Para o mundo da arte, o italiano Arturo Schwarz foi o exegeta, editor e marchand de Marcel Duchamp (1887-1968). Para a 19a Bienal Internacional de São Paulo que organizamos em 1987, ele foi o colecionador que possibilitou a primeira exposição do artista no Brasil, por meio de um conjunto importante de obras, depois da meteórica passagem do único trabalho Jogadores de Xadrez (1911) pela 2a Bienal (1953-54). Schwarz faleceu nesta quarta-feira, dia 23, em Milão, aos 97 anos. É um pouco como se Duchamp morresse mais uma vez.
Sala “Marcel Duchamp” na 19a Bienal de São Paulo, em 1987.
Três anos depois dos contatos preliminares de Arturo Schwarz com Luiz Villares (1930 – 2020) e Walter Zanini (1925 – 2013), presidente e curador-geral da 16a e da 17a Bienal de S. Paulo, discuti com este estudioso um projeto que coubesse dentro da tensão Utopia versus Realidade, sobre as quais eu queria provocar alguma reflexão.
Não foi fácil. O livreiro, galerista, escritor, anarquista – homem exigente de pensamento impetuoso – tinha tantas paixões quanto chapéus: arte, poesia, política e esoterismo, sem esquecer o seu gosto pela polêmica. “Sou um velho surrealista”, dizia.
Não conheci o seu apartamento, mas ouvi dizer que havia ali uma atmosfera estranha e fascinante, à maneira de Umberto Eco.
Nascido em 2 de fevereiro de 1924, em Alexandria, filho de pai engenheiro químico alemão e mãe italiana, Arturo Schwarz passou os primeiros vinte e cinco anos de sua vida no Egito. Estudante de medicina, ingressou no movimento comunista egípcio, antes de entrar na Quarta Internacional trotskista. Preso em 1947, ele foi parar em uma prisão de Hadra (Alexandria) e, depois, levado para o campo de Aboukir, antes de ser deportado no ano seguinte para a Itália.
Em Milão, o jovem Schwarz deu continuidade à atividade editorial iniciada em 1945, publicando coleções de poesia contemporânea, escritos políticos e livros de artista, enquanto escrevia sob o pseudônimo de Tristan Sauvage. A partir da década de 1950, começou a expor artistas em sua livraria, transformada em galeria em 1961. Fiel de André Breton (1896-1966), Arturo Schwarz exibia os surrealistas, claro, Picabia (1879-1953) ou Konrad Klapheck, mas também os Novos Realistas apoiados por Pierre Restany (1930 -2003), como Arman (1928-2005), Martial Raysse e Daniel Spoerri.
Porém, ele defendia principalmente Marcel Duchamp, cuja monografia e catálogo completo escreveu de 1959 a 1969, enquanto publicava treze ready-mades históricos, sete dos quais haviam desaparecido.
Um ex-trotskista que optou pelo mercado
Aos que se espantavam com o fato de um ex-trotskista ter optado pelo mercado, Arturo Schwarz retrucava que “comprava e vendia obras para ajudar os artistas”. Man Ray (1890-1976), foi um deles. Este se tornaria um dos pilares de sua galeria.
Em 1975, Schwarz fechou o seu espaço para se dedicar apenas ao estudo e à escrita. A partir de então, publicou cerca de vinte obras de poesia e ensaio, continuando, ao longo dos anos, a vender a sua enorme coleção. Arturo Schwarz ganhou muito e também deu muito. Em 1972, doou seus treze ready-mades de Duchamp ao Museu de Israel, em Jerusalém. Em 1991 transferiu igualmente os seus arquivos. E, sete anos depois, transmitiu ao mesmo museu a posse de mais de 700 obras dadaístas e surrealistas.
Cidadão israelense desde o início dos anos 2000, este entusiasta da cabala cultivou um judaísmo fundamentalmente secular e subversivo, como ficou evidenciado em seu ensaio “Também sou judeu. Reflexões de um ateu anarquista.”(2007).
Arturo Schwarz permaneceu curioso e ativo até o final. Ele achava uma imbecilidade qualificar idosos célebres como “has been”. Numa entrevista, declarou: “Quantos anos tinham Churchill e Roosevelt quando conduziram os seus países à vitória?”
Adeus caro Arturo, bom dia querido leitor! Até a próxima que agora é hoje, e o mundo também é dos idosos!
