Os 60 anos da ‘Cantora careca’

Há quase meio século não entendi porque tive que assistir a esta peça que estava em cartaz fazia 12 anos e que, como era curta, acompanhava-se de “A Lição”. Até mesmo um famoso crítico teatral da época em que foi lançada dizia que ela não ficaria 6 meses em cartaz! É que minha mãe devia saber, mesmo sem adivinhar qual seria o meu caminho, que o teatro do absurdo – teatro e também antiteatro – talvez estivesse mais próximo da arte do que os outros.

Ionesco

Assim, fui obrigada a acompanhá-la ao pequeno teatro de la Huchette, de 90 lugares, que fica no número 23 da rua do mesmo nome no 5° bairro de Paris, onde a “A Cantora careca” de Eugène Ionesco (1909-1994) era apresentada todas as noites, sem descanso. E eis que, nesta quinta-feira, dia 16, para a minha surpresa, a peça completa 60 anos, 18 mil representações e continua dirigida por Nicolas Bataille!

De fato, o teatro do absurdo – teatro e também antiteatro – estava mesmo mais próximo da arte do que os outros. Tanto que, mais tarde, acabei assistindo várias peças deste mesmo e erudito autor, como a sombria Jogos de massacre no Teatro de Montparnasse, em 1970, e em São Paulo, O Rinoceronte, As Cadeiras, O Quadro

Aliás, achei estranho O Rinoceronte, onde a “rinocerite” é o nazismo, ser um teatro político – um pouco moralizante, kafkiano (Ionesco adorava Kafka), contra todos os totalitarismos – quando o próprio autor criticava Brecht. Mas, pensando bem, não deixava de ser Ionesco, cujo teatro conjugava a observação do mundo e a imaginação. Deve ser por isso que a peça resiste. E também não me admira que o escritor romeno tivesse começado a pintar no final de sua vida…

Vi também peças de Samuel Beckett e Jean Genet, dentro da mesma ruptura com o teatro clássico que a tragédia igualmente ressuscitou nos anos 1950. De maneiras diversas, todos tratavam do absurdo do Homem e da vida, como consequência do declínio do humanismo e do traumatismo causado pela guerra. A literatura e o teatro inspiravam-se nos surrealistas e dadaístas, sempre radicalmente opostos ao “realismo”. O que era realmente estimulante!

Fora da França, as representações se multiplicavam. A famosa “proliferação ionesciana” invadia os teatros pouco a pouco. A razão do sucesso? A um crítico inglês que o acusava de formalismo, Ionesco respondeu que “renovar a linguagem é renovar a concepção, a visão do mundo”, que ele retomava a possessão dos grandes mitos ancestrais, dos arquétipos que fizeram a profundidade de um Ésquilo, de Shakespeare… mitos que não podiam se revelar se ele não assassinasse os estereótipos da vida pequeno-burguesa. Com efeito, o mestre operou uma demolição que marcou o começo da construção de obras possantes!

Ionesco dizia que “a obra de arte não é o ‘reflexo’ ou a ‘imagem do mundo’; é o próprio mundo”. Essa ideia é maravilhosa pois reafirma o fato de que não existe separação entre obra de arte e espectador. Que não existem “analfabetos visuais”, como querem certos filósofos de plantão. E que arte se aprende, porém não se ensina, como escrevi neste post.

Até a próxima que agora é hoje e não sei se obrigaria a minha netinha, quando ela tiver idade, a assistir aos 80 anos da Cantora careca. Se para mim, há meio século, este teatro era de vanguarda, para ela certamente será coisa do arco-da-velha!

Fachada do Teatro de la Huchette, em 2005

Cenário perene da peça “A Cantora careca”, de Eugène Ionesco.

Cena da peça “A Cantora careca”, de Eugène Ionesco.

Eugène Ionesco, Les Chaises, 1984, lithographie, 61 x 44.5 cm. Détail de l’œuvre © Marie-France Ionesco

Eugène Ionesco, Crucifixion, du portfolio «Des ronds et des carrés», 1982, lithographie, 64 x 49 cm © Marie-France Ionesco

Eugène Ionesco, Vivants entourant un squelette, 1988, lithographie, 56 x 38 cm © Marie-France Ionesco

Eugène Ionesco, Les Hautes danseuses (Triomphe de la mort), 1985, lithographie, 74 x 54 cm © Marie-France Ionesco.

Eugène Ionesco

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