Educação para aqui, para acolá

Hoje, dia 2 de setembro, começa o ano escolar na França. 12 milhões de crianças estão de volta das férias. Como sempre, o clima nas escolas será de euforia e transmissão dos valores republicanos que vêm do alto: liberdade, igualdade, fraternidade, laicidade e recusa de toda e qualquer discriminação. Do outro lado do Atlântico… 

Foto: Robert Doisneau (1912-1994), Escola da rua Buffon, Paris Vème, 1956.

 

Na França, fora das alocações obrigatórias de ajuda a todos os pais, cada família modesta já recebeu este mês do Estado, em sua conta bancária, entre 368,84 euros (1.680,00 reais) et 402,67 euros (1.835,00 reais) por criança, segundo a sua idade, para a compra de material escolar. Se a família é “menos do que modesta”, ela tem direito a uma alocação diferencial. Recebem as crianças e jovens escolarizados, entre 6 e 18 anos.

As escolas são públicas e totalmente gratuitas, desde 1881. O ensinamento público é laico (separado da religião) e a instrução é obrigatória desde 1882, a partir dos 6 até os 16 anos, quando o adolescente pode optar por formações no campo que quiser, entrar na universidade (também gratuita), etc. Como as aulas vão da manhã até à tarde, todas os estabelecimentos possuem refeitórios e as refeições são praticamente gratuitas. Os alunos pagam apenas um preço simbólico por elas.

A escola deve transmitir o conjunto dos valores republicanos através de seus ensinamentos, da vida escolar e do conjunto das ações educativas que ela realiza. Entre estes valores estão: liberdade, igualidade, fraternidade, laicidade e recusa de toda e qualquer discriminação.

O ministro atual da Educação chama-se Jean-Michel Blanquer (1967). É jurista, professor, ex reitor e diretor das maiores escolas, institutos e academias francesas, cientista político, homem de letras e filosofia (com mestrados e doutorados) e melômano, cujo glorioso currículo dificilmente caberia neste espaço. Além da erudição, ele é fino, elegante, engraçado, charmoso, competentíssimo e respeitado por pessoas de todas as sensibilidades políticas, da esquerda até a direita. Junto com o literato (doutor em literatura), escritor e cientista político Bruno Le Maire, ministro de Economia do governo de Édouard Philippe/Emmanuel Macron, Blanquer também é perfeitamente presidenciável.

O Planalto obscurantista enxerga idiotas úteis em estudantes

No Brasil, o deseducado ministro da Educação, parcamente graduado, ex executivo do mercado financeiro, sem nenhuma experiência neste campo, acaba com bolsas, tira verbas, destrói instituições de ajuda e pesquisa, põe no chão as humanas, demole universidades, explode os estudos e a cultura. Em sua coluna do dia 30 no Estadão, Pedro Doria – criador do excelente Canal Meio (que tem um dos melhores newsletters do momento) – escreve que “ao invés de promover o encontro entre iniciativa privada e professores universitários, de quebrar o preconceito da academia brasileira com o capitalismo do século 21, o governo estimula o ódio à educação. Quando podia estar criando formas de estimular a geração de patentes e eliminar a burocracia para seu registro, tornar pesquisadores os grandes propulsores da nova riqueza nacional, o Planalto obscurantista os torna inimigos e, em estudantes, enxerga idiotas úteis.”

Além disso, o ministro brasileiro da Educação mostra-se grosseiro, escreve mal, comete erros crassos, troca nome de grandes escritores, comporta-se como palhaço, mete-se sempre onde não é chamado, e – como se isto não bastasse – xinga grandes presidentes de maneira cafajeste para chamar atenção, certamente obedecendo ao “Manual Bannon do Populismo para Governos Autoritários e Involuídos”, tão apreciado pela ala ideológica do governo brasileiro. Um apanhado prodigioso de declarações e posturas contestadas estão nesta excelente matéria do dia 23 de julho, no Estadão. Já dá para fazer outra.

Até a próxima, que agora é hoje e sugiro ao ministro de docta ignorantia, um frutífero estágio no Ministério da Educação Nacional em Paris, capital de um país para o qual a Educação é prioridade máxima! E viva a Bic que fez os francesinhos e francesinhas ficarem inteligentes!