Arturo Schwarz por Enrico Baj
Arturo Schwarz fotografado por Timothy Greenfield-Sanders
Arturo Schwarz por Max Hamlet Sauvage
Arturo Schwarz e Peter Halley. Foto: Timothy Greenfield-Sanders
Arturo Schwarz por Konrad Klapheck
Marcel Duchamp e Arturo Schwarz
Catálogo da “Exposição Marcel Duchamp” na 19a Bienal de São Paulo, 1987
Como dizia Jorge Luis Borges, ‘as ditaduras fomentam a opressão, o servilismo e a crueldade; mas o mais abominável é que elas fomentam a burrice.’ Pelo jeito, no Brasil, a antiga ditadura militar continua a fomentar a burrice, muitos anos depois, até mesmo quando a democracia já foi restaurada, ainda que imperfeitamente. A comemoração (ou ‘rememoração’, o que simbolicamente é a mesma coisa) do 31 de março de 1964 foi proibida e depois liberada por Tribunal de Justiça, selando uma perigosa união entre poderes. O desejo de festividade só confirma as palavras de Borges por sua imbecilidade revisionista, passadista, e pela tola provocação ideológica. Nesta data, eu poderia lembrar os inúmeros acontecimentos funestos para as artes plásticas, como o boicote que atingiu a 10a edição da Bienal de São Paulo em 1969. Mas decidi trazer à memória sobretudo um fato “artístico” que me marcou de maneira indelével. É a minha maneira – eu que conservo neutralidade desde a idade adulta, sem aderir à esquerda ou à direita – de lembrar aquele (mais do que comprovado) golpe que deu início a um regime ditatorial criminoso de 21 anos. Penso que o dia de hoje, de fato, jamais deve ser esquecido. Para que nunca mais se repita.
Imagem: “Penhor de Igualdade”. Lincoln Volpini, 1976.
Pode-se lembrar da perseguição, censura, tortura e arbitrariedades que sofreram inúmeros artistas e intelectuais, nem sempre de esquerda, de forma alguma “terroristas”e às vezes nem mesmo “subversivos”. Fazem parte da história da arte brasileira os acontecimentos desastrosos a partir de 1964 e os que se seguiram ao duríssimo AI5 (Ato Institucional n°5) emitido pelo presidente Artur da Costa e Silva em 13 de dezembro de 1968, como o boicote nacional e internacional que atingiu a 10a edição da Bienal de São Paulo, em 1969. Uma petição (“Non à la Biennale”) somou centenas de nomes de toda parte, tendo sido assinada até mesmo por Pablo Picasso. Joan Miró chegou a oferecer a exilados brasileiros o dinheiro da venda de algumas de suas telas. O diretor do museu Stedelijk de Amsterdã, Edy de Wilde, o conservador sueco Pontus Hultén, o crítico francês Pierre Restany, entre muitos outros, fizeram parte da organização do movimento.
Logo na 9a bienal de 1967, Quissak Jr. – também poeta, escritor, filósofo e professor – havia sofrido ameaça de prisão por causa de seus “Polípticos Móveis da Gênese da Bandeira Nacional e Bandeira Brasileira”, telas que, ironicamente, hoje pertencem ao Palácio dos Bandeirantes do Governo do Estado de São Paulo mas que, segundo os militares “utilizava o símbolo para fins não patrióticos”. No mesmo dia da inauguração, a Polícia Federal retirou uma obra de Cybele Varela por considerá-la “antinacionalista” e “subversiva”.
O Salão Nacional de Arte Moderna no MAM do Rio sofreu o mesmo tipo de arbitrariedade. Muitos artistas, entre os quais Sonia Von Brusky, tiveram trabalhos censurados em sua 19°edição e o museu foi interditado. Instituições atingidas pela censura: o 4º Salão de Arte Moderna de Brasília (1967) foi ameaçado e cancelado por causa da obra “Guevara, Vivo ou Morto”, de Claudio Tozzi; a 2ª Bienal da Bahia (1968), em Salvador foi fechada por decreto militar sob alegação de apresentar obras de conteúdo erótico e subversivo, dez obras foram apreendidas e os organizadores, presos. Conhecidos artistas da exposição urbana coletiva “Do Corpo à Terra” (1970) em Belo Horizonte, tiveram que fugir e deixar a cidade.
