O último homem

O Último Homem’ (Der Letzte Mensch) é uma expressão usada por Friedrich Nietzsche (1944-1900), em ‘Assim falava Zaratustra‘, para designar a extinção iminente da transcendência humana. Representa o estado passivo do niilismo, no qual o homem não desejará nada mais além do bem-estar, da segurança, e se alegrará com sua própria falta de ambição. Por que lembrei desse oposto da famosa figura do ‘Super-homem’ (Übermensch) também criada pelo filósofo alemão, no mesmo livro, aquela que possui “vontade de força e elevação”? Porque li um artigo pedagógico e genial que poderia ser filosófico, mas foi escrito há quase dez anos de maneira vulgar e prosaica por um médico pernambucano que, falando sobre a nossa saúde, descreve perfeitamente o “último homem”. 

Edward Munch (1863-1944) Retrato do filósofo Friedrich Nietzsche, Óleo sobre tela (1906). Galeria Thielska, Estocolmo.

Não sou especialista. Li apenas poucos livros de Nietzsche na juventude e alguns nos anos 1980, que orientaram minha vida e influenciaram o trabalho de crítica, sobretudo de curadoria. A partir de então, tento segui-lo no sentido mesmo que ele dá a esta ação: “seguindo-me a mim mesma”, ou seja, “criando-me uma liberdade”.

Na verdade, trata-se de um programa existencial para a vida inteira. Porque Nietzsche não é aquele mestre autoritário. Ele é um exemplo, como os da filosofia clássica, para os quais filosofar não significava expor ideias, escrever livros ou tagarelar, mas induzir a uma “vida filosófica” e criar uma existência coerente com o que somos e acreditamos. Nietzsche elogiava uma virtude, cujo nome se conhece pouco e quase não é citado, sobretudo no Brasil. A virtude é a probidade, a saber: honestidade escrupulosa. Levar uma vida honrada, é isso que se pode depreender de sua obra. O que está bem longe, é claro, de qualquer “moralismo bem-pensante”, a tal da “moralina” que Nietzsche mesmo inventou.

Talvez eu nunca tivesse lido este filósofo, não fosse a armadilha em que caí na infância. Naquela época, eu costumava fuçar os livros na biblioteca de nossa mãe, menos por interesse literário do que para achar os volumes proibidos para a minha idade, sendo que o máximo que podia encontrar era O Amante de Lady Chatterley, a novela escrita por D. H. Lawrence em 1928, e alguns livros do americano Henry Miller (1891- 1980) como Sexus, Plexus, Nexus ou Trópico de Câncer, em inglês, que imediatamente ela colocava fora do meu alcance.

Desse modo, um dia, antes de ir ao cabeleireiro, ela ameaçou:

– Há certos livros que não são apropriados para crianças. Um deles chama-se Assim falava Zaratustra, de um autor que você está proibida de ler e que, por esta razão, encontra-se na parte mais alta da biblioteca. Faça o favor de se contentar apenas com os títulos que deixei nas prateleiras de baixo. E se me desobedecer, já sabe…  deixo você e seu irmão com a governanta e não volto mais!

‘Para pensar bem é preciso fugir da universidade’

É claro que li Zaratustra às escondidas, procurando, sem achar, as partes quentes, sem entender por que era proibido e sem entendê-lo em geral. Só bem mais tarde descobri que há quase um século e meio, o seu autor já fazia todas as perguntas sobre o mesmo niilismo, a miséria intelectual e a própria miséria, que continuam constatáveis em toda parte, e a cada instante, até hoje. “O deserto cresce” afirmava ele. É o que estamos presenciando, não?

Fora que o gênio dizia que, para bem pensar e reconhecer as pessoas com quem lidamos, são necessárias três qualidades das quais jamais esqueci. Primeira: estar fora da universidade. O que, convenhamos, nem teria sido necessário o filósofo dizer. Todos sabemos o quanto pesa o “clero” dessa instituição nas mentes das pessoas em todos os lugares, com a sua “república de professores”. Ninguém tem o direito de pensar fora da faculdade. Considerado “franc-tireur” (independente), Jean Baudrillard (1929-2007) costumava dizer, sempre rindo, que ele mesmo, entre outros, “também não tinha esse direito”…

A segunda qualidade exigida por Nietzsche: ser um bom filólogo. Se interessar de perto pelos textos, pela língua e pelo estilo. A terceira é o “olho médico” para fazer o diagnóstico do seu tempo. Sem esses três atributos, não se vai muito longe, “continua-se um asno” que, como ele dizia, é aquele que “carrega o peso das ideias recebidas”…

Médicos da alma

Genial! Mas ele não foi o único. Outro médico da alma também fez sensação na mesma época: um certo Freud que falaria de um certo “mal-estar na civilização”. Aliás, os dois tinham uma amiga comum: Lou von Salomé, que também me foi apresentada mais tarde pelo simples fato de eu ter sido proibida de ler quem estava apaixonado por ela.