Trump e Bolsonaro, os coveiros da cultura

Esta é uma entrevista imaginária com um escritor verdadeiro e tudo que ele afirma aqui foi, de fato, publicado recentemente em forma de artigo, numa importante revista semanal francesa de centro-direita, cuja linha editorial é comumente admitida como social-liberal. Ninguém pode afirmar que o meu entrevistado é ‘comunista’.

Imagem: Donald Trump e Jair Bolsonaro multiplicam os ataques contra a vida intelectual © JIM WATSON / AFP

S.L. – Arthur Chevallier, você não é de esquerda nem de direita, é editor da série “História” na editora Cerf, escreveu vários livros (o último sobre Napoleão) e é também crítico literário nas prestigiadas revistas “Magazine Littéraire” e “Transfuge”, além de dirigir a “Revue du Stendhal Club”, que fundou junto com os escritores Charles Dantzig, Dominique Fernandez da Academia francesa, e Benoît Fuchs. O seu artigo no jornal Le Point desta semana me agradou tanto, que decidi lhe entrevistar.

A.C. –  Você se refere à minha crônica sobre Trump e Bolsonaro?

S.L. – Sim. Em síntese, você afirma que o desprezo pela cultura dos presidentes americano e brasileiro é uma “declaração de guerra à civilização do livro”.

A.C. – É verdade. Estes dois imbecis pregam a vulgaridade antes de impor a barbárie. Eles ridicularizam o que estão prestes a destruir e zombam dos que estão prestes a matar. Face à inteligência, a brutalidade não é uma escolha, é um meio.

S.L. – Estamos de acordo. Mas, na sua opinião, como isto se dá?

A.C. – Jair Bolsonaro, presidente do Brasil, multiplica os ataques contra a vida intelectual. Sua decisão, confirmada no dia 26 de abril, de reduzir o orçamento destinado às ciências sociais e humanas na Educação é o cúmulo, o resultado de uma paixão pela destruição que ele tinha revelado, desde a sua campanha. Essa atitude lembra a de Donald Trump que, a partir do final de 2017, anunciava a supressão de subsídios para teatros, cursos de música, dança, oficinas de leitura, etc., que o Estado financiava para que as pessoas desfavorecidas tivessem acesso.

S.L. – Mas estes políticos justificam os seus atos… O presidente brasileiro afirmou que “o contingenciamento foi em um pequeno porcentual das despesas discricionárias e que o corte de verbas não é maldade de ninguém, é uma medida necessária porque não tem dinheiro”.

A.C.- Bolsonaro e Trump apresentam essas medidas como “racionais”. Elas são, na verdade, o único remédio para a ignorância deles. Como os dois não entendem nada da vida do espírito, da cultura, eles querem a sua morte. “Auto de fé do espírito” foi uma expressão usada por Joseph Roth em um artigo publicado em 1933, onde o autor de “A Marcha de Radetzky” mostra como o Reich atacava escritores, especialmente judeus, porque eles encarnavam a liberdade. “Não havia senão os verdadeiros escritores que eram pessoas livres e independentes, e, portanto, revolucionários no verdadeiro sentido da palavra”, escreveu. A editora Allia acaba de publicar este texto chocante e combativo, escrito por um dos maiores autores do século 20!

Antes de ser uma derrota política, o colapso da socialdemocracia na Alemanha foi uma derrota do pensamento

S.L. – Costuma-se fazer muitas comparações com a Alemanha dos anos 1920 e 1930. Não há o perigo de uma banalização das análises?

A.C. – Ao contrário. Segundo Joseph Roth, o reinado da estupidez realizado pelo Terceiro Reich não pode ser atribuído a Adolf Hitler, um idiota, certamente, mas antes de tudo um oportunista cujas palavras não teriam tido eco semelhante em um país civilizado. A Alemanha nas décadas de 1920 e 1930 continha em si um monstro concebido por um estado perverso, traiçoeiro e hostil à França: a Prússia. Enganados pelo encanto da República de Weimar (1918-1933), os analistas europeus não perceberam que um regime humanista e culto não poderia, em quinze anos, conjurar meio século de militarismo. Hitler só assustou o mundo europeu porque teve a audácia de realizar o que a Prússia sempre planejou, ou seja, queimar livros, expulsar judeus, distorcer o cristianismo. O que assustou também é que Hindenburg, admirado pelos alemães por sua integridade e coragem durante a Primeira Guerra Mundial, responsável pela nomeação de Hitler para a Chancelaria, tinha orgulho de reconhecer publicamente que jamais em sua vida havia lido um livro. As comparações com a atualidade são totalmente pertinentes.