A chamada “Bienal do boicote” (1969) tinha tudo para ser grandiosa. Ciccillo Matarazzo queria que a edição fosse tão importante quanto a 2ª Bienal de São Paulo, quando a cidade comemorou os seus 400 anos (1953/54). Ocorreu o contrário. Foi o início de um longo declínio durante a ditadura militar que se estendeu até os anos 1980. Mesmo o acervo da Fundação Bienal possui pouquíssimos documentos sobre este período negro da nossa história. Apesar do constrangimento, muitas personalidades atuantes (e militantes), entre as quais o crítico, cientista e professor Mário Schenberg, os artistas Carmela Gross, Marcello Nitsche, Claudio Tozzi, Mira Schendel, José Roberto Aguilar e Ione Saldanha tiveram a lucidez de escolher participar da mostra. Não porque fossem indiferentes ou alienados politicamente. Muito ao contrário. O que queriam, na verdade, era exercer a liberdade da arte.
Naquele momento, os mais importantes intelectuais e criadores começaram a deixar o país e se exilar, como Ferreira Gullar, Fernando Henrique Cardoso, Oscar Niemeyer, Sergio Camargo. Alguns deles, como Fábio Magalhães, Arthur Luiz Piza, Mário Pedrosa, e mais tarde Sérgio Ferro (que havia ficado um ano na prisão), encontrei em Paris. Os brasileiros Carlos Vergara, Antônio Manuel, Evandro Teixeira e Humberto Espíndola – convidados para a 6a Bienal de Paris organizada por Jacques Lassaigne (de setembro a novembro de 1969 no Museu de Arte Moderna da cidade) – tiveram a sua coletiva fechada pela polícia, no Museu de Arte Moderna do Rio. Niomar Muniz Sodré, diretora do museu, foi presa causando comoção no meio artístico brasileiro e internacional.
Artistas como Cildo Meireles, Antonio Dias, Ivan Serpa, Hélio Oiticica, Antonio Henrique Amaral, Artur Barrio, Sergio Sister, Nelson Leirner, Tomoshigue Kusuno, Alex Flemming, Lygia Pape, Hudinilson Jr., Mário Ramiro, Rafael França (do grupo 3Nós3) realizaram obras fortemente contestadoras sobre as quais, em sua maioria, escrevi. A repressão aumentava com os anos até o arrefecimento em meados dos anos 1980, a opinião internacional se fazia ouvir. Todos os grandes jornais internacionais da época apontavam o perigo que corriam artistas e instituições por causa da situação política no Brasil.
Sofrimento, medo e revolta
O assunto vai muito longe, mas decidi trazer à memória principalmente uma carta que enviei para que fosse lida por um dos participantes das palestras sobre a censura na Funarte, no dia 2 de abril de 1998 no Rio de Janeiro. Nela, eu relatava a minha experiência enquanto membro do júri do IV Salão Global de Inverno de Belo Horizonte, em 1976, junto com o crítico e historiador Frederico Morais, e os artistas Rubens Gerchman (1942-2008), Mario Cravo (1923-2018) e Carybé (1911-1997). A narração do “Caso Lincoln Volpini”, do qual partilhamos os dissabores, foi a minha maneira de apoiar o evento carioca.
Além de Volpini – condenado a um ano de prisão pelo Conselho Permanente de Justiça da 4a Região Militar de Juiz de Fora –, Frederico Morais foi o mais prejudicado, pois ele havia presidido o nosso júri que premiou a obra do artista naquele Salão. O desfecho do processo para ele, Rubens Gerchman, Mario Cravo e Carybé, foi diferente do meu. Um filho de cinco anos adoentado que estava comigo, me fez deixar a capital mineira pouco antes do final do nosso trabalho de seleção. Não participei da deliberação para a premiação.
O fato de ter sido excluída por motivo de saúde de um processo que durou dois anos, não me afastou do sofrimento, medo e revolta durante o período dos interrogatórios na Polícia Federal, na superintendência de São Paulo. Mesmo que eu não a tenha premiado, apenas selecionado, lembrava-me da obra que depois foi retirada da galeria do Salão Global, realizado em Ouro Preto, por ordem da polícia. Esta alegou que o trabalho divulgava conteúdo subversivo porque mostrava a bandeira brasileira (sem a frase “Ordem e Progresso”) e a inscrição “Viva a guerrilha do Pará – 73”.