Esse “olhar medical” que percebia, e hoje também me faz perceber, os homens que negam a vida, detestam a felicidade e morrem de medo do trágico, traz até agora uma luz cruel sobre o nosso tempo. Assim como quando aponta certos valores da moral cristã (mas também do islamismo radical) que “comprometem o progresso” uma vez que são fundados no ódio e fanatismo.

Veja só: Em O Anticristo, Nietzsche questiona duramente o cristianismo fundado na interpretação que São Paulo fez do Evangelho, porém jamais critica Jesus. Este parece exercer uma grande fascinação sobre o filósofo, que escreve: “o último dos verdadeiros cristãos morreu na cruz”. Segundo ele, “o cristianismo desapareceu com Cristo”. Que grande verdade! Deve ser por ter amado Jesus, que Nietzsche – usado por sua horrível irmã e por Hitler – odiava os antissemitas.

Que sorte a minha, este filólogo, filósofo e poeta alemão (talvez o mais francês de todos eles) ter sido colocado na parte mais alta da biblioteca. Agradeço o estratagema, embora até hoje eu não saiba se foi esse o objetivo. Em todo caso, o recomendo a todos os pais. Talvez seja a única maneira de fazer uma criança ler filosofia e, mesmo sem ser estudioso ou especialista, continuar a leitura por pura curiosidade e prazer na vida adulta.

Dois anúncios

No livro que desceu da biblioteca, Zaratustra também desce de sua montanha, anunciando a vinda de um “super-homem”, ser que vai “além do atual”, da mesma maneira como este transcendeu a espécie primitiva à qual pertencia. Do que se trata?

Nietzsche cansou de dizer que era anti-darwiniano. O aviso do aparecimento de um super-homem, portanto, não garantia de jeito nenhum que ele apareceria. Prova é que, logo depois daquele discurso ardente, Zaratustra – porta-voz do filósofo –  lança-se justamente na descrição do ‘último homem”, cuja vinda seria muito mais certa do que aquela do “super-homem” (também chamado de “além-homem” ou “sobre-homem”) que possui “vontade de poder e elevação”. Este oposto sofre de “niilismo completo, uma forma estreita e degenerada de humanidade”. Depois de Nietzsche, apareceram, e continuam aparecendo, diferentes “últimos homens”.

O médico de Recife chama-se Dr. Carlos Bayma e é um ex-urologista que se lançou em fisiologia. Não o conheço, não sei se tem a “probidade” elogiada por Nietzsche ou se é mais um “guru da ciência”. Na verdade, pouco importa. O texto dele que reproduzo abaixo, na minha opinião, descreve perfeitamente mais um antissuper-homem, já adivinhado e descrito por Nietzsche: o do século 21.

O último homem

“Aos 30 anos, você tem uma depressãozinha, uma tristeza meio persistente: prescreve-se Fluoxetina.

A Fluoxetina dificulta seu sono. Então, prescreve-se Clonazepam, o Rivotril da vida. O Clonazepam o deixa meio bobo ao acordar e reduz sua memória. Volta ao doutor.

Ele nota que você aumentou de peso. Aí, prescreve Sibutramina.

A Sibutramina o faz perder uns quilinhos, mas lhe dá uma taquicardia incômoda. Novo retorno ao doutor. Além da taquicardia, ele nota que você, além da “batedeira” no coração, também está com a pressão alta. Então, prescreve Losartana e Atenolol, este último para reduzir sua taquicardia.

Você já está com 35 anos e toma: Fluoxetina, Clonazepam, Sibutramina, Losartana e Atenolol. E, aparentemente adequado, um “polivitamínico” é prescrito. Como o doutor não entende nada de vitaminas e minerais, manda que você compre um “Polivitamínico de A à Z” da vida, que serve para muito pouca coisa. Mas, na mídia, Luciano Huck disse que esse é ótimo. Você acreditou, e comprou. Lamento!