S.L. – Sabemos que as pessoas ignorantes e pobres de espírito possuem um complexo de inferioridade, uma espécie de inveja que as leva às vezes ao desejo de destruir a cultura que não podem alcançar. Basta lembrar a famosa frase do oficial nazista: “quando ouço a palavra cultura, saco o meu revólver”.

A.C. – Um outro escritor, Curzio Malaparte, também identificou a inveja e esse complexo de inferioridade como traço comum dos tiranos. Antes de ser uma derrota política, o colapso da social-democracia na Alemanha foi uma derrota do pensamento. Com aplicação e meticulosidade, os nazistas acusaram a literatura, a psicanálise, a filosofia e a história de estarem na origem de uma “decadência moral”. Sigmund Freud, Thomas Mann, Klaus Mann, Rainer Maria Rilke, Hugo von Hofmannsthal e Stefan Zweig, alemães e austríacos, foram acusados.

S.L. – Isso sem falar nas artes plásticas “modernas” que, para os nazistas, eram “degeneradas”. Quantos artistas extraordinários tiveram que fugir da Alemanha! É o conservadorismo, portanto, que se repete, desta vez como farsa. No Brasil e nos Estados Unidos, encontram-se vários bodes expiatórios para exorcizar o pavor de um suposto “marxismo cultural”, por exemplo…

A.C. – (risos) Imaginar Donald Trump e Jair Bolsonaro discutindo cultura é como imaginar dois analfabetos ensinando o alfabeto. O desprezo deles pela arte e pelo intelecto não é apenas uma simples anedota, mas uma declaração de guerra à civilização do livro, da qual a Europa é guardiã e depositária.

S.L. – Por falar em Europa, e não só do ponto de vista cultural, depois das revelações divulgadas há alguns dias em horário nobre por France 2, o canal de televisão mais popular deste país, a ligação do partido de extrema-direita de Marine Le Pen com russos e americanos, sobretudo na figura de Steve Bannon, ficou clara e nítida. Le Pen está no alto da lista para as eleições europeias, mas estes nacional-populistas são os inimigos dos países europeus, querem a sua divisão para enfraquecê-los, exatamente como ocorreu com o Brexit. O diabólico Bannon (seu orquestrador) afirmou querer “cravar um punhal no coração da Europa”. Nada mais, nada menos. Está tudo nessa reportagem que, aliás, é bastante objetiva. A competente e controvertida Nathalie Loiseau, candidata LRM adversária de Le Pen, tem medo de uma volta aos anos 1930…

A.C. – Não há dúvida que, para essa gente, a Europa é o pior inimigo. Como deixei subentendido, o perigo dos anos 1920 e 1930 continua a pairar.

S.L. – E são estes os amigos do governo brasileiro. Partidos, pessoas de poder e regimes abertamente anti-democráticos, anti-republicanos, financiados anônimamente por interesse de enormes fortunas mundiais. O braço armado do niilismo, animado pela pulsão de morte, neste planeta. Precisamos ficar conscientes do perigo que se alastra no mundo, Brasil inclusive. Marine Le Pen e o RN (Rassemblement National), estes bárbaros têm que ser barrados nas eleições do dia 26. Não é uma questão restrita apenas à França ou à Europa. É um perigo planetário. Toca igualmente os brasileiros e os americanos.

A.C. – Com relação à cultura, a menor complacência com os coveiros do espírito (e seus aliados) permitiria acreditar aos bárbaros que eles podem agir impunemente. Se a União Europeia está pronta a responder, em menos de vinte e quatro horas, às provocações alfandegárias dos americanos, ela pode perfeitamente defender a civilização na qual alega estar fundada.

S.L. – Neste aspecto não sei se você está certo, assim espero sinceramente, mas obrigada por esta entrevista imaginária-verdadeira e até a próxima, que agora é hoje!

 

MATÉRIAS RELACIONADAS

Educação, cultura, humanismo em perigo
Em outros países, filmar professores é crime
Rosenberg, teórico e “guru” de Hitler. Lembra alguém?
No centenário da Bauhaus, perdoar o Holocausto não é a questão
A arte, o golpe de 1964 e a ditadura