Eu me sentia solidária aos meus colegas de júri e àquele jovem pintor mineiro de 24 anos, estudante da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais, a quem os policiais recomendavam fazer uma arte “pura”, como se estivéssemos revivendo os tempos dos “degenerados” na Alemanha nazista. Nazismo, diga-se de passagem, que o ministro das Relações Exteriores – pelo visto mais um ignorante adepto das teorias conspirativas – identifica como movimento de esquerda, quando o “nacionalismo”, a “arte pura”, todas as características e a ideologia daquele partido são considerados no mundo civilizado, como de extrema-direita. Tanto que os neonazistas em todos os lugares são unicamente agrupamentos de extrema-direita.
Escrevi: “ficará marcado para sempre, o momento de perplexidade e, em seguida, de horror – foi pouco depois da morte de Wladimir Herzog –, em que vi a Polícia Federal bater à minha porta para me encaminhar a interrogatório. Porque tive o bom reflexo de não recebê-los e, ao invés disso, telefonar ao meu editor no Estadão, fui alertada sobre o perigo e aconselhada a aguardar imóvel a chegada de um advogado. A polícia não podia me levar sem ordem de prisão. Rapidamente veio o dr. Aloisio de Toledo César, advogado e jornalista (hoje secretário de Justiça e Defesa da Cidadania do Estado de São Paulo), que – a pedido do dr. Ruy Mesquita – me acompanhou até as dependências da Polícia Federal, onde passei a tarde e parte da noite, e para onde voltei ainda várias vezes, sempre acompanhada dele. O ambiente, a tensão, a pressão, o absurdo do teor, e também a forma como as perguntas me foram feitas, eu só tinha visto na literatura de Kafka, Dürenmatt, Malaparte, e nos filmes de Solanas e Gavras, entre outros.”
O patriotismo é o último refúgio do idiota
Imagino o que este momento tenha significado para Rubens Gerchman, Mario Cravo, Carybé e sobretudo para o jovem artista que nas décadas seguintes radicalizou-se, o que se pode entender. Eu conhecia e admirava a militância de Frederico Morais em favor dos direitos do homem, por meio de uma coerente atuação política e artística. Mesmo assim, como já disse, mantive neutralidade, sem aderir à esquerda ou à direita. A minha experiência limitava-se à ação estudantil no final dos anos sessenta, à uma vivência pessoal sem dúvida assustadora durante a prisão, o interrogatório, a queima de livros e a tortura de meus amigos e de meu primeiro marido em 1970, e à censura de partes de uma ou duas matérias minhas pelos interventores federais na imprensa paulista. Ali, mais uma vez, o dr. Ruy Mesquita, como forma de protesto, fazia publicar as famosas receitas e os poemas de Luís de Camões… De certo modo, naquele período de chumbo, o dr. Ruy foi o nosso anjo da guarda.
Acredito que o “Caso Lincoln Volpini” tenha marcado os meus colegas da mesma maneira indelével que a mim. Tanto é que, a cada ano, o 31 de Março traz de volta o gosto amargo daqueles tempos obscuros. Na verdade, os falsos ou pseudo-valores que sustentavam as “Seguranças Nacionais” – e que hoje sustentam igualmente o moralismo conservador, o passadismo e a mentalidade revisionista – enquadram os artistas para mascarar a própria fragilidade. É justamente fazendo isso, que eles acabam, ao contrário, por se revelar ainda mais fracos. Então, como num círculo vicioso, precisam, de novo, encontrar outra vítima para sobreviver. É por isso que as atrocidades – que hoje em democracia, ainda são apenas despropósitos -, se repetem ad infinitum.
Samuel Johnson, famoso escritor e pensador inglês do século 18, falava que “o patriotismo é o último refúgio do idiota”. Mas dizem que se começa sempre por ser idiota, antes de ficar imbecil; e palerma, antes de ficar louco. E que a estupidez que aparece depois da loucura não raro descamba na imoralidade. É o que temos presenciado nos últimos meses.
Até a próxima que agora é hoje, devemos ficar vigilantes. O Estado de Direito ainda é frágil no Brasil. Precisamos, sim, comemorar esta data. Do mesmo modo como se faz com outros crimes, como o Holocausto, que violaram os direitos fundamentais dos homens, inspirados por motivos políticos, filosóficos, raciais ou religiosos. O golpe militar, golpe mais do que comprovado que vivemos na pele e que deu início ao regime ditatorial criminoso de 1964 a 1985, jamais deve ser esquecido. Para que nunca mais aconteça!
Como os cartunistas da época driblaram a censura para falar do boicote à 10ª edição edição da Bienal de São Paulo. Charge de Mino. A Tribuna (7 de outubro de 1969)Charge de Mino. A Tribuna (8 de outubro de 1969)