Já se vão R$ 350,00 por mês. Pode pesar no orçamento. O dinheiro a ser gasto em investimentos e lazer, escorre para o ralo da indústria farmacêutica. Você começa a ficar nervoso, preocupado e ansioso (apesar da Fluoxetina e do Clonazepam), pois as contas não batem no fim do mês. Começa a sentir dor de estômago e azia. Seu intestino fica “preso”. Vai a outro doutor. Prescrição: Omeprazol + Domperidona + “Laxante natural”.

Os sintomas somem, mas só os sintomas, apesar do escangalho que virou sua flora intestinal. Outras queixas aparecem. Dentre elas, uma é particularmente perturbadora: aos 37 anos, apenas, você não tem mais potência sexual. Além de estar “brochando” com frequência, tem pouquíssimo esperma e a libido está embaixo dos pés.

Para o doutor da medicina da doença, isso não é problema. Até manda você escolher o remédio: Sildanafil, Tadalafil, Lodenafil ou Vardenafil, escolha por pim-pam-pum. Sua potência melhora, mas, como consequência, esses remédios dão uma tremenda dor de cabeça, palpitação, vermelhidão e coriza. Não há problema, o doutor aumenta a dose do Atenolol e passa uma Neosaldina para você tomar antes do sexo. Se precisar, instila um “remedinho” para seu corrimento nasal, que sobrecarrega seu coração.

Quando tudo parecia solucionado, aos 40 anos, você percebe que seus dentes estão apodrecendo e caindo. (entre nós, é o antidepressivo). Tome grana para gastar com o dentista. Nessa mesma época, outra constatação: sua memória está falhando bem mais que o habitual. Mais uma vez, para seu doutor, isso não é problema: Ginkgo Biloba é prescrito.

Nos exames de rotina, sua glicose está em 110 e seu colesterol em 220. Nas costas da folha de receituário, o doutor prescreve Metformina + Sinvastatina. “É para evitar Diabetes e Infarto”, diz o cuidador de sua saúde(?!).

Aos 40 e poucos anos, você já toma: Fluoxetina, Clonazepam, Losartana, Atenolol, Polivitamínico de A à Z, Omeprazol, Domperidona, Laxante “natural”, Sildenafil, Vardenafil, Lodenafil ou Tadalafil, Neosaldina (ou “Neusa”, como chamam), Ginkgo Biloba, Metformina e Sinvastatina (convenhamos, isso está muito longe de ser saudável!). Mil reais por mês! E sem saúde!!!

Entretanto, você ainda continua deprimido, cansado e engordando. O doutor, de novo. Troca a Fluoxetina por Duloxetina, um antidepressivo “mais moderno”. Após dois meses você se sente melhor (ou um pouco “menos ruim”). Porém, outro contratempo surge: o novo antidepressivo o faz urinar demoradamente e com jato fraco. Passa a ser necessário levantar-se duas vezes à noite para mijar. Lá se foi seu sono, seu descanso extremamente necessário para sua saúde. Mas isso é fácil para seu doutor: ele prescreve Tansulosina, para ajudar na micção, o ato de urinar. Você melhora, realmente, contudo… não ejacula mais. Não sai nada!

Vou parar por aqui. É deprimente. Isso não é medicina. Isso não é saúde.

Essa história termina com uma situação cada vez mais comum: a derrocada em bloco da sua saúde. Você está obeso, sem disposição, com sofrível ereção e memória e concentração deficientes. Diabético, hipertenso e com suspeita de câncer. Dentes: nem vou falar. O peso elevado arrebentou seu joelho (um doutor cogitou até colocar uma prótese). Surge na sua cabeça a ideia maluca de procurar um cirurgião bariátrico, para “reduzir seu estômago” e é aconselhado um psicoterapeuta para cuidar de seu juízo destrambelhado.

Sem dinheiro, triste, ansioso, deprimido, pensando em dar fim à sua minguada vida e… doente, muito doente! Apesar dos “remédios” (ou por causa deles!!).

A indústria farmacêutica? “Vai bem, obrigado!”, mais ainda com sua valiosa contribuição por anos ou décadas. E o seu doutor? “Bem, obrigado!”, graças à sua doença (ou à doença plantada passo-a-passo em sua vida).

