O rei e eu

Para assistir à uma coroação, entre outras coisas, é preciso cuidar da vista. Assim, um dia antes da cerimônia, cumpri o dever bianual de visitar a oftalmologista.

Rainha Elizabeth I da Inglaterra, artista desconhecido, (c.1600).

Como é longe e não há metrô sem, no mínimo, três trocas de estação, chamei Uber que está em promoção, com desconto de metade, provavelmente por causa da concorrência. No circuito periférico, sirenas. Carro e motos de polícia, cortam-nos perigosamente. O motorista comenta:

“Puro teatro! São os ‘oscarizáveis’…”

Depois de dois anos e cinquenta e cinco minutos de percurso, notei várias modificações no consultório que, hoje, virou uma espécie de usina informatizada, onde somos recebidos, examinados e diagnosticados em série, não como indivíduos mas, como pares de olhos ambulantes.

Tudo é conectado de cabo a rabo, as informações chegam diretamente no computador da oculista e, curiosamente, a maior parte dos portadores de olhos sai com uma pasta luzidia contendo instruções pormenorizadas. Sinal de que, em breve, sofrerá alguma operação. Intimamente, desejei boa sorte para uns 14, rezando para não ganhar, eu também, uma pasta.

Olho por olho

A mudança “mais visível”, pode-se dizer, é uma grande televisão na parede da sala de espera. Ali, é projetado um vídeo pedagógico, com várias partes: desde como é feita a cirurgia de catarata até a colocação de lentes de contato. Antes das legendas finais, aparecem a oculista mostrando os lindos dentes durante vários minutos, e sua equipe. Todos, bastante “oscarizáveis”.

Tenho o título pronto : Olho por Olho, Dente por Dente. Só de assistir e ver as pastas em papel glacê sendo entregues, os que ainda não foram atendidos já se perguntam se não é melhor ficar, de vez, sem enxergar.

Mas há também boas novas: não se pinga mais aquelas gotas para dilatar a pupila. Pelo menos, não de maneira sistemática. E o vendaval que sopravam no nosso olho, virou um simples ventinho.

Outra novidade: a especialista-chefe e seus lindos dentes em pessoa, aparecem oferecendo chocolates. Fiquei encantada… Não por muito tempo. Logo, o meu vizinho sussurrou à mulher que “a doutora fazia aquilo para disfarçar o mau hálito dos pacientes”.

Simpatia de aeromoça

“Madame Leirner!”

Primeiro sobressalto. Sigo a assistente alta e loira, a mais “oscarizável” da equipe. Depois da perquirição com aparelhos, ventinhos e tudo mais, volto à sala de espera. Rapidamente enfio o nariz no celular para evitar assistir, agora, à parte apavorante do vídeo sobre “como é o olho por dentro”. Segundo sobressalto:

“Madame Leirner!”

Desta vez é a própria, mascarada, quem me chama. Já em sua sala, pergunta com a mesma simpatia de aeromoça, com a qual ofereceu os chocolates:

“Como vai a senhora?”

Primeira gafe:

“Tudo bem, e a senhora?”

Receita de lágrimas

Cara feia e, no final da consulta, outra pergunta:

“Quer uma receita de lágrimas? É reembolsável pelo ‘Estado francês de bem-estar social’.”

“Não, obrigada. Tenho suficientes e usado bastante, visto o estado de coisas no mundo atual…”

“Estou falando de colírio!”

“Ah, desculpe. Não tinha entendido a metáfora.”

“Não é metáfora, senhora. É colírio. Vai querer a receita ou não?”

Aliviada por não ter recebido a pasta lustrosa, chamei outro Uber. Bem contente, também, de poder ver, no dia seguinte, pela primeira vez, uma coroação ao vivo e não nas telas dos museus.

Até a próxima, que agora é hoje, e é sempre melhor mudança nas ciências aplicadas do que no seu objeto de aplicação prática!

Charles II, por John Michael Wright (c. 1671-1676), Royal Collection Trust.