se ponto turístico, pode a arte manter para o público, a sua função e seus objetivos? Podem os artistas e a sua arte transmitir mais do que se fossem uma publicidade de si próprios?

A glória era de Deus e não dos homens

No Ocidente, exceto durante um curto lapso de notoriedade individual na Grécia do século V a.C., os artistas foram fundamentalmente incógnitos até o fim da Idade Média. E nesses períodos – quando a arte era usada originalmente para a mágica e o ritual- a posição social do artista era a de artesão. A arte medieval não precisava de artistas individuais que almejassem a fama: a glória do que se conquistava era de Deus e não dos homens.

Em certas cidades italianas do século XIV já se pensava, no entanto, de forma diferente. Ali, juntar fortunas pessoais poderia representar uma glória muito maior, e o desejo de identificar e discutir o artista era, então, uma consequência natural. Grosso modo, foi essa a postura adotada pelos intelectuais do Renascimento, que estavam justamente providenciando os tijolos para a construção da ideologia do capitalismo.

Em vez de liberação, o anonimato tornou-se alienação

A progressão constante do artista meio-divino-meio-gênio culminou com o expressionismo na primeira metade do século XX e adquiriu uma feição de reprise tragicômica no neoexpressionismo dos anos 1980. Entre os dois expressionismos, o século passado viu a ascensão do intelectualismo na prática da arte. As primeiras manifestações podiam ser relacionadas à política de massa e as seguintes à cultura de massa. A diferença foi imensa.

Sabemos que o sistema capitalista sempre encontrou meios para impor a cultura “da conveniência e do espetáculo”, de cima. De lá para cá, passando pela especulação no mundo financeiro, infelizmente, o anonimato, entre outras coisas, é mais um fator de alienação do que de liberação. No presente, o sistema da arte não funciona sem estrelas e o turismo também não.

Até a próxima que agora é hoje e se as instituições se derem a concessões perigosas como essa, será difícil continuarmos a repensar os objetivos da arte, seus valores em termos mais profundos e imateriais; ou, pelo menos, compreendê-la como uma resposta mais plausível à nossa nova época! Não basta trazer o público à arte, para efeito de bilheteria. É preciso primeiro, por meio da educação, levar a arte às pessoas, o que não ocorre automaticamente, por captação e bugigangas “atraindo turistas”. Transmitir sem angariar: penso que é este o papel e o dever da instituição.