Até a próxima, que agora é hoje e pense bem, pense com Nietzsche. Ainda é tempo de fugir ao vaticínio de Zaratustra e criar a própria liberdade!

Friedrich Nietzsche

 

Como entender o mal-estar à nossa volta?

Não se trata de fazer amálgamas. Depois de terem se manifestado no último sábado, pela 5ª vez, alguns milhares de franceses pretendem protestar novamente Hoje, dia 22. Agora é Versalhes que os bárbaros oportunistas, que se juntam aos manifestantes, gostariam de quebrar, incendiar, pilhar. As tragédias de Estrasburgo e Campinas, os coletes amarelos, os quebradores da ultradireita e ultraesquerda que semeiam o caos, o cemitério judaico na Alsácia profanado com suásticas, o terrorismo, os psicóticos, as surpreendentes revelações sobre João de Deus, o ódio, preconceito e ressentimento nas redes sociais, tudo têm em comum, de fato, vítimas, carrascos e bodes expiatórios. Enxergar isso é talvez o primeiro passo para entender o que se passa.

Imagem: “Teseu lutando contra o Centauro”, Antonio Canova, 1805, Kunsthistorisches Museum, Viena.

É Natal, símbolo de paz. Aparentemente, nada justifica o terrorismo, o aumento da violência, cemitérios profanados, psicóticos à solta, teorias da conspiração, redes sociais transbordando de ódio, abuso de poder sobre os corpos de centenas de mulheres por um só curandeiro – o inverso do médico Denis Mukwege, Nobel da Paz 2018 por seus esforços para acabar com o uso da violência sexual como arma de guerra e conflito armado. Como explicar o mal?

A França, enquanto “estado de bem-estar social” (welfare state), é um dos países mais protetores do mundo, um dos mais lindos, culturalmente prodigiosos e profícuos em todos os campos. O seu governo não é uma ditadura a combater. Constitui, ao contrário – mesmo se instável – uma república democrática exemplar. Para um brasileiro, os movimentos sociais atuais e a cólera são indecifráveis. A conclusão é a de sempre: “os franceses não merecem a França.”

Sim, porque hoje o custo de vida nos dois países é praticamente idêntico, mas os salários mínimos totalmente díspares: 954 reais no Brasil, 5.700 reais na França (com o aumento de 450 reais já concedido pelo presidente Macron). Têm-se a impressão de que o individualismo consumista dos franceses da classe média faz com que não aceitem as reformas necessárias pretendidas pelo governo, perdendo a cabeça.

“David com a cabeça de Golias”, Caravaggio, 1606-1607 (Galeria Borghese, Roma)

O movimento dos coletes-amarelos não é político ou ideológico. As reivindicações dos pacíficos são difusas, muitos deles não são tão pacíficos assim. Pedem aumento do salário mínimo, são contra os impostos, as taxas, o aumento do combustível e a perda de poder aquisitivo. Já os quebradores da ultradireita e ultraesquerda, por sua vez, não têm nenhuma exigência além de semear o caos, pontualmente teleguiados por este ou aquele partido extremista que, naturalmente, também não quer outra coisa.

Depois de terem se manifestado no último sábado, dia 15, pela 5a vez, alguns milhares ainda pretendem protestar hoje, dia 22. Desta vez é Versalhes que os bárbaros oportunistas que se juntam aos coletes-amarelos gostariam de quebrar, incendiar, pilhar. Versalhes fechará suas portas, porém os criminosos continuarão a agredir a polícia e a causar prejuízos que já alcançaram milhões de euros ao país e aos próprios franceses.

Já na segunda-feira os coletes amarelos levarão as suas crianças a excelentes escolas gratuitas. Consultarão médicos, oftalmologistas, irão a hospitais e receberão óculos, remédios, exames de sangue e outros caríssimos, tudo isso quase gratuitamente. Receberão passes de vacinação gratuita, todos os exames para despistar doenças sem pagar nada, usarão uma enorme e confortável rede de transportes por um preço razoável, terão à disposição uma biblioteca e uma midiateca em cada bairro e em todas as cidades para lhes emprestar livros, discos e filmes por um preço simbólico.

Não sabemos ainda se os brasileiros merecem ou não o país que têm

O brasileiro é conhecido no mundo inteiro por sua doçura e espírito de apaziguamento. Não falta muito para que essa imagem positiva se dissipe. Basta ler o que se escreve nas redes sociais e nos comentários dos jornais on-line. De alguns anos para cá, qualquer assunto, mesmo o mais anódino, é motivo de rancor e agressividade. País polarizado, ainda indefinido politicamente, as consequências do ódio, preconceito e ressentimento, nos são, apesar da precariedade do país em comparação com a França, também inescrutáveis. Não sabemos ainda se os brasileiros merecem ou não o país que têm. Só sabemos que eles não merecem ter sido roubados como o foram até agora. Nem perder confiança e segurança jurídica em seus tribunais superiores, como acontece a todo instante.

Resta a teoria do filósofo e antropólogo René Girard (1923-2015), cuja síntese figura no meu último livro, no capítulo “O Inferno”, que republico abaixo. Sinto que precisamos dela neste momento, mais do que a discussão de Freud sobre o mal-estar na cultura, a pulsão de morte e a civilização. Freud tratava do indivíduo e da burguesia europeia no século 19. Época em que o mundo ainda não lidava com as “multidões democráticas”, a “democracia de massa”, as disfunções e doenças do igualitarismo como a derrocada do “segredo” (que protege) e a subida da “transparência” e da “liberação da palavra” que leva à violência crescente, da qual um bom exemplo é o #MeToo. Girard é da nossa época, nos fala de perto. A questão girardiana do “desejo mimético” exige um pouquinho de esforço para acompanhar, mas explica bastante, creio eu, o mal-estar geral que presenciamos à nossa volta, e em toda parte.

Desejo mimético

Em linhas gerais, na teoria sobre o fenômeno do “triângulo mimético” (que lançou as bases de uma nova antropologia e também pode explicar a violência apocalíptica e o radicalismo de certas civilizações islamitas), o “triângulo” é formado pelos indivíduos A e B, e pelo suposto “bem”, ou seja a “coisa desejada”. Trata-se de um jogo simbólico, onde o indivíduo B:

◆ Possui um bem (não necessariamente material)
◆ Parece dispor de um bem
◆ Poderia dispor de um bem

Que o indivíduo A pensa:

◆ Que ele mesmo não possui
◆ Que o seu gozo está ameaçado pelo simples fato de que B dispõe, pareça dispor ou possa dispor dele

O triângulo entre A, B e o “bem” é motivado pela necessidade de TER algo, já que não dá para SER algo. Ou seja, sem conseguir SER o “modelo” B, o indivíduo A pensa que o que caracteriza o indivíduo B, e justifica a diferença entre eles, é a “possessão” de um bem. A questão irá residir, portanto, na imitação do desejo desse bem. Quanto mais A deseja o bem, mais B o imita, entrando no mecanismo do “desejo mimético”. E mais A e B vão ficando parecidos em relação ao mesmo desejo.

Esquematicamente, quanto mais a tensão em direção ao objeto (material ou não) é forte, mais A e B perdem as suas diferenças.

Para Girard, essa indiferenciação entre as pessoas traz rivalidade por causa da tensão com relação ao mesmo objeto. E a rivalidade mimética cria conflito e violência.

Aí entra a outra teoria de Girard: a do “Bode Expiatório” (1982), fenômeno coletivo que, segundo ele, é a resposta inconsciente de uma comunidade à violência que seus próprios membros geraram por causa da rivalidade, dentro do “triângulo mimético” entre A, B e o objeto.

Esse fenômeno ancestral de “todos contra um” tem a função de extirpar a violência interna (endêmica) à sociedade. Em resumo, o bode expiatório é o mecanismo coletivo que permite a uma coletividade sobreviver à violência gerada pelo desejo mimético de seus membros, mesmo quando esses desejos não são individuais, mas coletivos.

Aplicado ao Brasil, à França – e a qualquer país instável  – o desejo e a rivalidade são excitados pela propaganda política, publicidade, mídia e redes sociais, que não são mais do que caixas de ressonância da “violência mimética”.

O jogo simbólico do “triângulo” permite a aproximação dos indivíduos em uma classe única. Esta, fica povoada de “iguais-rivais” que se invejam. Todos pensando que a saída é reencontrar uma “unanimidade” e, sobretudo, um “bode expiatório”. É o inferno sobre a Terra.

Até a próxima que agora é hoje e… obrigada René Girard!

O antropólogo francês René Girard em junho de 2008. LINDA CICERO/STANFORD NEWS SERVICE
“A adoração do Carneiro de Deus”, Jan Van Eyck, 1432